sábado, 2 de outubro de 2010

Bicho Grilo

Começou quando vi um filme dele há uns seis anos. Ele falava de mansinho e vesguinho no ouvido da mulher. E na cena 38 transava com ela. As costas dele me deixaram sabendo que um dia aquilo aconteceria comigo. Ele tem a coisa mais sexy que um homem pode ter que é aquela canaleta definida dividindo lado direito e lado esquerdo das costas. Cismei com o homem. Assim como cismei certa vez com um roqueiro francês que tocava gaita ininterruptamente durante um show de três horas e só sosseguei quando ele saiu da minha casa com o maxilar quase paralisado e a língua do tamanho do seu amor pelo Sergie Gainsbourg. Ah, quando eu quero, tem jeito não.
Depois daquilo, quando ele já tinha sido eleito o homem do ano no festival de cinema do Rio, o encontrei no Bar Balcão. Ele pra variar nem olhou na minha cara. E nem poderia, considerando que não fazia a mais puta ideia de quem era a minha pessoa. Mas uma amiga em comum era sua amiga de infância, e ofereceu carona na hora de ir embora. Eu prontamente me ofereci pra ir junto. Mas você não tá de carro, Tati? Não, roubaram. Acabaram de roubar. E fui junto. Sem conseguir dizer uma única frase que se salvasse no carro. Eu automaticamente me tornei burra, fútil e com voz e interjeições de uma gralha desesperada. Ainda assim, quando chegou na porta da casa dele, ele se despediu de mim e apertou tanto a minha cintura que eu achei que ia cuspir minha pedra no rim pela orelha. E fiquei semanas com aquela dor. Amando aquele homem rude e vesgo como amei poucas coisas na vida. Ou muitas, pra falar a verdade.
E então ele sumiu no mundo e eu amei outros tantos rapazes por aí. Até que ele voltou a aparecer e começou a aparecer em todos os lugares. Ele frequenta absolutamente todos os mesmos lugares que eu. Vou tomar chá da tarde com o Sidão maluco no Paris, lá está ele tomando vinho de cachecol na mesinha ao lado. Sozinho. Sempre sozinho, quando sozinho, de um jeito que poderíamos estar todos num filme pseudo cabeçudo bom de ver quando se quer sentir inteligente mas não muito. E nem por isso pedante, arrogante ou fazendo tipo. Ou sim, fazendo tudo isso. Mas ele tem a canaleta nas costas e apertou minha cintura daquele jeito de ver estrelas. Então, eu decidi que ele é o máximo.
Vou comer croissant no Deli da Vila e lá está ele. Lendo o jornal. Sempre sem olhar na minha cara. Sempre. E ele bate cartão no cinema da Gazeta. Sempre acompanhado daquele povo meio igual e completamente diferente. O povo de teatro. E sempre fazendo rir meninas monstruosas. E super camarada de caras com muita cara de loser. E pra mim, nadinha. Eu me acabo de olhar, fica até chato. Já me acabei de olhar pra ele estando ele, ou eu mesma, acompanhado. Porque é mais forte do que eu. É o homem da canaleta com a apertada de cintura mais alucinante do sistema solar. E nada. Ele simplesmente não me vê. E isso. Ah, e isso me deixa mais a fim ainda desse sujeito. Como eu curto um ser desgraçado que caga pra mim. Que faz rir mulheres medonhas e ignora a existência daquela mocinha tão cheirosa e dadivosa. Com capacidade e intenção de tratá-lo como um rei espanhol e suas mil súditas. E eu fazendo o papel de mil. Sem cansar jamais. Ou cansando assim que ele me olhar.
Aí fiquei amiga da irmã do camarada. Adivinhem como a vida é boa! A irmã do cara deu de ler umas coisas minhas e gostar. E então, eu resolvi falar pra ela que minha missão nessa terra é deslizar meus dedinhos minúsculos e não refilados naquelas costas com a canaleta. E me deixar apertar na cintura por aquelas mãos. Nossa. Só de falar. Pois é.
E a irmã, tão gente boa, me ensinou o caminho das pedras. Ele curte bicho grilo, Tati. Que é isso, cunhada? Ele curte esse povo bicho grilo, sabe? Sei. Sem saber. Mas resolvi me tornar um. Tudo por ele. Tudo. Absolutamente tudo. Tirando cheirar ou engolir, duas das coisas que eu jamais farei em vida, tudo por esse homem. E olha que são tantas outras milhares de coisas terríveis que não incluí na lista das negações. Tais como comer balas com anilina, ir a um motel com promoção de camarões na moranga ou viajar pra Maresias em feriado prolongado.
