terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Serralheria

Eu sabia que isso mais cedo ou mais tarde viria. Vem sempre depois do tô ótima, melhor que nunca. Vem sempre depois do tô aliviada, melhor assim. E então, quando abafa o grito alegre, abaixa o tudo de bom que sou, recolhe a corrida pelo nem é comigo, chega essa notícia insuportável me lembrando que ficamos pra trás. Deixar a dor vir é como receber o jornal de amanhã com notícias velhas. Essa vontade de ir até uma serralheria de bairro, com cortantes apodrecidos, e pedir: serra eu até eu ficar como ele quer? Serra eu? Tem como me fazer do tamanho que não afasta? Tem como me fazer na medida do que encaixa eternamente? Tem como me fazer sem isso dentro, essa coisa que é a única mas que eu, hoje, por causa dessa atração repentina pela anulação, ou sei lá o quê, não quero mais. Posso abrir mão disso que me mantém viva ou pelo menos me trouxe até aqui? Essa coisa mais forte que tudo e que me diz “se eu não obedecer, nem sobra força de amor pra amar, então que acabe”. Tem como tirar essa minha força motriz, ego desgraçado, sopro de mim mesma me empurrando, o que me fez não sucumbir, o que me nina ainda que seja uma babá malvada, o que me acolhe ainda que seja a bruxa mais terrível. Eu quero embarcar no trem fantasma, então me serra até meus medos e certezas virarem pó de construção. As minhas rebarbas que arranham, tem como refilar? Me faz uma bolinha pequena e lisinha, chuta a bolinha, queria ir parar debaixo da sua cama. Submissa eternamente a sua existência sem furos e passagens e bordas pra carregar. Tem como? Tem como eu me cortar inteira pra montar de um jeito que eu jamais me incomode com esse muito desenfreado que você sente pra de repente não sentir mais nada, nem dúvida? Tem como assoviar e andar feliz mesmo sabendo que você corre antes de esgotar, porque tem pouco aí dentro? Ué, mas não era muito mais que tudo? É infinito ou tão pouquinho que você usa tudo de uma vez pra parecer alguém especial? Tem como sobreviver vendo um espelho tão escancarado e que ao mesmo tempo me deforma? Tem como me fazer nascer de novo, de um jeito que eu só queira você e não o que eu sonho com você? Porque agora, de longe, parece tão fácil. Agora, de longe, se desse, pra te ter por minutos, nossa, eu seria tão feliz. Mas semana passada, gritava dentro de mim, se não fosse pra sempre, se não fossem mil minutos, se não fossem os meus minutos, que eu focasse então em tudo de ruim pra me livrar logo do pouco que ofende ou do egoísmo que bate de frente. Compartilho com você, e nem sei como amadureci tão rápido, da certeza da impossibilidade. Mas sinto sozinha o quanto isso me faz amar você ainda mais. Porque se desse, se eu pudesse, se desse mesmo pra te amar, seria amor e ponto final. Não seria essa coisa que a gente, mais uma e pela última vez compartilhando algo, achamos que é amor. Se existisse no mundo, com suas regras terríveis, uma brecha pra roubar no jogo, se existisse um único vão por onde se escapa do óbvio, se desse mesmo pra passar correndo atrás de Deus e pular no abismo do que queremos porque queremos. Eu escolheria você. Se me dessem um último pedido, eu escolheria você. Se a vida acabasse hoje ou daqui mil anos, eu escolheria você. Eu só não consigo, vejam como essa vida é mesmo uma coisa de deixar qualquer um louco, eu só não consigo escolher você da maneira mais fácil e particular, que é tendo você. Que é sendo você. Mas se eu virar, se eu virasse, esse pó de serra, se eu virasse argila, se eu pudesse ser esculpida por você, o que você faria de mim? Eu queria, eu queria triturar o que sou pra ficar quieta e olhar você. Eu queria calar ou matar essa coisa toda que sou e diz disso sem parar, pra só te ver ou ser pra você. Mas se você soubesse, como foi duro, resgatar tudo e colar ao meu modo, nesses mil anos, pra agora, assim, sem eu nem saber, me assoprar por você. Entende? Porque eu te juro, de todas as coisas do mundo, eu só queria olhar pra você. Ainda que andar cega me deixe daquele jeito e ainda que você jamais vá guiar alguém na escuridão. Seu medo de andar no escuro ou ser necessário. E então vem a merda toda. Eu preciso correr pra ficar em pé, e então corro, e corro, e de pé estou. E de pé, agora, olhando tudo. Também não era isso.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Eu já estive por lá

Outro dia fui ao cinema com um grande amigo. Sentamos um ao ladinho do outro, dividimos uma pipoca gigante, confidenciamos comentários bobos a respeito do filme. Essas coisas que amigos fazem. Tudo corria bem não fosse um incômodo generalizado que eu sentia na alma: “Peraí, mas eu já dormi com esse cara!”. Não adianta, não consigo ser natural. Homens têm razão quando não gostam de ver suas namoradas muito próximas de “amigos” que já experimentaram do doce. Sempre vai rolar uma piadinha do tipo “ah, mas EU sei que você não é realmente loira” ou ainda “pára de ajeitar essa blusa, EU já vi tudo que tem aí embaixo mesmo”. Quem já “esteve por lá” sempre vai se sentir, ainda que inconscientemente, um eterno possuidor de território, mesmo que o outro case ou mude de sexo.São como vacas ou bois carimbados. E aí o meu amigo pergunta se eu quero ficar com o saco na mão, referindo-se à pipoca, claro. E eu não consigo disfarçar uma risada eminente. Depois ele pergunta se eu quero uma carona pra voltar pra casa ou prefiro “me virar”. E eu quase me vejo explicando pra ele, de novo, que não curto esse papo de me virar. Mas apenas sorrio e fujo dali o mais rápido possível. Uma vez pelada para uma pessoa, parece que você nunca mais se sentirá de roupa na frente dela. Pior é quando seu ex-parceiro sexual começa a namorar uma amiga. E todo mundo dá uma de civilizado e sai junto, afinal, “faz aí uns bons cinco anos que você saiu com o cara e nem rolou nada muito forte entre vocês”.E você tenta desfocar o máximo que pode das lembranças, mas é só ele abrir a boca com aquela língua presa e a voz na salada, que você lembra que ele parece o Pato Donald tendo prazer. E não consegue disfarçar um pouco de pena que sente da sua amiga. Ela, mais cedo ou mais tarde, vai se encher daqueles gemidos de gás hélio que ele dá.

Bodinho preto

A verdade é que não estou nem aí pra nenhum de vocês. Eu só preciso dar cara para a minha dor. Eu só preciso abraçar o gigante bode preto que é e sempre foi o meu melhor amigo.
Preciso mais uma vez coçar a coceira, furar a ferida, esguichar o pus. Por alguma razão bizarra, sou viciada nessa merda toda.
Logo depois que você divide o corredor comigo. Você e o ser para o qual não vou dar apelidos porque parei com isso, eu me jogo no chão de tanta dor. Lembrando como era lindo dividir nossas músicas que sempre viravam hits para nossas impossibilidades. E como era lindo iluminar o escuro dos esconderijos com os seus olhos. E então te amo de novo, infinitamente, quase sem ar.
E depois isso passa. Depois te esqueço. Como já esqueci tantas vezes. E você não é mais ninguém como de fato já não é há muito tempo.
Mas preciso de mais. E então me recordo mais uma vez dele e seu sorriso congelado. Nenhuma pedra minha sequer arranhou sua pintura perfeita. A imagem é sempre dele indo embora com a roupa cheirosa, o topete impecável, os dentes fortes e a vida ajeitada. E de eu ficando pra trás rasgada, suja, cuspindo sangue e sentindo uma falta absurda de alguns motivos para viver que ele roubou para se abastecer.
E lembro que todo mundo quase quer me contar alguma coisa sobre ele. E eu não deixo nada chegar achando que com isso me protejo. Mas na verdade é para manter a curiosidade e doer ainda mais. Para eu poder imaginar tantas coisas piores do que poderiam ser a realidade. E mais uma vez deixar doer, doer, doer. E abraçar o bodinho preto. Meu brother. Bodinho preto velho de guerra.
Mas isso também passa. Afinal, minha mais recente descoberta é que já posso me esquecer por novos assuntos. Genial. E então me lembro do cabelo que pode ser tantas coisas e não é nenhuma. Pode ser liso ou cacheado. Pode ser castanho ou preto. Pode ser armado ou careta. É o cabelo mais lindo do mundo. Daqueles pra enfiar os dedos e comandar a vida. E depois ver a vida escorrer pelos dedos.
Decorei seus três tipos de sorriso de tanto entrar no seu site e te ver na tv e sonhar com você. Em todas as minhas telas só passa você. O com os olhos escancarados que te deixa com cara de bobo, o de menino que te deixa com cara de só mais um menino e o de orgulhoso, que te deixa com cara da pessoa que pode me magoar.
E isso dói, dói, dói. Vem bodinho preto, abraça eu, isso. Vem e me leva cavalgar pelo inferno. Delícia.
E isso também passa. E em minutos seu cabelo já não tem mais importância nenhuma. Já nem lembro que você existe e prefiro ver o último capítulo da novela. Mas eu preciso de mais. E então volto a dividir o corredor com você e o ser para o qual não vou dar nomes porque não faço mais isso. E depois tento jogar pedras na pintura e ele vai embora de novo sorrindo. E enfio em pensamento meus dedos pelos seus cachos.
E todos são a mesma pessoa. Pessoas que não são ninguém. Que nunca existiram a não ser aqui, entre essas linhas. Só quem existe é ele. O imutável companheiro de uma vida inteira. Sim, o bodinho preto. O bodinho que me trouxe até aqui e agora eu tenho um medo danado de seguir em frente sem ele.
Ser feliz é a coisa mais aterrorizante do mundo.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O CHORO DA VIRADA

Talvez na infância fosse diferente, não lembro agora. Só sei que, até onde vai a minha memória, não me recordo de nenhuma meia-noite de réveillon em que eu não tenha me acabado de chorar.

