Fico congelada olhando, ela lamber os dedos da fruta que trouxe na bolsa de marca brega. Mãos da rua e nem lava. Lambe os dedos das mãos secas, com as unhas sem fazer. Fico congelada olhando e sinto o golpe de ar que entra pela rachadura do meu peito. De um lado o nojo, o renegar, o virar o rosto. De outro, uma vontade imensa de pertencer ou ao menos ser querida ao diferente. O diferente, o diferente, o diferente. Eu metralhando a vida mesmo sabendo que não existe defesa pra isso. Ela transforma meu peito de arrogância lisinha num chão árido e nem imagina que faço metáfora com seu mijo. Nem imagina que pego suas sobras, suas coisas descartadas, e passo o resto da semana bebendo nessa fonte. O que você não quer, me dá que eu levo pra casa e fico horas tentando entender. Por outro lado, tente ser meu um pouquinho?
De dentro do carro descubro que o caminho mais rápido para a minha casa passa sempre em frente ao boteco. Boteco? Boteco. E me contorço inteira de não querer, mas espio lá pra dentro de uma curiosidade tão torta que as rodas do meu carro com ar condicionado entortam também meus caminhos. Alguém buzina sem paciência. E eu quero gritar “e eu lá quero essa vida toda que não é a minha?”. E as rodas tortas e todo meu retesar não enganam mais nada. Eu quero um pouco. Eu quero que eles me queiram um pouco. E tudo isso me assusta e incomoda muito. De leve, caindo gotinhas a cada segundo, uma coceira pequena mas inchadinha. Eu olho sim do buraquinho da minha bolha. Ô menino, pega minha bola? Brinca comigo um pouco? Meus pais não me deixam brincar na rua, mas minha bola é bonita e cara, você não quer entrar? Minha bola é melhor do que a sua. Mais limpa. Menos usada. O menino ri e corre pra longe. Vai viver de verdade na vida enquanto eu faço o mesmo só dentro de mim. Eu fico triste, mas o coração disparou tanto que quase não parece tristeza. As coisas que sinto quase nunca parecem as que temos oficializadas em dicionários. E então me pergunto como escrevo.
Eu fico congelada olhando. As janelas todas dos prédios todos de todas as vidas por aí. Fico congelada quando não são meus grupinhos e plateias e tudo que tem cheiro de mãe ainda que nem mãe tenha esse cheiro. As pessoas diferentes e como se viram pra conseguir o mesmo que eu. Que é ver algum sentido, dormir bem, falar que alguma coisa é boa demais, meter o pau no resto todo, gozar antes de começar a pensar na quarta-feira e não decepcionar tanto assim alguém que a gente tem certeza que conhece melhor do que ninguém.
Quando não riem de mim, não entendem, não se doem com minha dor, não congelam por mim, não existe aquele minuto em que sinto “olha lá, estão virando meus, vão virar, vão virar, opa, sim, são meus”. Vou murchando, murchando. Ratinho pequeno. Noz. Formiga. Meleca de nariz. Sumi. Nunca existi. Que dor. Que dor. Soco o teto pra voltar pro chão. Só ser plateia. Ser amiga de gente com seus egos e histórias próprias. E o pior de tudo: prestar a maior atenção neles e nem conseguir falar nada. Mudo a voz, meu jeito de sentar, não lembro de sequer um motivo pra ser amada ou desejada. Tenho a idade insuportável de novo. E as crianças no recreio não querem brincar com minha bola. Tudo o que construí esses anos todos me abandona. Quando vou ver, estou lá de novo, magrela, sozinha, estranha e criando vinganças puras no peito estriado. Sonhando com tudo o que eu faria pra me transformar exatamente no que me transformei. Voltar pra merda dói mas é passado. Agora eu olho pra eles de dentro do carro geladinho, de dentro de poses, mais de cem mil páginas no Google, mais de três mil livros vendidos, mais de duzentos mil nessa sala com a iluminação que li que era chique, mais de mil garotos, amigos, notas, abraços. Não sou ela! Eu sou eu! Ouviram? Ouviram? Mas eles estão preocupados demais em provar o mesmo. Vai ver não somos tão diferentes assim.
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