E foi então que fui ver o monólogo do cara na Virada Cultural. Enfrentei filas e multidões com a coragem e a sabedoria do amor. Ou melhor dizendo, com o comando mais forte da vida de uma fêmea que é a voz da estupidez que vem de baixo. Lutei bravamente contra meu terrível pânico de lugares cheios e com casaizinhos feios dividindo berebas e cheiro de Bozzano e lutei, sobretudo, contra o meu maior e mais absoluto pavor: ser vista por algum amigo publicitário numa fila do SESC vestida tal qual a noiva cadáver do Chuck depois do curso de sociologia na USP (não, eu não me humilhei ao ponto de usar meia Hering com papete chulezenta). Se aquilo não era ser bicho grilo, eu estava, no mínimo, apta a modernizar o real conceito do ser bicho grilo.
Me sentei na primeira fileira. Eu e minha meia arrastão com All Star sujo. Abri minha jaqueta verde guerra pra deixar a camiseta vermelha luta de classes mostrar meu decote vem aqui que vou te mostrar minha virada cultural. E assim pensei estar super dentro das expectativas bizarras do homem que havia se tornado minha mais recente e intensa obsessão sexual da vida inteira.
E ele começou a peça. E fazia o papel de um gay psicopata. Mas vamos em frente. Foco na canaleta e na pegada de cintura que perfura rins. E então. No final da peça. Ele falou sobre o ódio de amar. Como amar dá raiva. E de como ele queria que seu amado morresse. Morresse. Morresse. E foi falando e as luzes apagando. E ele gritava tanto. E nossa. Eu bati palmas pra ele com todos os membros do meu corpo físico. E foi então que eu resolvi que iria atrás desse ser humano até o inferno. E foi o que eu fiz, quando soube que ele jantava quase sempre na Mercearia da Rodézia. O bar dos wanna be Jonh Fante. E olha que eu amo o John Fante. E olha que eu sou uma wanna be John Fante. Mas cara, não consigo. Eu simplesmente não consigo ver aquele povo atormentado escrevendo em guardanapo e fazendo cara de tuberculoso beatnik. Meu filho, quem escreve, escreve. Não monta circo de escritor no meio da praça pública pra falar que escreve. E sim, dá pra escrever e ganhar uns trocos também. Apego a pobreza saiu de moda faz tempo. Ainda mais agora que até banqueiro já tá conseguindo ficar pobre. Não é mais difícil pra ninguém. Entende? Enfim, mas fui até lá.
E então. E então. Ele me viu. Ele estava em pé, esperando uma mesa. Ao lado de uma garota que parecia aquela gorda de cabelo ruim do comercial de cola pra dentadura que diz “agora eu já posso comer carne!”. E ele me viu. E eu fui chegando perto. É agora, Tati! É agora! E fui chegando perto. E ele sorrindo. Pra mim. Com seus olhos vesguinhos. E eu fui chegando perto. Mas o que eu vou dizer quando estiver bem perto? Que quero transar com ele até os olhos dele, tão espremidos e centralizados, pularem vivos pra fora? O que eu quero dizer a ele? Que adorei a peça? E que dediquei meus últimos meses a sonhar com esse momento só porque o vi pelado num filme e me apaixonei pela sua canaleta? E fui chegando perto. Mas o que dizer? Dizer que não tenho nexo mas tenho umas coisas que ficam lindas à meia luz? E então. E então. O filho da puta do garçom chamou meu amado. A mesa estava pronta. Ele sorriu novamente, como que se despedindo daquela maluca mal vestida que andava em sua direção, e virou de costas pra mim. Sim, elas, as malditas costas as quais homenageio semanalmente embaixo de meu edredom. Malditas. E foi se sentar com a colega Corega. Ignorando com todo o esplendor de sua bem dividida coluna vertebral a minha arrasada existência.
E eu. E eu? Bom, mais tarde devo dar um pulo no Reserva Cultural. Ou no Deli Paris. Ou no bar Balcão. Ou mesmo no SESC. Se não for hoje, um dia será. Algumas coisas, por mais impossíveis e malucas que pareçam, a gente sabe, bem no fundo, foram feitas pra um dia dar errado.

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