Não existe um motivo específico nem uma dor absurda. A verdade é que tento segurar as lágrimas o máximo que posso, afinal, é até pecado chorar numa situação tão vantajosa. Veja bem, apesar de morar em um país que elege um presidente por causa de uns trocados para amenizar a situação miserável, nunca passei fome, nunca passei frio, nunca me faltou acesso à educação e à cultura, nunca fiquei desempregada e nunca tive nenhum parente ou amigo próximo vítima de alguma violência significativa. Minha vida é boa, muito boa. Então, por que raios choro tanto?

Talvez seja justamente essa constatação: de que sou uma exceção. Talvez eu chore a dor dos outros, a fome dos outros, o frio dos outros, a estupidez dos outros, o presidente e os ladrões de todos. Mas será mesmo que eu penso em tudo isso na praia da moda? Com o vestidinho da moda, o champanhe da moda e a companhia do momento? Grandes chances de eu chorar minha futilidade.

Outra opção seria a saudade que sinto dos entes queridos que já se foram. Mas “entes queridos que já se foram” é uma frase muito brega, não é? Vovô e vovó fazem falta, sem dúvida nenhuma, mas todo netinho cresce sabendo que, se tudo der certo, eles serão os primeiros a partir. Portanto, não considero tais perdas nenhuma dor absurda ou motivo de inconformismo. Tenho mãe, pai, cachorro, amigos, emprego, saúde, paquerinhas, dinheiro. Por que o rio de lágrimas?

MEDO DO FIM?
Tá, este ano talvez eu tenha um bom motivo pra tentar borrar o rímel à prova d’água: perdi um grande amor, talvez o maior deles até hoje. Com certeza o maior deles. Mas quem nunca sofreu desse mal? Tenho até que agradecer ao dito-cujo, sofrer por amor é o grande presente que uma alma arrogante pode ganhar.

Começo 2007 muito mais humana, inteira, madura e... realista.

Será que é isso? Choro a perda da infância e da pureza? Choro a saudade da adolescência, quando eu ainda acreditava que tudo sairia exatamente como eu imaginava? Será que é a constatação de que a cada ano perco mais um ano? Será que é o medo da morte? O medo do meu fim, do fim dos meus pais, do fim dos meus amigos, do fim da minha cachorra, do fim dos meus amores? Será, afinal, que choro a certeza de que nada é eterno?

Ou será que a coisa não chega nessa profundidade toda e choro apenas a drenagem e a musculação que não deram certo, e eu continuo sem o corpo dos meus sonhos? Choro a falta que me faz mais dinheiro, mais amigos, mais amores, mais conquistas, mais viagens, mais, mais, mais, mais. Grandes chances de eu chorar a falta de mais espiritualidade.

Quer saber? Choro por tudo isso e por nada disso. Choro pela minha bunda caída e pela fome do mundo. Choro pelo meu cabelo desajeitado e pelas crianças descalças pedindo esmolas. Choro porque chorei de emoção quando o Lula ganhou pela primeira vez e de raiva quando ganhou pela segunda. Choro de saudade do meu amor e de esperança de encontrar o próximo, certamente muito melhor. Choro pela minha intensidade do tamanho do mundo e pela minha superficialidade que quase não cabe em mim. Choro de medo de morrer e de alegria por estar viva. Choro de saudade da minha criança que não chorava tanto e, sobretudo, de curiosidade pela minha mulher que um dia vai conseguir ser mais feliz. Choro porque sou a pessoa mais sozinha do mundo e, ao mesmo tempo, só mais uma, em meio a tantos, que chora só porque é lindo começar tudo de novo. Feliz 2007 pra vocês.

53 dias normais

O trânsito de uma hora e meia da Zona Leste, onde moro, até a porta da W/Brasil, onde trabalho, não mudou nada nos últimos dois meses. O Ano Novo, o Natal e o aniversário do meu pai, em dezembro, chegaram como chegam todos os anos - eu mais uma vez me perguntei se era mais um Natal com minha família ou se era menos um.
Ansioso, como sempre, mais um verão chegou na agência. Como era de se esperar, começaram as brigas por causa do ar condicionado. Os homens tiveram que escolher entre as roupinhas de verão da mulherada bronzeada e o frio. Escolheram a gripe.
Na criação, os atrasados continuaram do mesmo jeito, chegando após as nove todos os dias. Após as dez na maioria dos dias. Os teclados do Ruy e do Peralta também permaneceram iguais, funcionando o tempo todo, desde bem cedo, até muito tarde. O Bruno continuou atrapalhado, cheio de desculpas, colando fitas na testa, caçando comida pela agência, achando toda mulher linda, bagunçando mais ainda a sua mesa. Continuou também rendendo absurdamente no final do dia. Mas que horas ele trabalha? Nove horas da noite, dez, às vezes onze, continuou sendo horário de trabalho para aqueles atrasados sempre acusados injustamente.
Dois anos trabalhando na mesma empresa. Já não fico mais sem graça de escovar meus dentes ao lado de redatoras, almoçar com diretores de arte. Um ano trabalhando com o Ruy, acostumei a gostar de ficar até mais tarde na agência. Quando ele tem um tempinho, entre uma cervejinha e outra, na sua mesa, acabo contando mais da minha vida do que contaria para meus pais.
Quem diria que encontrar diariamente Washington Olivetto seria a coisa mais normal do mundo? "De onde veio essa loirinha gostosinha?"
A gente acostuma com tudo nessa vida. Com mais um verão, mais um Natal, mais um diretor de arte, menos um diretor de arte. Acostuma com oito meses sem salário no atendimento sem reclamar. Depois acostuma a reclamar por mais de um ano do salário na criação.

Acostuma com a esperança de mais uma chance como estagiária e com mais uma despedida do melhor estagiário. Acostuma com coisas boas na mesma proporção desanimadora que acostuma com as tristes.
Foi assim que acostumamos com a presença do Washington. Foi assim que acostumamos com a falta dele. Acordamos, colocamos uma roupa bacana, trabalhamos pensando no almoço, almoçamos pensando no trabalho. Acabou o dia e nos resta pensar em todo o resto que existe além da W/Brasil.
Acostumamos. Acomodamos. Deixamos de pensar muitas vezes. Não dá tempo de pensar se planejamos fazer tudo o que precisamos. Recorri assustada à pessoa que mais admiro e respeito na agência quando percebi tamanha acomodação. Meus Deus tudo continua igual! Ele não está aqui e mesmo assim ninguém deixou de ser sacana, falar besteira, gastar dinheiro, transar, morrer de rir, dormir, sentir fome, fazer piadinhas de seqüestro. Será que somos frios? E ele me respondeu que não, somos sobreviventes.
Temos que fingir que está tudo bem até acreditarmos de verdade. Até cairmos em nossa própria lavagem cerebral diária. Temos que continuar apesar das gripes, do trânsito, das brigas com o namorado. Temos que continuar apesar dos corredores silenciosos. Apesar da mesa vazia, do computador cor de rosa, de um monte de revista empilhada.
Ninguém para comentar "como ninguém" os jogos do Corinthians. Ninguém para entender tão bem o Gabriel. Ninguém para elogiar tão bem quem merece elogio. Acostumamos com a falta de euforia, com a falta de genialidade, com a falta de um jeito de andar, de falar com as mãos, de levar a vida. De gostar da vida.
Ninguém para fazer a maior besteira do mundo ficar engraçada. Para ser indiscreto com classe. Para falar alto discretamente. Para ser inconveniente com inocência. Para ser Washington Olivetto sem arrogância. Ninguém para sintetizar a vida tão brilhantemente e com tanta simplicidade.
Cinqüenta e três dias. Mais um dia sem Washington. Menos um dia sem Washington.
 
