sábado, 2 de outubro de 2010

Cansada

Entendi avenida Santo Amaro e não era nada disso. O dia começou com um mundo de gente nova em um prédio que a gente sabe que existe mas nem sonha, no centro, centro mesmo, da cidade. Pra deixar o carro na única vaga, desci a pé um caracol de sete andares. Nisso já eram quarenta minutos de atraso. Daí que cansa mais que tudo ser tão nova, o frescor do primeiro contato, equilibrar a vontade de ser logo aceita com a necessidade de não transparecer nada disso pois só os bobos deixam vazar a carência assim, tornando o chão liso de tanto sebo (e ninguém nem consegue chegar perto). Adoro isso porque estou tão envolvida no que vejo e sinto, os códigos de um novo planeta, as novas senhas de um universo, gente que pode ser pra frente me puxando pra além de tudo até agora, que esqueço desse mundinho de nojos e gostos que me aprisiona. Comi feijão com farofa na mesa dos peões e segurei a banana com a mão suja. Se tem uma coisa que cansa, é passar o dia todo mijando nos banheiros que o mundo oferece e sem escovar os dentes. Mas eu estava tão envolvida que acabei emendando tudo e todo mundo. E dai que sai do prédio e rodei a cidade pra deixar um, buscar outro, conviver, me dar, saber, em meio a greve dos ônibus fretados e chuvas caóticas. Justo eu, que sou feliz basicamente por me resguardar do absurdo que é viver nesse mundo. E eu não era isso que costumo dizer “eu sou”, com tantas vontades e limites. Eu podia aguentar, pagar, cuidar, guiar. E porque eu estava já muito cansada, considerando que tenho hora até pro segundo número dois do dia e pro chá verde e até pra hora de parar e recapitular as horas todas milimetricamente sentidas, eu acabei emendando também o bar sujo que emendou numa festa pior ainda. E emendei a dança, o grito. E emendei os sapatos embaixo da mesa. E emendei uma taça de vinho e outra, que me fizeram emendar, já que eu estava tão cansada, uma blusa de lã perdida, já que estava tão quente. E emendei deixar, já que eu estava tão cansada, que as pessoas pegassem no meu braço, na minha nuca, no meu joelho. E depois, quando não encontrei meu carro, não sofri, eu não era mais nesse dia. Não cabia sofrimento em mim pois sofrer é antigo, é de antes. E eu não era nada. O segundo e o daqui pra frente, querendo ver as coisas mesmo com os olhos já pedindo o fim de ver tantas coisas. E as ancas pedindo pra que eu me levasse de volta antes que piorasse e eu finalmente me espatifasse como só toda pessoa muito cansada se deixa romper. Eu estava já há tantas horas sem escovar os dentes e beber a água do meu filtro e sentir o quente do meu chuveiro, que comecei a sentir em mim o cheiro da rua e gostar. E se eu tinha desapegado até das beirinhas nervosas das minhas tripas, o que era um carro ou uma casa? A casca que o cheiro da rua trás, como se agora eu pudesse entender o taxista me dizendo que depois de me deixar, ia comer uma amiga que estava há meses sem dar por conta do marido que foi preso. E tudo bem, por causa de um cansaço que nem me permitia não sorrir, ouvir isso que faz parte da noite e de mim. E porque eu estava cansada demais pra partir, fiquei mais um pouco e mais um pouco. E cantos viraram meus, paredes as minhas, usei os esgotos que são de todos e contei inconscientemente com os socorros do tamanho do mundo. E então, porque estava podre de cansada e podre e cansada são o passaporte da alegria pro brinquedo assassino da ordem, emendei na carona que pretendia acordar vendo o mar. E emendei no mar, cedinho. Emendei na loucura de, de repente. E quando vi, eu estava boiando num ponto que eu não sabia mais o que era pra frente e pra trás. E foi quando eu achei melhor ir pra casa escovar os dentes e ver o tamanho da olheira, do rasgo, do susto e da morte. Mas só porque realmente não tinha mais nenhum cabimento ou graça e nunca em nome dessa jaulinha cheia de ar falso e espumas quadradas. O dia pra não ser tinha acabado e agora eu podia voltar de novo pro lugar que não existe mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário