sábado, 2 de outubro de 2010

A pena sem nome

É entre a curiosidade da minha tristeza e a vontade de ligar para alguém esquecido. Um misto de arrogância primitiva com medo de começar a chorar e não parar nunca mais. Foi quase isso que senti ao vê-lo entrar no café. Não sei exatamente porque quando trata-se de feijoada como só porque é o que me colocam na frente mas não dou conta do prato inteiro.
É um homem gordo vestindo os resto de dois trajes sociais, um antigo dele próprio (sei porque é apertado e marrom) e um mais novo, emprestado, num tom de cinza azulado que aquele homem jamais compraria. Ele odeia habitar seu corpo e odeia habitar sua vida, mas fala decoradinho como um telemarketing que precisa bater metas e mofadamente doce como um pum de bis que fica guardado numa sala fechada por dias.
Em suas mãos, o homem lustrado na testa e descaradamente suado na barriga traz um cestinho rendado com trufas preparadas, imagino eu, pela sua mulher (ou mãe ou irmã, talvez ajudadas pela sua filha) que ao menos está fazendo alguma coisa enquanto ele não arruma nada melhor. Ele que pelo menos se encarregue de vender as tais das coisas. E ele se encarrega, com uma humildade e uma falta de força que, por combinarem tão pouco com sua massa, o atrofia. Ele se esforça tanto pra não ter forças. Ele quer vender descontração mas polui o ar com a dor de uma gordura enjaulada. Nem precisa falar que aquele cestinho é quase o oposto de tudo o que aquele homem poderia ser se ele não estivesse ao menos fazendo alguma coisa.
E então eu sinto e é assim mesmo porque lembro de repente que posso sentir assim. É como se uma onda rasteirinha e quente e quase não onda me passasse uma rasteira só porque eu prefiro cair do que ficar em pé olhando a deformidade de alguém que me esmaga porque não pode nada contra mim. E nem contra a sua mulher e nem contra as trufas e nem contra a vontade de morrer que “fazer pelo menos alguma coisa” dá. O dizer que “nem alguma coisa se quer fazer”, seria renegar sua condição de homem, ele pensa, apesar de sentir que sua condição de humano poderia então ter algum resgate.
Essas tem gotas de chocolate amargo, essas são com menta, essas tem doce de leite, essas e essas e essas. A tentativa de cheiro de cozinha feliz, na casa desse homem, deve azedar todo o bairro, a cidade. Comer aquelas trufas é colaborar com alguma forma de escravidão ou terrorismo ou câncer minimalista que corrói até o fim da vida. E pior: não mata nunca mais.
De tudo, o que mais me destrói, é que esse homem guardou sua fúria em um país muito distante daquele café. Sua última esperança em destroçar como um animal aquele cestinho e aqueles doces ficou perdida em algum aniversário de sua filha, a mesma que ajuda nos doces e que, mesmo com uma lagriminha querendo pular do olho direito, entendeu, acariciando algum urso barato e abobado, que o jogo que simula alegria ficaria pra próxima data. Algo assim.
É por ser pai, não sei. É por ter mais anos e mais pesos do que o permitido para alguém amado apenas por ser, não sei. É por ser feio e suar demais, talvez. É pelo terno também. É também por ele que jamais conseguiu o jogo que simula alegrias e continua acariciando algum urso vagabundo e abobado mas que, pelo menos, não sei. Pelo menos estamos todos fazendo alguma coisa.

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