Eu estava tão acostumada com a angústia que não percebia mais o quanto estava angustiada. Que alívio.
Eu estava tão acostumada a ver vocês, sempre com as mesmas caras, que tinha esquecido como ficam bonitos quando estão cheios de esperança. Estava tão acostumada a trabalhar aqui, que tinha esquecido que um dia esse tinha sido o meu maior sonho.
Eu estava tão acostumada com a falta de amor dos noticiários. "Patrícia, meu amor, te amo, adoro." Graças a Deus você voltou chefe. Quando eu te vir, depois de tanto tempo, acho que vou me emocionar um pouco, mas depois eu acostumo.
 
 

Pot-pourri de assuntos

O que escrever para a próxima coluna? Listo prováveis assuntos: o mercado de trabalho, homens que cospem catarros horrorosos pelas ruas, minha bunda, sexo sem amor, a necessidade de ter alguém pra chamar de amor.

Demoro um dia inteiro para me decidir porque sou indecisa. Não me decido por nenhum porque sou possessiva e filha única: quero todos. Então vamos lá, seguindo a ordem.
Existe um boato por aí que publicitário tem a vida mansa e que todos eles são meio loucos. Isso dá uma coceirinha nos estudantes que acham esse papo muito cool e se matriculam aos montes pelas faculdades do país. Sou redatora publicitária e há dois anos e meio não tenho um salário decente apesar das mais de doze horas trabalhadas por dia. Já mudei de agência seis vezes e já mudei de assunto mais de mil quando amigos e parentes perguntam por que eu não tenho um horário fixo, um salário fixo e um lugar fixo para ir todos os dias. Aturo a crise mundial, a crise do país, a crise do mercado, a crise do mercado publicitário e a crise de meia-idade de colegas de trabalho com seus leões na mesa, suas baleias em casa e a tara por jovenzinhas deslumbradas e em aprendizado.

O boato da loucura é realidade, ninguém normal atura isso tudo. Quanto a ter a vida mansa, que vão todos para a merda antes que eu me esqueça.

Não sei de muitas coisas nesta vida, mas aprendi que entre a paixão e o ódio pela propaganda, tem sempre um catarro. Vou andando pelas ruas pensando em todos os lados bons e ruins da minha profissão: eu crio, eu não tenho um trabalho burocrático, chato, operacional, burro, exato. Eu movimento grana, eu emociono, eu faço as pessoas rirem. Plá, uma catarrada. Eu ganho mal, me deram uma porra de um PC em vez de um Mac, eu fico muito tempo sentada e minha bunda tá horrível, plá, outra catarrada.
Por que diabos esses imundos homens cospem essas melequeiras pelas ruas? Por que diabos? Por que diabos? Como eu odeio isso. ODEIO. Onde está escrito que o mundo permite essa escatologia exposta à luz do dia? Às vezes é preciso desviar para não sentir respingarem resquícios da nojeira no peito do pé. Desejo do fundo do meu coração que todos eles sufoquem entalados com suas crias gosmentas e fiquem tão verdes quanto elas.

Mas ainda mais nojento do que escutar aquela chupada suína que precede o plá da catarrada, é escutar o sugar de tesão de um escroto qualquer que você nunca viu na vida. É aquele "ssssssssss delícia", "ufffffffffffffffff gostosa".
 
Não se anime não, seu neanderthal urbano, que o que você está vendo é apenas o poder de uma calça jeans caríssima, que uma redatora publicitária em começo de carreira com seu salário de merda só pode ter comprado em cinco vezes sem juros. Cê não tá vendo, querido, que por trás disso é apenas a bunda de uma redatora publicitária que sofre várias crises de mercado e não tem tempo para uma academia? Tá caída, mermão! Já não é mais a mesma. Aliás, isso me lembrou a propaganda, mas este assunto já deu.

E por falar em dar... dar não é fazer amor. Dar é dar. Fazer amor é lindo, é sublime, é encantador, é esplêndido, mas dar é bom pra cacete. Dar é aquela coisa que alguém te puxa os cabelos da nuca, te chama de nomes que eu não escreveria, não te vira com delicadeza, não sente vergonha de ritmos animais. Dar é bom. Melhor do que dar, só dar por dar. Dar sem querer casar, sem querer apresentar pra mãe, sem querer dar o primeiro abraço no Ano Novo. Dar porque o cara te esquenta a coluna vertebral, te amolece o gingado, te molha o instinto. Dar porque a vida de uma publicitária em começo de carreira é estressante e dar relaxa. Dar porque se você não der para ele hoje, vai dar amanhã, ou depois de amanhã. Tem caras que você vai acabar dando, não tem jeito. Dar sem esperar ouvir promessas, sem esperar ouvir carinhos, sem esperar ouvir futuro.

Dar é bom. Na hora. Durante um mês. Para as mais desavisadas, talvez por anos. Mas dar é dar demais e ficar vazia. Dar é não ganhar. É não ganhar um "eu te amo" baixinho, perdido no meio do escuro. É não ganhar uma mão no ombro quando o caos da cidade parece querer te abduzir. É não ter alguém pra querer casar, para apresentar pra mãe, pra dar o primeiro abraço de Ano Novo e pra falar: "Que cê acha, amor?". Dar é inevitável, dê mesmo, dê sempre, dê muito. Mas dê mais ainda, muito mais do que qualquer coisa, uma chance ao amor, esse sim é o maior tesão. Esse sim relaxa, cura o mau humor, ameniza todas as crises e faz você flutuar o suficiente pra nem perceber as catarradas na rua."

E VOCÊ? O QUÊ?

Me dei ,me dei ...mudei.
E você, o quê?

Fiz tudo, te dei o meu mundo.
E você o quê?

Joguei, lutei, arrisquei, amei!!!!
Gostei, um amor maior: impossível.
E você o quê?

Ultrapassei meu íntimo.
Fechei meus olhos, os olhos da alma. Decidi ignorar meus padrões.
Ocultei minhas raivas, algumas vezes não deu, disfarcei meus ciúmes, amaciei minhas mágoas.
Sua voz me tranqüilizara, teu sexo me domava.
Fiz como pude e como não pude.
Do seu jeito fui levando, algumas vezes amor próprio me faltou, mas eu só queria seu amor.
Por inúmeras vezes te amava mais do que o tudo...
E pergunto: E você ? O quê ?

Armei sua lona, fiz seu circo , pintei seu mundo. Fiz de você meu primeiro.
Usei suas cores, anulei as minhas.
Aceitei suas verdades intactas, anulei as minhas.
E você amor ? O quê ? O quê você fez?


Despedacei meu ego, levantei nossa bandeira
Me julguei egoísta, fui contra a seu favor.
Chorei, chorei, chorei até faltar vazio em mim.
Fui no fundo, no profundo do meu âmago.
Pra merecer teus carinhos, teus gemidos, tua língua,
teu prazer, teu sorriso, tua atenção, teu apreço.
Pra me sentir mulher, me fiz criança.

Fiz pirraça, cena, novela.
Decorei um texto pra nada dar errado.
Abri a mente, fiz preces, fantasiei um mundo.
Amei teu corpo, teu jeito, teu cheiro,
tua sombra, abri meu peito acreditei na gente.
Desconfiei muito, mas confiei demais
E você amor? O quê ?

Ouviu minha canção? Abriu o peito? Cortou seus cabelos? Trocou de canal?
Falou "aquela" frase? Fez planos pra mim?
Escolheu um filme pra nós dois?
Foi minha companhia para todos os momentos?
Foi a um show? Usou "aquela" blusa? Amou-me de verdade? Pensou em mim?
No que construímos? No que alcançamos?

Tudo um dia tem fim. Tudo na vida tem volta.
Tranqüilo você pode ficar, riscos de amar sem ser amado, você não há de correr não.
Amor de verdade você não sabe diferenciar.
Dizer que vou ser feliz agora? Quem sabe?
Dizer que você vai se dar bem? Tomara!
Aprendizados são pra vida toda, mas amor unilateral na vida da gente uma só vez é suficiente...
 

Somos um livro de citações

Você é uma mulher ou uma lesma? Ou você aprende a dançar a valsa ou abre uma pousada no meio do nada. Quem você pensa que é com esses peitos "mixurucus"? Dá vontade de fazer uma música com o que você escreve. É fácil gostar do difícil.
Tem frases que você não esquece nunca mais, ou porque mudaram sua vida para melhor, mostrando alguma verdade óbvia e nunca antes exposta com tanta força; ou para pior: porque rimaram perfeitamente com a sua baixa auto-estima.
Tem aquelas também que apenas imortalizam-se como um dos melhores elogios que você já recebeu: "você é a mulher mais linda do mundo", me disse uma vez o meu avô, quando eu era criança, com a esperança que eu acreditasse e parasse de subir no bidê para alcançar o espelho do banheiro, podendo causar algum acidente caseiro. Eu acreditei e parei.
Eu era praticamente virgem (só tinha transado, male e male, com um carinha que nem entendia muito da coisa) quando o homem que pontuaria o instante exato da transformação da minha vida pacata e sem grandes emoções, em histórias divertidas, proibidas e complicadas, se virou pra mim, no meio de cerimônias cínicas e timidez quase indecente, e disse, acariciando a aliança gigante: mulher gosta mesmo é de uma encrenca.
Em menos de uma semana, eu era inteira sorriso e confirmava para mim mesma, enquanto ele, atrasado, tomava um banho rápido, a afirmação dita com tanta clareza de incontestação: mulher gosta mesmo é de uma encrenca, e como.


