Ontem me perdi, como sempre acontece quando estou perto da sua casa, e fui cair na rua da farmácia, a rua atrás da sua. Ou da frente (é que todo o mundo parece ficar atrás da sua casa, seja a rua que for, seja lá o que isso quer dizer). Algo me carrega pra perto de você, um algo infinitamente pequeno e solitário frente ao imenso e diversificado não que carrego em relação a nós. Isso, de estar por perto e poder vê-lo, sempre me gela o coração e seca a boca, o que é uma besteira pois sem dramas ou dúvidas externadas seguimos com nossas vidas e, também num acordo silencioso e quase sem importância, decidimos manter uma amizade agradável e sem fins sexuais a cada doze ou nove ou dezessete ou onze ou quarenta e três dias.
Não sei se era você, veja bem, te vejo a todos os instantes saindo e entrando de todo e qualquer lugar e nunca, nunca, é você. Às vezes são até mesmo umas pessoas bem feias e diferentes e impossíveis de te lembrar. Mas tudo lembra e assim sigo te vendo por toda parte em todos os instantes (engraçado que no dia que era você não levei susto e cheguei mesmo a pensar que você não é você, mas essa é outra história).
E na rua da farmácia, saindo dela, estava você, ou mais um desses seres que fantasmagoricamente ganham alguns de seus movimentos ou cores ou nadas. E era um você acompanhado, abraçado, a uma garota que me pareceu sem graça, um pouco larga e com um cabelo igualmente sem graça e igualmente recheado, além da conta, para as laterais. Mais velha, mais alta, do que eu. Não era você e acho que inventei um pouco agora sobre a mulher. Era só uma mulher na altura da sua axila e você parecia esmagá-la com intensidade como fazia comigo, poucos meses atrás. Muitos até pode se dizer mas, para mim, poucos.
Segue ali um homem impune, pensei. Um cruel homem impune. Um destruidor de mundo impune, eu pensei. O cara do fogo, da chacina, da faca, da bala, da explosão, de tudo isso que também é amor quando não se sabe ou não se pode simplesmente agir amorosamente. Eu quis abrir a janela do meu carro e gritar, alto, com força e seriedade, até sumir minha voz: peeeeeeeguem! Ladrããão! Mas não fiz nada. Tudo durou um milésimo de segundo e certamente nem era você. Ou era. E essa pobre mulher, gorda e feia em minha imaginação, bonita, madura e leve, em minha imaginação. A mulher da minha imaginação. Essa mulher, pobre coitada. Quando tempo a bexiga murcha que você carrega no peito poderá dar a ela o tal do abraço apertado que você gosta tanto? Aquele que sufoca e depois solta no mundo gélido, de ponta cabeças, com os pés pendurados numa corda que não vemos e por isso mesmo demora a desatar. Nem bem se acostuma a ser amada, a sua mulher, qualquer que seja ela, já que você coleciona e não ama e um dia disse apenas, de mim: “tô com uma mulher”. Nem bem se anda com você no peito, equilibrando a dor que um amor tão evasivo causa por querer tanto correr do peito alheio, pra logo estarmos atravessando sozinhas, as ruas, com medo dos carros desenfreados e do vento que passa levando poeiras e intenções.
Você, meu querido, com tudo que parece ter de bom, inclusive sua tristeza e desânimo, esse presente humilde e falso que sua arrogância dá a quem poderia simplesmente odiar você e fim de papo, impossibilitando que alguém te faça tanto mal já que você chega antes. Você, meu amor, ainda que viva na coragem de tomar na cara os murros do mundo e por isso mesmo possa se ausentar com maestria de tomar unhadas de mocinhas. Você, que o mundo perdoa mas eu não, ainda que eu queira bem mais que ele. Que me causa esse ânimo desolador quando vez ou outra, do outro lado da linha, me faz ouvir mais uma vez essa coisa que me arrasa o dia e a vida mas quase se parece com alegria. Seu pigarro poderia ser o único sopro saudável que escuto quando lembro ou sinto algo.
Você é o homem impune, indo e voltando, todos os dias, pra sua casa e outras casas. O homem impune que depois de tanto sentir e dizer e tentar (tanto em tão pouco), simplesmente saiu mais uma vez da farmácia, com seus pacotes de camisinhas, antiácidos e vontades de esmagar corações nas axilas. O homem impune e mais uma mulher. Se o mundo for justo, se o mundo for realmente justo, um dia vou estar ocupada demais pra viver tão ofendida com pessoas que desfilam amores como se fossem sacolinhas de farmácia. O homem impune atravessando ruas querendo qualquer coisa do outro lado delas, mas apenas pra ter forças pra esperar o sinal e conseguir alcançar esse curto espaço de viver. Não é pelo outro lado, é só pra poder ir. É algo sobre atravessar e nunca sobre chegar. O homem impune e seus paliativos com vencimento, numa sacolinha de farmácia.
Não te atropelei porque eu não quis, e digo isso me referindo a todo o resto.
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