sábado, 2 de outubro de 2010

Alguma coisa

Já que André achou melhor rachar a conta, Sabrina resolveu que não transaria com ele. Isso, claro, não foi assim tão claro. Sabrina, já que André rachou a conta, botou a culpa na botinha de André, que era ridícula. Teve sua parcela de azedamento também o cd de novela que a mãe de André deixou no rádio do Corsinha vermelho de vidros escuros e André nem percebeu, mas cantarolou a estrofe que falava alguma coisa de amor.
Enquanto André contava alguma coisa sobre seu chefe não ter poder nenhum quando o assunto era a pelada da firma, Sabrina fazia uma conta matemática em sua cabeça. E estava chocada. Ela tinha gasto quase quatrocentos paus para estar ali, naquele momento, com o André. Pra quem ela não daria nem a pau.
Foram setenta reais do corte de cabelo, oitenta e cinco da depilação de axilas, meia perna, virilha e buço. Cento e quinze da roupa nova, vinte e três e oitenta pra arrumar o solado da bota velha. Vinte reais de escova. Vinte e nove e noventa no batom que se dizia importado. E cinquenta da conta que ela tinha acabado de rachar.
O André só vestiu a mesma camisa que usava pra trabalhar quando tinha reunião com os diretores da outra filial, a calça que usa na balada já há uns bons dois anos e a botinha ridícula dessas que vemos em anúncios com alguma montanha ao fundo e sacadinhas de publicitários de cabelo espetado e blazer com camiseta da banca de camisetas do tipo “ao invés da sua sogra, diga oi para uma cobra de verdade”. Fora os cinquenta reais e oitenta centavos (ele deixou a garçonete passar os centavos pra conta dele e, se sentindo cavalheiro por isso, ainda esticou as mãos para encontrar as de Sabrina) da conta rachada, ele estava ali, simplesmente com a estupidez nata que Deus lhe deu. Nenhum esforço, nem pra manter o papo num nível mais elevado que sua pífia situação financeira. Talvez com a melhor cueca e o melhor par de mais. Mas Sabrina sabia, o André não faria sexo essa noite. Ele não faria não. Ah, não faria. Não com ela e sua vagina lindamente depilada. Muito menos beijaria sua boquinha de batom importado e desbigodada por quinze reais.
Sabrina não era uma putinha. Sabrina tinha namorado nove anos com seu melhor amigo de infância, um cara sem grana e também com péssimo gosto para sapatos e trilha sonora. Sabrina era louca por esse cara, louca. Ela sabia amar pobres e rachar contas e perdoar gostos duvidosos. Mas o André, por alguma razão, Sabrina não sabia bem qual era, não transaria com ela hoje. Talvez porque ele tivesse rachado a conta num dia errado. Tem dia pra rachar conta. E hoje era um dia muito errado.
O problema é que Sabrina não fazia sexo há um anos e três meses. Desde que o Cleiton, seu melhor amigo de infância, depois de nove anos falando em casamento, resolveu terminar tudo faltando três semanas pro cheque do bem-casado com ovos orgânicos cair. E Sabrina precisava fazer sexo, ela estava batendo punheta com a Bandeirantes. Ela precisava. E André, de tudo que lhe apareceu nesses longos e infinitos dias de solidão e sofrimento e secura, era o menos pior. Pelo menos ele a buscava em casa e borrifava perfume no moletom. Os outros, nem isso.
Começou então uma briga ferrenha no interior da existência de Sabrina. Seu corpo, cansado de não sentir nada lhe apertar além do elástico da calcinha, queria o André, mas algo ainda mais primitivo que qualquer desejo sexual, o afastava. A mulher tem uma coisa dentro de si, algo grosseiro, primário, estupidamente natural. Algo que é como uma voz. Algo que fica entre o hipotálamo e o cu. Uma voz que diz: esse sim, minha filha. Pode abrir as pernas. Esse não. Por mais pirotecnias financeiras ou existencialistas que um homem faça, quem decide a umidade de uma fêmea é essa voz. E o cacete da voz, dizia, apesar das súplicas da periquita depilada de Sabrina: esse, minha filha, não. Esse nem fodendo.
Sabrina colocou seus dois desejos no sofá e sentou no meio. Chega de chute e ponta pé. Eu quero que a vida seja boa pra vocês dois. Igualmente. O sexo precisa de algum motivo, pra não sermos bichos. E os motivos precisam descer de seus andares altíssimos e inalcançáveis, pra que a gente possa se divertir, ainda que um pouco, de vez em quando. E o trato foi: alguma coisa, Sabrina. Esse filha da puta do André pode te comer, mas alguma coisa esse filha da puta tem que fazer antes.
Sabrina lembrou então do seu aparelho de DVD, que ela comprou no final do seu noivado com o Cleiton, quando tinha decidido passar dez anos vendo filmes e nunca mais vivendo de verdade. Ainda na caixa. Ela não sabia instalar. E perguntou se André poderia. Se ele poderia. Ela sabia que não tinha cabimento pedir isso num sábado, três da manhã. Mas ela realmente precisava daquele DVD. Como ela precisava. Há um ano e dois ou três ou sete meses. Afinal, nos meses finais o Cleiton, tenso com o cheque do bem-casado, não ficava mais de pau duro. Então, por favor, André. Mulher só dá como troca e eu preciso dar. Mas antes, preciso calar essa vozinha aqui, que não quer dar pra você. Você não sabe isso seu moleque suburbano idiota? Rachar a conta, que coisa mais feia. Bucetinha é moeda de troca. Ou você bem paga, ou você bem tem o melhor papo do século, ou você bem instala a porra do DVD. Já que você não pagou nada e está há duas horas falando do seu chefe e da pelada das quartas-feiras. Então, André, rola instalar meu DVD?
André, também por instinto, diz que sim. Homem no fundo sabe como é ser homem, só faz que esquece porque às vezes, Sabrina sabe, deve cansar demais ser homem. Se cansa esperar o salvador da pátria, imagina o que não deve cansar ser o tal do salvador. Ou vai ver que é só porque realmente deve ser difícil mesmo ganhar mil e duzentos reais por mês, com descontos, colocar gasolina no Corsinha da mãe e buscar Sabrina que mora onde os taxistas só sabem chegar porque é onde fica a casa da tia solteirona deles. André era o melhor que tinha aparecido desde Cleiton, que era um bosta. A vida é dura.
André não consegue instalar o DVD, o manual tava em espanhol e ele até achou que entendia, mas não entendia não. Sabrina mostra só os peitos.

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