O Serginho, um garoto de onze anos, foi quem mais forte esmurrou minha vaidade pré-adolescente. Mas é também um forte candidato a responsável, hoje, por gavetas e cabides lotados de roupas decotadas. "Quem você pensa que é com esses peitos mixurucus"?, disse, querendo, na imbecilidade de sua mente verde e punheteira, que eu tivesse, aos dez anos, os seios das vagabundas de bocas entreabertas e línguas de fora das revistas que ele deveria colecionar.
Quem eu penso que sou não tem nada a ver com meus peitos, mas parte superficial da minha auto-estima, hoje, eu devo a eles, que cresceram substancialmente nos últimos 15 anos que se seguiram depois que o Serginho, hoje gordo, careca e casado com uma despeitada, desbundada e sem nenhum sal, ousou dizer a frase que me deixaria corcunda, deprimida e mais pobre (por causa das terapias e fisioterapias) durante a adolescência. Frases são macabras com as crianças.
Pode apostar, as frases que mais te marcaram, e mais são responsáveis por muito do que você é hoje, você ouviu na infância. Assim como Freud, na minha opinião, estava certo quando elevava o sexo ao centro de suas especulações a respeito das razões humanas, também não estava errado quando dizia que tudo é culpa da sua mãe, do seu pai e de quem mais participou da sua criação. "Mas eu também amo você", foi o que minha mãe me disse quando eu, aos dez e poucos anos (o idadezinha marcada pela desgraça) perguntei se ela amava o namorado. Errado mãe, você deveria ter respondido "mas eu amo muito mais você", eu não tenho dúvidas de que eu era a predileta, afinal, filho é filho e ela nunca deixou de me colocar em primeiro lugar, mas não foi o que ela respondeu, naquele momento em que me enchi de coragem para testar o quanto o centro do mundo (que aos 10 anos é a sua mãe) me amava, simplesmente não foi. E foi naquele dia que ela, fritando um bife e sem paciência para conjeturar sobre as coisas da vida, me apresentou para a minha alma solitária e cheia de ódios.

Posso estar cercada de mundo que me sinto numa ilha deserta. Posso estar cercada de amor que me sinto traída e posta de lado. Estou sempre em busca do verdadeiro amor, só meu, só para mim, e estou completamente cega para ele.
Mas foi também, naquele momento, que eu criei a consciência de que eu não era única no universo e que, para sobreviver, tinha que aprender a dura arte de dividir meu espaço com o mundo. Tudo isso entre uma virada e outra no bife.
Outra dos meus pais, muito repetida durante toda a minha adolescência e super esclarecedora e motivadora para quem está em busca da própria identidade: "você é igual seu pai", dizia minha mãe. "Igualzinha à mãe", dizia meu pai. É, na loucura com certeza eu herdei muito dos dois.
Mas apesar dos garotos estúpidos de onze anos que, no auge da sua insegurança com as mulheres (auge que dura até os trinta e poucos anos) só querem detonar com elas, dos deslizes dos pais e mães que, ao contrário do que a gente espera, são humanos e também erram, das armadilhas da vida (que são ainda mais atrozes para uma menina mimada e filha única), e dos homens divertidos que nos alertam que a vida também pode ser muito divertida e o nosso corpo também pode divertí-los bastante, um dia a gente cresce e precisa trabalhar. Trabalhar para valer, ser alguém. "Eu não vou perder por pouco" me disse, uma vez, o meu chefe querido que me deu a primeira chance para virar uma redatora e continua não perdendo por pouco chegando todos os dias antes de todo mundo e indo embora depois. Para mim ele é perfeito, para a família, bom, vamos esperar um dia um texto do filho dele falando sobre seus próprios traumas, tipo esperar o pai até duas da manhã todos os dias e nem vê-lo sair pela manhã.

"Eu não vou perder por pouco" é o que me faz continuar escrevendo mesmo quando o meu fortíssimo lado preguiçoso tenta me convencer de que o trabalho já está pronto. Lado preguiçoso que sempre foi comentado, com maestria, simplicidade e ironia, pelo meu avô, que entre outras frases célebres ao meu respeito, como "onde encosta, dorme", referia- se à minha preguiça dizendo "essa aí não vai dar em nada". Lembro disso achando graça, beleza e com a certeza de que ele estava errado, taí o Domenico de Massi que não me deixa mentir.
Mas nem tudo são flores na vida de quem luta por um lugar ao Sol: cá estou eu, mais uma vez, sem um grande amor. E isso, para botar um sorriso esculachado nesse meu rosto, que segundo um inesquecível namorado "é dotado de uma beleza renascentista", me lembra a despreocupada frase de um amigo, excelente redator e extremamente charmoso, que me disse, certa vez, no meio de uma de suas risadas escandalosas: "ce já tá na pior, piorar não vai".
E piorar não vai mesmo, "o mundo pode desabar que eu continuo de pé", é o que minha psicóloga, muito bem paga por toda a minha adolescência, tentou colocar na minha cabeça, como um mantra, e conseguiu. Essa frase sempre grita na minha mente quando o corpo tende a dar umas tombadas medrosas e fracas.

E assim vou seguindo, às vezes deitada, às vezes curvada, às vezes de quatro, mas sempre de pé, minha vida. Com a certeza de que sou uma mulher, e não uma lesma, como me desafiou uma mega atleta da faculdade, quando meu viu parar, esbaforida, no meio da escada de cinco andares que nos levava até a classe.
Vou seguindo, dançando a valsa da sociedade enquanto me convir, amando o difícil enquanto me der tesão e tentando escrever textos que causem qualquer coisa em qualquer pessoa. Assim como um texto do Walcyr Carrasco, na Vejinha, que dizia como uma frase dele, a respeito dos escritores, tinha feito um amigo, que nunca lia, virar um leitor assíduo, me causou a maior vontade de escrever esse texto.
Eu poderia ficar aqui dias inteiros lembrando de ditos memoráveis e contando suas histórias, mas a frase "você fala demais", repetida mais de uma centena de vezes, e boa parte delas por homens que eu adoraria que tivessem me calado à força, me faz lembrar que já é hora de parar.

Comendo o próprio rabo

Ainda é cedo e a vida escurece atrás dele. Tenho um pouco de medo daquelas duas rodelas verde musgo que me encaram como se eu pudesse ser reduzida a um segundo: tem muita sujeira ali naquela alma. Ignoro meu peito amaldiçoando o meio das minhas pernas e aceito o convite para ver de perto o cheiro do ralo. Ele não mora muito longe da doceria e vamos a pé mesmo. A cada passo morre em mim mais e mais da garota que tinha ficado feliz com o brigadeiro de colher.
Adoro camas que não são camas e ele tem uma dessas. Minha vontade é deitar ali e fazer alguma graça, minha vontade é que ele tire meus sapatinhos de boneca com calma e beije meus pés, afinal: pintei minhas unhas de vermelho só para ele. Minha vontade é que ele me pergunte se quero um pouco de chá gelado e se eu gostaria de ver um dos seus filmes estirada nas grandes almofadas.
Mas ele não quer saber dos meus pés, dos meus olhos deslumbrados com aquela vida de cinema, do meu dente sujo de chocolate ou da minha garganta que arde. Ele quer mergulhar em mim, ele quer entrar em mim, ele quer me descobrir a fundo. Mas ele quer tudo isso sem sequer tocar em mim.
Eu mais uma vez me pergunto como é mesmo que se faz a coisa mais profunda do mundo com total superficialidade. Como é que se ama sem amor? Como é que se entrega de dentro de uma prisão? Nunca soube.
Tenho vontade de perguntar baixinho: você não gosta nem um pouquinho de mim? Nem sequer um tiquinho? Olha só: eu tenho os dedinhos do pé bem estranhos. Eles não são absurdamente merecedores de amor? Mas ele não quer perder tempo com dedinhos de pé, pintinhas brancas ou antebraços molinhos. Ele quer morar em mim mas está cagando para todas as belezas da casa.
Algumas horas depois sou devolvida às ruas. Faço o mesmo trajeto mas agora voltando, mas agora sozinha.
Ainda é cedo e eu preciso de amor. Só um pouquinho de amor. Não posso dormir sem paz no coração. Ele não mora muito longe da cama que não era cama e a cada passo esfolo mais e mais meu esmalte vermelho.
 
