Me enchi de revistas e frutas picadas no canto da mesa, querendo encontrar logo alguma ideia que resolvesse um trabalho que eu tava fazendo. Queria resolver, entregar, receber e voltar logo pra mim. Acho que desaprendi a trabalhar para os outros ou mesmo qualquer coisa para os outros. O que parece arrogância e depois de muito tempo dando nomes menos feios resolvi que é arrogância mesmo porque talvez esse seja o nome menos feio.
Foi quando chegou um rapaz e perguntou se alguém estava sentado ao meu lado. Só que não era um lado, era um super lado. Era tipo colado em mim. Era tipo quem visse acharia que estávamos juntos. Daí que achei melhor olhar bem pra ver se era o tipo do homem com o qual eu poderia estar, na Fnac, numa tarde de feriado ensolarada. Não era. Ou eu não sabia se era. Eu não queria ninguém ao meu lado. Não agora e nem nunca mais. O que obviamente era mentira mas saia com uma força ainda mais forte que a verdade.
Respondi o não mais agressivo e masculino que pude, me dando conta, só então, do quanto eu estava dos pés a cabeça muito masculina. De repente o mundo estava infestado de garotas bronzeadas com seus vestidos. Todas as mulheres do mundo com cabelos bonitos e que são chamadas em horas de profunda saudade e que roçam o nariz na bochecha de seus queridos e fazem barulhos de ratinhas carentes. E de repente, eu sabia, odeio quando chega isso, mas de repente eu estava muito sem ar, pra fora da bolha de oxigênio do mundo. Eu era uma garota mal vestida, trabalhando por uns trocos em dia de sol e de mortos e de descanso. E que, só porque o café estava muito lotado, tinha um acompanhante que jamais perguntaria meu nome. E jamais saberia que, apesar de eu nem pensar mais nisso, no meio da noite, minha cabeça grita, noite após noite “como é que existe uma maldade que joga pessoas fora assim, mesmo sabendo tudo de bom que elas têm?”. Minha cabeça grita noite após noite, quando eu não falo mais por ela e ela fala sem parar por mim e eu já até aprendi a deixar assim pra ver se gasta “como é que a coisa mais bonita que já me deram vem da coisa mais feia que já me deram?”. Ele nunca saberia. Se eu não sei. Se você não sabe. Então ficamos sem resposta. Eu com meu trabalho. O mundo com sua comida. Lado a lado, todos, sem resposta, fechados em certeza e cara fechada e tudo fechado. Lado a lado.
O garoto pensando “coitada”. Se é que ela pensa que eu gostaria de sentar ao lado dela porque tô achando ela linda. Com tanta moça de vestido e de sol e de gemidinhos de ratinhas em bochechas. Com tantas dessas moças. Por que essa com essa roupa estranha, que trabalha por uns trocados em dia de ser livre ou mesmo morta e dorme e morre por uns trocados em dias de se esquecer na massa do mundo e quase ser feliz? Por que eu perguntaria o nome dela? Se não fosse, apenas, porque o café está lotado e ele queria sentar porque estava quente e eu, sempre sabida com essas coisas, tinha escolhido um bom canto. Eu sou boa de escolher cantos.
E então, por alguma coisa em mim que sempre tem dessas, essa coisa que eu adoraria entender, porque de verdade me escapa, me sacaneia, me é um adulto sábio e mais burro, que mostra pra mim que isso que me apego é só frescura e não saber viver. Um adulto que já desistiu sabiamente de ser adulto porque nunca se é como se planejou naquele dia de muita criancice. Eu olhei pra ele e sorri. Sorri. Porque se a pessoa mais doce que já conheci, se a pessoa mais sensível que já conheci, se a pessoa que me garantiu, segurando firme meu corpo no meio da noite, eu sempre querendo ir respirar pra fora do amor, e me disse que tudo bem, eu podia ficar. Era possível ser e ter e durar e florescer e tudo. Se a pessoa que poderia saber de alguma coisa sabia muito infinitamente menos que eu. Se tanta doçura no meio da noite me volta como um estômago estuprado. Então que esse moço passageiro e sem rosto e sem intenção ficasse com meu sorriso. Porque estar ao lado de alguém é só um mundo apertado e uma vontade de comer até enojar e uma licença pra existir e um descanso como dá. Até resolver o trabalho e receber e ter forças pra seguir e segundos antes de dormir pra ter coragem. No dia dos mortos. Ao lado do mundo, sempre à margem, quase nele, quase dele. E o que ele me deu depois do sorriso eu nunca vou saber porque o bom de ter essa dor que nem dá pra mexer é pouco nos lixarmos pras pequenas felicidades.
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