sábado, 2 de outubro de 2010

Tudo aquilo

Combinei comigo um dia e um horário. Terça, onze e cinquenta da noite. Depois que eu resolvesse o problema do aquecedor que quebrou e depois que eu resolvesse o problema do cara que fez um buraco no teto por conta disso e o problema do pintor que viria depois do cara que arrumaria o buraco no teto. Depois que eu resolvesse o problema da grana alta que tenho que arrumar em uma semana. E eu contando centavo pra pagar nove reais da minha conta do UOL. Para isso só mudando de agência. Minha gerente é o tipinho loira de raiz de pêlo de Poodle que chega pra trabalhar rouca porque foi em alguma micareta fora de hora (e todas não são?). Depois que eu entregasse treze roteiros em um mês. Um milagre que só um ser sem dormir e sem vida seria capaz de cumprir. E eu cumpri. Dormindo e com vida. Terça, onze e cinquenta. Até lá, preciso resolver o problema da produtora que voltou a me encher o saco. O problema da emissora que continua me pagando pro pão com ovo. O problema do escritório de advocacia que resolveu me cobrar honorário até do segurança noturno que bateu punheta e limpou com a xerox rasurada do meu contrato. Tem também o problema da contadora que se confundiu com a minha senha e agora tô há semanas sem receber pelos meus freelas. Preciso entregar aqueles textos pra peça de teatro, ainda que ninguém me diga com clareza o que é pra ser feito. Bota aí alguma coisa de Revolução Francesa. Sei. Posso botar sadismo? Preciso inventar um jeito da minha personagem do filme trepar com um gringo por dinheiro e isso jamais parecer prostituição. Tá fácil.
Combinei comigo um dia e um horário. Terça, onze e cinquenta. Depois que eu resolvesse meus exames pedidos pelo médico há meses. Agora preciso correr, pra aproveitar que o meu plano bom vai pro saco e eu vou ficar com meu plano vagabundo. Depois que eu resolvesse o lance da administradora do prédio ter o CNPJ caçado e meu condomínio ter subido para o equivalente ao que eu gastaria pra visitar minha amiga em Londres. Aliás, ia me dar isso de presente de trinta anos, mas esse ano fico sem presente mesmo. O importante é pagar meu porteiro que dorme na madruga enquanto eu negocio com os sequestradores relâmpago do bairro “ah, vai assaltar em alto de Pinheiros que lá tem velha rica e desocupada, aqui não tenho nem pra jujuba e preciso entregar um roteiro, agora não rola ir até o caixa com você, muito menos passear pelo bairro curtindo o seu cd pirata do Simple Red remixado”.
Combinei comigo um dia e um horário. Terça, onze e cinquenta. Depois que eu resolvesse o lance de passar três dias por semana no Rio para melhorar minha social no trabalho. Não tenho dinheiro e pra falar a verdade (pela milésima vez) não tenho prazer nenhum em passar esses dias no Rio, longe da minha casa, marcando encontros, sempre em pé e com barulho, com gente que te enche de beijo e de festinha e nem dá tchau na hora de ir embora.
A Net me cobrou em duplicidade de novo, eu devo dinheiro pra mais da metade da família, nenhum ser humano do planeta me abraça e sorri antes de perguntar porque ando tão magra ou porque cortei meu cabelo igual cabana de índio depois do vendaval. Minha ressonância da coluna foi usada numa campanha de tobogãs assassinos das noites do terror. Minha psicanalista me mandou aumentar as sessões para três por semana mas eu não tenho tempo ou dinheiro nem para meia. Se bem que todas duram “meia” e quando preciso ir embora, é só gritar algo do tipo “odeio homem” ou “quero trepar comigo” ou “não fui eu, fui ele” ou “não sou eu que to falando, mas eu acho” que ela se levanta num misto de ódio com delírio e me expulsa dali. E eu faço de conta que saiu sem querer. Minha empregada chora porque não tenho dinheiro pra pagar três vezes por semana. E eu que tô chorando pra pagar uma por mês? Escreveram vaca na poeira do meu carro quando eu fui doar umas roupas velhas para um centro espírita. O chá boa noite só aumenta a minha vontade de roçar os dentes alucinadamente e conferir novamente os trincos da porta. As furadeiras do meu prédio cantam sempre em uníssono com os galos, principalmente aos domingos. Meus hormônios me enlouquecem, ora falham, eu seco, não tenho fome de nada e medo de tudo, quero sumir e odeio todo mundo. Ora bombam, faço amor até com geladeira desregulada, quero 567 filhos, amo o que segue. Vai e vem. As estrias se partem e algo dentro de mim o tempo todo.
E terça chegou, são onze e cinquenta da noite. Coloco Radiohead. If I could beeeee, who you wanteeeed. Apago todas as luzes. Vai, Tati, sofre. Você precisa sofrer um pouco. Vai. Você combinou que se daria pelo menos uns instante de luto pelo amor que morreu. Vamos lá. Uma lágrima. Um, dois, três e…e…e…ah, eu tenho mais o que fazer!

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