Quero que ele veja o quanto mudei por causa dele, na esperança de que seu riso congelado saia do automático e eu ganhe um único sorriso verdadeiro. Não foi só o muque que ficou mais duro, mas minha autopiedade também aprendeu a ser menos molenga. <b>Talvez meu amor tenha aprendido a ser menos amor só para nunca deixar de ser amor.</b> Mas ele não quer saber de almas evoluídas, meditações, planos futuros e todos os últimos segundos de uma vida dedicados a ele. Ele quer que eu coloque aquela calcinha preta das antigas e fique de quatro. Mais uma vez me pergunto como é mesmo que se pode viver ou respirar em meio a tantas pessoas e intenções mortas. Mas então ele morreu? Ufa! Doeu, mas doeu pela última vez.
As ruas agora parecem um grande cemitério e eu mais uma vez carrego o peso morto do meu coração. Minhas costas doem e a cada passo mais e mais meus ombros se curvam. Apesar de tudo, ainda é cedo e eu já me conheço bem: não desisto de entregar meu coração a alguém que saiba, finalmente, dar um pouco de chá gelado a ele.
A casa dele não fica muito longe da marcha fúnebre e resolvo passar para fazer uma visita. Quem sabe numa visita eu não volto a visitar minha alegria?
Ele me serve chá quente e me escuta contar tudo sobre esmaltes vermelhos, corações pesados que se arrastam por ruas, ralos e calcinhas pretas. Mas apesar das grandes orelhas que todo velho aprende a ter, ele não está muito interessado em resolver meu problema. Talvez ele me ame, sim, talvez ele me ame aquele pouquinho que eu estava buscando. De todos, talvez ele seja o único que pode me dar, se não um pacote inteiro de rosquinhas, ao menos uma semicircunferência. Já é alguma coisa.
As ruas agora estão todas entrecortadas. Algumas casas têm apenas o telhado, outras apenas o jardim. A vida é só um pouquinho boa, as pessoas são só um pouquinho bonitas e as músicas duram apenas algumas notas. Sou inteira um pseudo algo, desejo pseudo coisas e quase sei para onde ir agora.
O meio homem não fica muito longe da casa que é quase velha.
 
Quer saber de uma coisa? Acho que ainda é cedo. Enquanto ando, perco mais e mais o que eu já nem sei mais o que. Só sei que perco. Mas não posso terminar mais um dia sem amor, não posso. Pago o que for, pego a fila que for, encaro o que for. O lugar está cheio, as pessoas vazias. O lugar está quente, as pessoas frias. O lugar está insuportável, mas as pessoas juram que são legais. Sugo ali, num cantinho qualquer acompanhada de qualquer pessoa, o que pode restar de bom na alma de alguém. Mas ele não quer saber de canudinhos, desentupidores de pia e súplicas por um final ao menos justo. Eu sou um saco com restos de pano preto, achocolatados, plantinhas e tinta vermelha. E ele quer apenas furar o saco, para que eu estoure para bem longe dali. Sem dar nenhum trabalho.
As ruas não existem, não existe mais o que perder, não existe amor em lugar nenhum. Acho que finalmente está ficando tarde demais.

Um banho de feira

Eu estava há meses achando tudo feio, cinza, falso e limitado. Da cama ia para o trabalho, do trabalho para a cama. Me arrumar pra que se não existem pessoas interessantes no mundo? Sair pra que se quase todo mundo é igualmente sem graça? Ir para onde se todos os lugares são feios e sem novidades?
Parei de fazer as unhas, pintar os cabelos, comprar roupas novas e malhar com o Paulão, personal que todo mundo achava lindo, menos eu.
Ao me ouvir comentar que estava há exatos 7 meses sem fazer sexo, minha amiga Laura, baiana legítima, no entanto loira de olhos claros, teve a idéia brilhante: Pai João!
João era seu “pai de santo” desde a adolescência, quando ela precisou de uma forcinha para entrar na faculdade. Depois disso, João de Deus conseguiu emprego, casa própria em São Paulo, namorado e até namorada para sua “filha” loira.
Eu ri incrédula e simpática, acenando que não com todas as partes do meu corpo. Mas ela não se convenceu, ligando para ele no dia seguinte e dando meu nome completo, data de nascimento e outras coisas que não faço idéia.
Às exatas cinco e meia de uma tarde chata de quinta-feira recebo uma ligação em meu celular com o prefixo de Salvador. Achei que meu celular havia sido clonado novamente e não atendi. Mas o tal do João não era homem de desistir fácil e continuou insistindo, até que eu atendi:
-Mia fia, ô lê lê, tu tá com um encosto bravo em cima di ocê, ô lê lê! Vai tomá cinco banho com girassol, hortelã, gengibre, mel e vai me ligá no último dia do banho. Ô lê lê. Ocê vai ve como a vida vai ficar bonita de novo. Upa lê lê!
Fiquei sem entender nada, fiquei fula da vida com a minha amiga que deu meu telefone para aquele homem sem me avisar, fiquei achando que aquele pai de santo era um médico perfeito pras minhas dores de garganta (mel? gengibre?) e não pra minha falta de apetite sexual!

Mas depois parei e pensei: como é que esse homem adivinhou que ando achando tudo feio? Eu não tinha dito isso pra ninguém e, no entando, ele adivinhou! Resumindo: lá fui eu comprar os ingredientes.
Depois de ir a três floriculturas grandes do meu bairro, eu já estava desistindo de encontrar os girassóis, até que me lembrei de uma feira no Parque da Àgua Branca, não muito longe da minha casa, que ocorreria na manhã do dia seguinte. Quem está há sete meses achando a vida um saco, e sem ninguém para amar, pode ficar mais um dia, não é mesmo?
Estacionei dentro do parque e resolvi fazer uma longa caminhada antes de ir às compras. Era bem cedinho e não estava nem frio, nem calor, o tempo perfeito para reparar mais nos outros do que em si mesmo. E foi exatamente o que eu acabei fazendo: reparei nos outros. Crianças, casais de namorados, casais casados, bebês, babás, velhinhos passeando de mãos dadas, intelectuais e seus óculos lendo embaixo de árvores, pessoas correndo no ritmo do Ipod último modelo, atletas acompanhados de profissionais que cronometravam o tempo. Que tempo? O tempo parou para mim, sentei num banquinho para tomar água de coco e, aos poucos, voltei a não julgar tanto a vida e ser mais feliz.
Uma mulher de moletom cor-de-rosa passou por mim e sorriu, ela tinha os olhos bem profundos, o cabelo bem curtinho e a nuca exposta, era tão linda que acompanhei seus passos até ela ficar bem minúscula na minha visão. Na sequência um homem com o shorts mais curto do mundo parou na minha frente para se alongar. Pernas, pêlos, músculos, cheiro de homem. Algo que não acontecia comigo há muito tempo de repente desaflorou: eu fiquei boba, encantada, querendo arrumar os cabelos e passar batom.
Lentamente o dia se impunha, as árvores se mexiam, a poeira de terra levantava, os passarinhos competiam usando o máximo de suas goelas, como em um concurso sertanejo, e as borboletas voavam em bando, ainda que fossem diferentes em tamanho e cores.
 
A feira estava começando a acontecer. Os cachorros dormiam sonolentos nas sombras, os homens fortes descarregavam tudo a que tinham direito. As frutas novinhas e coloridas faziam uma composição linda que explodia aos poucos com o brilho do sol que ainda se espreguiçava.
Eu nunca tinha reparado, mas o dono da barraquinha de verduras era um tipo bem másculo e interessante. Herdeiro de uma fazenda razoavelment e lucrativa… Hmmm fazenda, imagina só a gente andando a cavalo, rolando na grama, dormindo ao som de cigarras e acordando ao som de passarinhos? Delícia. Fiquei até com vontade de fazer uma piada com ver-dura, mas achei que não era o caso, apenas sorri e segui adiante.
Na barraca de flores um homem de terno tentava se resolver entre margaridas e rosas, flores básicas e que dizem muita coisa, pelo menos para mim. Adorei ver aquele homem muito cheiroso desviando de poças e de frutas esmagadas em nome do amor. O amor, que lindo, ele existia sim, ainda havia homens como aquele, gentil, de terno, cheiroso e apaixonado. Homens que acordam cedo e dormem tarde, tudo para agradar uma mulher.
Ou será que ele levaria as flores para uma amante? Ou será que ele levaria as flores para se desculpar por ter uma amante? Gentilmente o homem pagou as margaridas e não quis aceitar o troco, antes de sair apressado para corrigir algum erro ou dar início a ele, dedicou alguns segundos para me devorar com os olhos.
O homem que comprava as maçãs tinha a mão enorme e os dedos fortes, o jovem da barraca de sementes e folhas secas parecia me convidar com seus olhos de loucura para um chá alucinógeno, ainda que estivéssemos falando apenas de camomila. A delicada japonesinha tinha a pele tão clara e macia que me deu vontade de comer vários pêssegos com casca e tudo.
 
