sábado, 2 de outubro de 2010

Dancinha

Há dias que é assim. Eu toco a campainha e a porta grande de vidro da sala se abre. Meus ombros se lançam mais rápidos que a pernas e eu já começo a rir porque não tem nada mais engraçado do que eu fazendo pose em cima do meu destrambelhamento. Você pede ajuda pra me levantar e me coloca na mesinha amarela de ferro da cozinha. Não vai acontecer nada ali, mas a gente adora o ritual da mesinha amarela de ferro da cozinha. Tanto que você já aprendeu a tirar os livros e os remédios para a dor nas costas de cima.
Seu cachorro fica olhando e se perguntando, tenho certeza. O que leva duas pessoas a se relacionarem como cachorros com tanta capacidade para serem humanos. Você deve ter histórias maravilhosas da sua adolescência na França e o seu dia deve ter sido bom, já que você está novamente moído das costas e deprimido daquele jeito que você só fica, imagino eu, quando arruma um trabalho bem divertido pra fazer. E eu, nossa, não se aproveita metade, mas posso falar por horas ininterruptas e te levar a todos os extremos do universo com o que tenho a dizer. Mas a gente está cansado, tão cansado. E algo em nós, que se dá loucamente bem, escolheu assim. Não vamos jamais saber um do outro.
Agora eu sei que é a parte que você bate minha canela na curvinha do corredor. Agora eu sei que é a parte que você treme um pouco os dedos para acertar a agulha no disco que eu nunca ouvi na vida. Agora eu sei que é a parte que a gente se beija com tanto ódio do resto do mundo e com uma cumplicidade bonita de não estar tentando nada. Não estamos tentando absolutamente nada. E por isso mesmo, vem devagar. Agora eu sei que é a parte que você se desnuda como uma "striper", tão rápido e simples. E eu dou um pouco mais de trabalho. Mas não falamos disso e nem de nada. Eu não sei o que você fez hoje ou ontem e nem imagino o que fará amanhã. Como é bom não ouvirmos minha voz, eu tenho tanto bode de mim. Como é bom não ser eu e muito menos ser você. Seu cachorro está tão tranquilo que pode durar mil anos. Eu não sou nada e por isso mesmo entendo que ele está bem assim.
Agora é a hora, a única que falamos. Você diz que gosta da dancinha. Eu digo que não sei do que você está falando. E esse é o limite da gente. Chegamos até aí pro mundo. Mas vamos muito mais longe em algum outro universo que não sabemos e nem queremos saber.

Nenhum comentário:

Postar um comentário