sábado, 2 de outubro de 2010

Triunfo

Dirijo com cuidado pra torta de pizza de aliche não cair em cima da torta de bolo de frutas com coco. Minha mãe vai o caminho inteiro elucubrando algo tipo o ovo de Páscoa do Palmeiras sair mais barato que o do São Paulo. Enquanto indaga tão grande problemática, ela aponta as pistas da Marginal que parecem prometer andamento mais rápido. Vai o caminho inteiro falando e apontando pistas. Eu controlo minha síndrome do pânico e a torta de pizza de aliche e a torta de bolo de frutas com coco.
Chegamos na rua Triunfo. É estreitinha e cheia de casinhas, algumas são quase cortiços. As pessoas saem nos portões e encaram. As crianças correm magrelas com pipas e eu acho que as pipas é que as seguram para não saírem voando. Algumas pessoas colocam cadeira de praia em frente de casa e batem papo com um desprendimento de ombros típico de quem tem dinheiro guardado para as próximas cinco gerações. Casaizinhos feios namoram e me lembram meu primeiro amor. Eu com a sobrancelha pintada igual a da Malu Mader esperando o Sandrinho passar de coxa depilada e mobilete verde. Até o dia que meu avô jogou um pneu em cima dele e ele sumiu pra sempre.
Catarina, a anã que aterrorizou minha infância, está lá também. Meu avô me dizia que se eu não comesse, ficaria como a Catarina. Ele também me dizia que se eu não fizesse cocô, o cocô, no meio da aula de geografia, começaria a sair por todos os buracos da minha cara. A todos esses comentários, algum parente por perto sempre emendava “e aí, minha filha, quero ver alguém casar com você”. Nessa época eu deveria ter uns sete anos. É, eu hoje poderia ser fácil fácil uma dessas pessoas bem estranhas. Ainda bem que tudo deu super certo e eu sou um mimo de ser.
Passo em frente a casa do Luizinho, o cara mais odiado do mundo. Dizem que até cachorro vira-lata que faz festinha pra mendigo cachaçado de Zulu foge dele. O cara é tão chato que conseguiu ter cheiro e cor de chato. Não me perguntem o que isso quer dizer. Mas é exatamente isso. O cara, um misto de mister Magoo com Jerry Lewis (depois da falha de sistema) com rifeiro de bicicleta usada, exala e imprime chatice. E Luizinho lá está, na porta também, de papo com o Paco. O Paco, quando eu tinha uns sete anos, era tipo o homem mais velho do mundo. Hoje em dia ele é tipo o avô da Hebe. O tio mais velho do Niemeyer. Eu tenho certeza que ele tem duzentos anos na carteira. Até porque pobre das antigas tem sempre um lance de ser registrado uns dez anos depois que nasce. O Paco tem fácil uns duzentos e dez anos.
E então passo em frente a casa da Claudinha. A Claudinha morava de frente para a casa do meu avô e a casa dela era tão animal de trilhardária que diziam ter até elevador. Um dia, quando eu tinha uns sete anos, escapei do banheiro (meu avô me fazia ficar sentada lá dentro até conseguir algum mérito fecal) e invadi a casa da gordinha sem pedir licença. Fui entrando. Queria acabar com essa palhaçada de uma vez. Tem ou não tem elevador, cazzo? E na época, antes do meu avô me buscar para mais uma rodada solitária de bunda formigando, eu descobri a verdade. Mas pra agora esqueci. E não me perdoo por isso.
Chega a vez da casa da Anelise Amanda Botelha. Anelise Amanda Botelha era a gata mor da Triunfo. Tanto que ela namorava o cantor da banda da igreja. Fico me perguntando se aquela gorda loira de cabelo de Poodle com bermudinha rosa justérrima fazendo o w gigante da vagina sufocada é Anelise Amanda Botelha. Se for, ela, hoje, tem quarenta anos a mais que eu. Na época ela tinha só cinco. O tempo não passa pro Paco, mas pra Anelises Amandas Botelhas, corre. Até porque, se não me engano, ela já tava no aborto doze quando eu, virgem de qualquer contato humano, queimei a minha canela no escapamento da mobilete do Sandrinho.
Passo em frente a casa do menino que morreu com alergia de antiinflamatório. Furaram a goela dele com Caneta Bic mas era tarde demais. Fiquei sem comer uma semana por causa dessa história. Mas na semana anterior eu tinha ficado uma semana sem comer porque meu tio fazia um prato com todas as comidas do mundo e, pra acompanhar, tomava leite morno. E na semana seguinte eu fiquei uma semana sem comer porque o fogão explodiu e minha avó, que estava estendendo a roupa na laje, viu o espírito da mãe dela chamando “o fogão, Maria!”. O fato é que eu não comia muito. E não comer muito numa família meio italiana, meio portuguesa, é uma ofensa inteira. Era colherada de óleo de rícino, passe espírita e pediatra toda semana. Essa menina não come! Eu comia, na época, umas cinco vezes mais do que como hoje. Meu café da tarde era digno do meu avô começar a preparar uma hora antes até tudo ficar pronto. Tinha de uvinhas “em molho” em copo de vinagre pra tirar as sujeiras à pão francês com a casca raspada para eu não comer a parte que encostou na mão do padeiro. É, eu poderia ser fácil fácil uma pessoinha bem estranha hoje em dia. Mas sou só um chuchuzinho de ser. Mais normal impossível.
Chego finalmente na casa da minha tia. A torta salgada de pizza de aliche está inteirona assim como a torta doce de bolo de frutas com coco. O cachorro fez cocô no meio da sala mas alguém já jogou perfume no ventilador pra espantar o cheiro. Enquanto a galera ataca a comida (ao meu ver, suficiente para matar a fome de um país inteiro em meses) não deixando nada para o jantar, uma tia recebe o espírito de algum preto velho. Ela sacode as mãos tipo rock and roll. O que seria motivo de atenção caso o camarão não estivesse acabando. Quando a quinta pessoa vem me dizer que eu estou muito magra, minha mãe já está na décima pessoa que veio lhe dizer que ela está muito gorda. Meu primo, que só tem nove anos, é eleito o robusto do mês, com especial mérito ao fato de que ele come tão bem que começa a ter um pouco de mamas. Alguém solta, orgulhoso e genial: “tem mais teta que a Tati!”.
Em cinco minutos preciso ir embora como se não houvesse amanhã. Levo de vaias a tapas na bunda. Me despeço já sabendo que, agora, outro encontro desses demora pelo menos mais uns cinco anos. Até alguém morrer ou minha mãe me ganhar no drama da cardíaca que nunca me pede nada. Proíbo minha mãe de abrir a boca no carro ou apontar qualquer direção. A volta é sempre mais tensa e rápida que a ida. Desovo minha mãe e corro pra casa. Chego aliviada, feliz, longe, outro mundo, passou, nem foi comigo. Ufa. Acabou. E choro. Sempre choro. No fundo, bem no fundo, eu tenho é tanta saudade de tudo.


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