O cheiro de manhã misturado ao de mato me deu uma vontade louca de me misturar a todos e sentir o desejo de todos. De repente o mundo inteiro respirava e exalava sexualidade. Eu queria devorar e ser devorada por todos.
Por fim encontrei meus girassóis, comprei logo um monte porque, além do meu banho de cinco dias, me deu vontade também de enfeitar a casa.
Esperei a água esfriar um pouco e joguei uma meleca muito cheirosa e marrom da minha cabeça, que tinha novas mechas loiras, até os eus pés, que usavam agora esmalte vermelho.
O gosto era realmente bom, tanto que dediquei o resto da tarde a dar umas lambidinhas de leve nos meus braços.
Eu tinha recuperado o meu gosto por mim mesma , pela vida e, por consequência: pela minha cidade. São Paulo conseguiu ficar tão bonita quanto uma visão ampla da Baia de Todos os Santos, vista da casa do tal do Pai João, como fiquei sabendo depois.
Não sei se por causa dele ou apenas porque alguém me tinha feito reparar que algo estava errado, eu estava diferente. Talvez, simplesmente porque deve ser normal morrer, de vez em quando, para renascer melhor depois.
O texto deveria acabar aqui, com um fim bonito, poético e até meio religioso. Mas é preciso contar que o meu problema dos sete meses sem “ver a coisa”, com direito a margaridas espalhadas para tudo quando foi lado, também foi resolvido. Ô lê lê, e como foi.

De tudo o que ele me deu, o melhor foi um pé na bunda.

Depois de um bom tempo dizendo que eu era a mulher da vida dele, um belo dia eu recebo um e-mail dizendo "olha, não dá mais". Tá certo que a gente tava quase se matando e que o namoro já tinha acabado mesmo, mas não se termina nenhuma história de amor (e eu ainda amava muito ele) com um e-mail, não é mesmo? Liguei pra tentar conversar e terminar tudo decentemente e ele respondeu "mas agora eu to comendo um lanche com os caras". Enfim, fiquei pra morrer algumas semanas até que decidi que precisava ser uma mulher melhor para ele. Quem sabe eu ficando mais bonita, mais equilibrada ou mais inteligente, ele não voltava pra mim? Foi assim que me matriculei simultaneamente numa academia de ginástica, num centro budista e em um curso de cinema.

Nos meses que se seguiram eu me tornei dos seres mais malhados, calmos, espiritualizados e cinéfilos do planeta. E sabe o que aconteceu? Nada, absolutamente nada, ele continuou não lembrando que eu existia. Aí achei que isso não podia ficar assim, de jeito nenhum, eu precisava ser ainda melhor pra ele, sim, ele tinha que voltar pra mim de qualquer jeito. Decidi ser uma mulher mais feliz, afinal, quando você é feliz com você mesma, você não põe toda a sua felicidade no outro e tudo fica mais leve. Pra isso, larguei de vez a propaganda, que eu não suportava mais, e resolvi me empenhar na carreira de escritora, participei de vários livros, terminei meu próprio livro, ganhei novas colunas em revistas, quintupliquei o número de leitores do meu site e nada aconteceu.

Mas eu sou taurina com ascendente em áries, lua em gêmeos e filha única! Eu não desisto fácil assim de um amor, e então resolvi que eu tinha que ser uma super ultra mulher para ele, só assim ele voltaria pra mim. Foi então que passei 35 dias na Europa, exclusivamente em minha companhia, conhecendo lugares geniais, controlando meu pânico em estar sozinha e longe de casa, me tornando mais culta e vivida. Voltei de viagem e tchân, tchân, tchân: nem sinal de vida.

Comecei um documentário com um grande amigo, aprendi a fazer strip, cortei meu cabelo 145 vezes, aumentei a terapia, li mais uns 30 livros, ajudei os pobres, rezei pra Santo Antonio umas 1.000 vezes, torrei no sol, fiz milhares de cursos de roteiro, astrologia e história, aprendi a nadar, me apaixonei por praia, comprei todas as roupas mais lindas de Paris. Como última cartada para ser a melhor mulher do planeta, eu resolvi ir morar sozinha. Aluguei um apartamento charmoso, decorei tudo brilhantemente, chamei amigos para a inauguração, servi bom vinho e comidinhas feitas, claro, por mim, que também finalmente aprendi a cozinhar. Resultado disso tudo: silêncio absoluto.

O tempo passou, eu continuei acordando e indo dormir todos os dias querendo ser mais feliz para ele, mais bonita para ele, mais mulher para ele. Até que algo sensacional aconteceu. Um belo dia eu acordei tão bonita, tão feliz, tão realizada, tão mulher que eu acabei me tornando mulher demais para ele.

Ele quem mesmo?

O queijo do Amadeo

Eu tinha sido completamente louca por ele. Imaginem só, eu que não suporto papo-furado, doente por um garoto de 19 anos. Era a minha fase Gael Garcia e o garoto era a cara dele, eu faria o mesmo se hoje me aparecesse um clone do Clive Owen.
Ele havia me largado por uma moçoila acéfala de 19 anos, na verdade, ele havia me largado por 347 moçoilas nesse contexto. Na época eu quase morri.
O tempo passou, outras decepções vieram, outras loucuras ocuparam o espaço, o fato é: eu nem lembrava mais que ele existia.
Até que, numa tarde ensolarada em Ubatuba, escuto aquela voz desafinada de quem tem pouco a dizer, mas diz tudo: “Tatizinhaaaaaaahhhh!!!”
Em menos de duas horas estávamos na pousada que ele sempre alugava. Seus 458 amigos igualmente deliciosos e insignificantes estavam perdidos pelo mundo, ou seja: o quarto cheio de tênis, bitucas ilícitas e espumas de barbear, era só nosso.
Não entendi nada do que estava acontecendo. Eu não era mais aquela mulher que um dia achou graça naquele garoto. E pra piorar, aquele filho da mãe já tinha me magoado muito, o que exatamente eu estava fazendo ali?
Tentei relaxar, fechar os olhos, recuperar nem que fosse um centésimo da magia perdida com o tempo… nada. Ele não conseguia me fazer sentir nada, a não ser desdém. Desdém pelo quarto e suas bagunças adolescentes, desdém pela voz desafinada de quem não diz nada que interessa, desdém pelas 347 moçoilas e os 458 amigos. Quanta gente chata, quanta gente chata que tinha ficado no meu passado. Pra que remexer nesse monte de gente chata e superada? Pra que fuçar no passado?
Outro dia eu estava andando por aí, sozinha, feliz da vida. A tarde era composta por uma pracinha, uma sacolinha com miniaturas lindas para meu novo ap e meu sapato de bolinhas. Eu tava que não me aguentava de alegria.
Aí, de repente, vejo ele parando o seu suntuoso carro num boteco nojento. Congelei. Será que ia doer ver o que eu já imaginava que veria um dia?
Logo depois dele, a morena inexpressiva desceu do carro, tirou a calcinha do meio da bunda, tropeçou de leve no meio fio e sorriu sem grandes emoções. Ele, para desespero total do meu ser, colocou a mão direita no ombro dela.
Sentei num banquinho e dediquei horas e horas da minha tarde me dizendo: mas já faz tento tempo, mas já faz tanto tempo, mas já faz tanto tempo.
De nada adiantou o mantra da aceitação, quando vi, eu já estava ligando para ele:
-é você dentro desse boteco nojento com essa morena sem graça?
-…
-não faz isso comigo, por favor, fale comigo, eu posso morrer!
-….
-você não quer falar comigo?
-não!
-por que?
-porque já faz tanto tempo!
Chorei o que ainda me restava de tarde e depois voltei a me perguntar: pra que remexer no passado? Pra que voltar a sentir aqueles tormentos que duraram anos por uma pessoa que já está superada há anos?
Fiquei com essa dúvida na cabeça nos últimos dias. Eu estou numa nova fase tão boa, leve, feliz, equilibrada… então por que raios ainda me pego querendo cheirar poeira mesmo sabendo da minha rinite gravíssima?
Hoje eu acordei com uma vontade louca de comer uma coisa que eu não sabia o que era. Revirei a geladeira, revirei os armários, fui até a padaria da esquina, repassei mentalmente todas as opções do supermercado mais próximo… nada adiantou.
Foi então que, aos poucos, meu paladar melancólico foi me dando pistas a respeito do meu desejo. Tinha cheiro de infância, gosto de sessão da tarde, era fresquinho, geladinho, branco, furadinho e combinava com tudo.
Eu estava alucinada por uma fatia do queijo minas do Amadeo, era isso! Amadeo era um velho português, dono de um armazém famoso no bairro em que morei na minha infância.
Desde que mudei de endereço, há dez anos, e mudei também de cabelo, de carro, de roupas, de gostos, de amores, de amigos e de manias, eu nunca mais tinha comido o tal do queijo minas do Amadeo, sem dúvida, o melhor do mundo.
Peguei um trânsito de uma hora para ir e outro de duas horas para voltar. Quando cheguei em casa, devorei mais de um quilo de queijo e tive a certeza de que, mesmo a gente evoluindo e mudando de ares, uma visita às quinquilharias faz parte da vida, ainda que o preço sejam lágrimas, arrependimentos ou uma baita caganeira.

Meu nome é Tati Pinto

Ela preencheu durante toda a noite o buraco fundo abaixo dos meus olhos, meu cansaço sem fim e sempre enojado de tanta simplicidade masculina.
Enquanto os debilóides arrotavam, riam alto, se amavam quase sexualmente em seus guetos medrosos e nos olhavam como pedaços de carne numa feira em promoção, Teresa tentava aprender a dançar sem cruzar os braços, Teresa tentava aprender a viver sem proteger seu coração.
São tão poucos os momentos de encantamento nessa vida que quis prestar uma homenagem a ela e me esqueci imóvel numa cadeira baixa. Depois quis sobrevoar Teresa e me esquecer de tanto lixo pesado que guardo em mim.
Ela quis ser minha amiga e perguntou inocentemente o que eu fazia da vida, nada demais. O problema é que Teresa é míope e pra falar comigo colou seu rosto no meu rosto.
Queria te contar, Teresa, enquanto tiros os nós do seu cabelo, toda a dor que eu guardo em mim, todo o nojo, toda a sujeira, toda essa merda que eu carrego. Queria te contar sobre tudo isso que me aconteceu, sentindo que liberto o seu shampoo para afastar esse cheiro quase podre de tudo o que quase morreu.
Chega a ser pecado contar isso nos seus ouvidos, mas eu preciso me purificar, eu preciso sentir que esse veneno que me corrói vira groselha quando escorre pela sua orelha. Me desculpe, Tereza, mas você é tão linda que eu vou te enterrar com as minhas merdas.
Ele não me beijava mais e seus olhos não escravos cresciam sobre a minha cabeça enjaulada, até hoje tenho esses pesadelos, ontem mesmo sonhei que a musa dele era um espírito que vagava seguro pelo meu corredor. Todo mundo morreu mas na verdade eu é que me sinto fora desse mundo e embaixo de tantas terras que não são minhas.
Eu me agarrei nas saias de Tereza e fui embora, chicoteada de um lado para o outro. Isso mesmo, minha princesa, me tire daqui, eu estou congelada nessa vida que acabou e tanta vontade de me cortar inteira só pode ser porque preciso derreter esse gelo com o meu sangue, tanta vontade de me rasgar inteira só pode ser porque chegou o tempo de mudar de casca.
Você é linda, você tem útero, você gera vidas, você tem esse buraco enorme e peludo que pode apenas me guardar sumida por uns tempos e nunca mais me furar tanto em praça pública. Não sei o que te dizer, meu amor, não sei o que querer, mas sei que nos seus passinhos pequenos e na sua requebrada quase que como se espreguiçando, eu salvei segundos do meu dia, eu salvei algumas pulsações malucas da minha cabeça que continuam confundindo todo o lixo que deixaram em mim com restos de prazer.
Veja o caldo que eu exalo, esse caldo de dor azeda, como é que se chama mesmo? E Tereza corre até o meu ouvido, seu seio direito é maior que o esquerdo e chega milésimos de segundos antes. Ela fala baixinho colada em mim novamente: é chorume, o nome desse caldo é chorume.
Então dance pra mim, só isso, continue fazendo esse beicinho para fingir que sabe a letra, continue me olhando com esse mistério profundo, negro, de uma criança que equilibra deslumbramento com alguma dor. Esse olhar que só os olhares um pouco árabes têm. Continue rodando a saia, continue ajeitando o ferro do sutiã por baixo da camisetinha justa, continue olhando miopemente para o mundo que pára por você.
Continue, por favor, alivie minhas marteladas, meus tormentos, me tire desse mundo que errou e me aprisionou como perdedora. Só quem quer ganhar muito se aprisiona por perder, e eu sempre quero ganhar muito. Tereza, eu não sei viver, por isso, continue me fazendo de mera espectadora, continue me inebriando com a sua vida.
Se eu sentir qualquer coisa que não seja você, volto a sentir o lixo, volto a me lembrar que aquelas cabeças nojentas e estúpidas querem se enfiar em mim sem nenhuma poesia. Essas cabeças imundas e covardes só prestam para rasgar a nossa verdade que carrega o universo inteiro, só prestam para provar ao mundo que são maiores que a beleza e a interrogação porque podem transformá-las em ódio, e o ódio nunca é bonito e muito menos tem dúvidas.
Quero me agarrar à minha unidade e nunca mais me despedaçar assim, quero me agarrar a tudo o que é meu e nunca mais precisar de ninguém, a não ser você. Quero andar por aí sem sentir que o vento atravessa minhas janelas.
Por favor, Tereza, me ame como só eu posso me amar, me ame com a urgência assustadora que eu cobro do mundo, me ame com o peso sufocante que eu coloco no mundo, me ame com as horas intermináveis que eu espero do mundo. Me ame sem amar porque nenhum amor é assim tão assustador, mas eu vivo assustada e precisando desse amor. Me dê esse amor, nem que seja para eu descobrir finalmente que ele existe e parar de querer tanto ele só pela mania de querer o que não existe.
Tereza corre de volta, eu não ligo que ela tenha um pouco de pêlo escuro no braço, eu não ligo que ela use sapatos de boneca gastos, eu não ligo que ela tenha um fiapo do seu cachecol na sobrancelha, eu não ligo que ela tenha os dentes tão pequenos. Ela se aproxima e me faz a pergunta idiota: você é louca ou se faz de louca? Os dois, meu amor, os dois. Eu me faço de louca para que ninguém descubra que eu sou louca. Agora volte para lá e continue respirando e se mexendo por mim. Volte para lá e continue fazendo eu me sentir um homem nojento com sua pica nojenta pronto para estragar a sua perfeição. Eu preciso me sentir um pouco menos porque a solidão de ser mais é ainda pior do que a mediocridade. Eu preciso vagar como uma besta pelo universo e não ser mais o universo.
Tereza, por favor, enfie esse seu sapato boneca gasto pela minha goela, me enforque com o seu cachecol, faça qualquer coisa para me tirar desse esgoto de porra em que eu vim parar.
Eu não quero lembrar que não me sobrou nada do que eu acreditei que era o meu castelo, nada. Eu não quero me lembrar que, depois do e-mail gigante de parabéns que eu escrevi para ele, ele apenas respondeu que sua namorada vai muito bem, obrigado. Eu não quero me lembrar que, depois do e-mail gigante que eu escrevi para ele, ele me respondeu que estava de férias e tinha deletado tudo, eu não quero me lembrar que, depois do e-mail gigante que eu escrevi para ele, eu apaguei tudo. Eu não quero lembrar que o mundo é simples e segue em frente enquanto eu não consigo nem levantar mais da minha cama de tanto que eu peso.
Eu não quero mais nenhuma mão nojenta tentando segurar os poucos fios que eu deixei na nuca, não quero mais que ele me ligue de madrugada só para me comer e me fale naquele sotaque meio paraíba meio argentino que eu sou muito novinha para entender a vida. Ele que é muito velho para estar vivo.
Eu não quero mais desejar aquele velho filho-da-puta que responde cada dor minha com o seu típico “hehehehehe” de quem disfarça a nossa história ou faz de conta que não sabe o quanto me assusto com pessoas rasas.
Eu não sei o que fazer, por favor, chame o carro, me tire daqui, me leve ver o pôr-do-sol, diga que vai ficar tudo bem. Eu preciso ver coisas bonitas, eu preciso sentir coisas bonitas, eu preciso não viver mais dentro desse planeta arrasado pela guerra e pelo cheiro de carniça.
Eu não sei mais o que fazer se tenho nojo de todo mundo, medo de todo mundo, descrença em todo mundo. Como se vive num mundo tão hipócrita tendo tanta verdade dentro do coração? Como, depois de tantas noites em claro agradecendo a Deus por aquela visão, a visão simplesmente sorri o mais alto possível da minha dor, arregala os olhos o máximo que pode para a minha cegueira e simplesmente vai comer um lanche no boteco da esquina?
No que eu devo acreditar agora, Tereza? Por favor, apenas seja você. Não abra mais a boca, não queira saber nada de mim, não me deixe mais sentir seu seio direito no meu braço, não vá embora, não queira entender a vida. Apenas permaneça exatamente assim, dançando alegremente e sem que isso a torne menos especial. Eu sei que a gente dança não porque é feliz, mas porque ficar feliz no meio de tudo isso também faz parte. E eu estou feliz olhando você feliz.
Então, por favor, volte aqui. Sei lá por que, e isso nunca tinha me acontecido, eu preciso que você exista tão enorme na minha visão que não sobre um centímetro do quadro para qualquer outra pessoa.
Eu quero sentar você no meu colo, eu quero enfiar meu cérebro inimigo no meio da sua nuca quente, eu quero agarrar as suas pernas e dirigir você pra sempre. Eu quero amar alguém de verdade, e você, sozinha nesse cantinho, com seus passos, seus sorrisos e sua preguiça de sentar naquele vaso imundo pra fazer xixi, é a única coisa de verdade que eu conheço.
Eles não, eles mijam em qualquer canto, eles dormem sujos, eles comem qualquer vadia, eles esquecem tanto amor, eles batem punheta vendo canal pago, eles trocam tantas trocas inteligentes e profundas por um e-mail de agradecimento mais curto e grosso que seus paus. Eles não imaginam o que se passa dentro da gente, mas eu sei o que se passa dentro de você, Tereza, e só por isso sou digna de estar aí dentro.
E, se por um acaso, meu amor, você precisar da minha superficialidade, te dou meus dedos todos, meu cotovelo, meus pés, meu queixo, meu nariz, minha língua, te dou todos os meus cantos, Tereza.
Agora vá embora, por favor, eu sou mulher demais para ser prática, eu sou mulher demais para colocar um final em tudo isso, eu sou mulher demais para corromper a sua dança.

Larga a mão de ser criança.

Tatá era uma criança muito pensativa, entediada e sofria da pior síndrome psicológica que uma criança pode sofrer: não se sentia desse planeta.
Ela fazia todo mundo rir com suas danças esdrúxulas, suas caretas bizarras e seu raciocínio incomum, mas por dentro ela sabia que todo mundo ria e ia embora, logo ela estaria de volta ao seu solitário e chato planetinha neurose.
Um dia, quando Tatá tinha lá pelos seus sete anos, eu sentei com ela na escada vermelha da casa da nossa avó e prometi, acreditando na promessa: calma garotinha pálida de perninhas tortas, um dia você vai viver uma vida de cinema, um dia todos os dias serão incríveis, todas as comidas serão de chefs renomados (desde aquele tempo eu já era metida), todos os amores serão intensos e eternos, todos os dinheiros serão acessíveis, todas as viagens serão possíveis, todos os amigos morrerão pela sua companhia, todas as casas serão com vista para o mar e um campo florido, todas as tardes serão lilás, todas as noites estarão à sua espera.
Tatá arregalou os olhos, me abraçou e nunca mais chorou pedindo a Deus uma vida com mais emoções. Sempre que ela comia quiabo ou assistia a algums desses programas dominicais com a família inteira roncando na sala, ela apenas se dizia em voz baixa: um dia nada será rotina, nada será chato, nada será morno, nada será banal. Um dia eu vou acontecer e o mundo estará aos meus pés.
Esse foi o jeito que eu arrumei, na época, de seguir em frente. Sim, as garotinhas bailarinas do recreio desfilavam enquanto ninguém olhava pra mim, as crianças normais praticavam esportes e nadavam no mar enquanto eu e meus óculos fugíamos de bolas e serenos, afinal, minha família sempre me fez acreditar que eu era mais frágil (e vai ver eu era…).
Sim, as crianças normais do meu prédio se machucavam na quadra, tomavam chuva, pegavam doenças estranhas umas das outras (eu nunca tive um sarampinho na vida!) e vire e mexe subiam o elevador chorando e aprendendo a parar de chorar. Eu brincava o tempo todo no carpete da sala, sempre protegida de tudo e de todos, menos da minha cabecinha maluca que achava que o mundo todo era feliz e se divertia muito, menos eu.
Mas tudo bem, eu pensava, um dia vou nadar mais que todo mundo, praticar esportes mais que todo mundo, ir para a praia mais que todo mundo, ter mais amigos que todo mundo, ser mais bonita que todo mundo, mais rica, mais popular, mais amada, mais desejada, mais inteligente, mais incrível… tudo bem, é só eu ter paciência, um dia eu vou ser a melhor do mundo.
Vinte anos depois aqui estou eu, mais meia boca do que nunca. Não sei mais se quero publicar um livro, será que essas linhas valem uma capa? Não sei mais se quero amar alguém, afinal, o amor é imperfeito e sempre me decepciona. Se com 27 anos não consegui ter o corpo das atrizes do Malhação, não vai ser com 37.
Eu não conquistei o mundo porra nenhuma, muito pelo contrário, eu não conquistei nem a minha cachorra, que prefere a empregada.
Não dei um jeito no rodamoinho do meu cabelo sempre sem jeito, não dei um jeito na minha canela fina, não dei um jeito na minha bunda de preguiçosa. Continuo fugindo de bolas, friagens, águas profundas e vírus. Tenho sim uma boa centena de amigos, mas só gosto, e de vez em quando tenho saco, para uns dois ou três.
Outro dia desses eu ganhei uma viagem para ficar num hotel mil estrelas com mil mordomias, mil festas e com vista para a Riviera Francesa. Adivinhem? Acordava triste todos os dias, afinal, não era bem a Riviera Francesa que eu tinha me prometido há 20 anos, era o mundo inteiro.
Não aguento nenhum emprego, afinal, todos são chatos. Não aguento nenhum namorado, afinal, nenhum é perfeito. Não aguento mais levantar da cama de manhã, afinal, nenhum dia é exatamente como eu gostaria que fosse. Não me aguento mais, afinal, eu não virei a mulher que eu queria.
Eu era uma fraude, um erro, eu não tinha dado certo. Minha vida era chata, meu dia era chato, as raras felicidades sempre acabavam ou se mostravam mentiras da minha cabeça. Quem ia me aturar assim, sempre insatisfeita? Eu própria não dava conta das minhas exigências e não me suportava mais. Tudo tinha dado errado, eu continuava me sentindo de outro planeta e, pra piorar, eu tinha mentido para a minha menininha, a única que eu prometi fazer feliz na vida.
Escolhi o vigésimo andar do prédio que eu trabalho e dalí fiquei olhando para a infinita escada vermelha. Estava decidida, fechei os olhos, levantei os pés, soltei a mão do corrimão, enclinei o corpo.
De repente, uma mãozinha pequena e gorducha agarrou na minha camisa e me puxou com uma força que eu jamais poderia acreditar que era dela. Estava escuro mas eu reconheci o rodamoinho na testa, as botinhas ortopédicas e os dentes cheios de aparelho. Foi então que ela me disse, ajeitando os óculos: ei, larga a mão de ser criança!

Gira-gira

Eu tinha treze anos, ele uns quinze. Não lembro o nome exatamente, mas me recordo que ele torcia para o Palmeiras e,quando tinha jogo, eu escutava seus berros desafinados.Ele tinha as sobrancelhas grossas e pulava na piscina gelada sem medo de levar bronca da mãe.
A roupa dele tinha cheiro de amaciante e por alguma razão aquilo me trazia conforto.
Um dia ele olhou bem no fundo dos meus olhos, apertou meu braço e disse que à noite eu teria uma surpresa.
Eu esperei por ele a noite toda,de pé,espiando pela janela do meu quarto.Meu quarto ainda tinha bonecas e bichinhos de pelúcia,e todos eles tiveram pena do meu cansaço e da minha ingenuidade.
No dia seguinte eu acordei sem hálito de criança e perdi pra sempre o doce da boca.Eu tive minha primeira azia com lactose no café da manhã e vomitei.Foi a última vez que vomitei na vida.
Eu tinha dez anos,ele também. nome era Felipe e ele se sentava duas carteiras à frente da minha.Ele jogava bola tão bem que podia faltar à aula para ir aos campeonatos da escola.
Um dia ele escreveu "Te amo,quer namorar comigo?" num bilhete e entregou para mim.Eu lembro que li e tive uma tontura tão grande que achei que fosse morrer antes da prova de matemática(e fiquei feliz, porque não tinha estudado).
Quando fechei o bilhete,vi que estava escrito "Melissa".Ele havia dado o bilhete apenas para eu entregar para a menina que sentava atrás de mim.
Eu senti tanta vergonha,tanta vergonha,tanta vergonha,que pedi à professora para ir ao banheiro.Quando cheguei no banheiro,fiz várias caretas para o espelho.Até hoje não sei por que exatamente.Talvez quisesse ficar tão feia quanto estava me sentindo.
A calça da escola me deixava horrível e eu amarrava o moletom na cintura.A Melissa não precisava disso,ela ficava linda naquela calça,era bailarina.Apertei tão forte aquele moletom na minha barriga que as marcas do elástico ficaram por quatro dias desenhadas na minha cintura.

Eu tinha 5 anos, ele 6. Ele se chamava Thiago e tinha um irmão chamado Pablo. Ele corria tanto com o gira-gira que eu achava que meu coração fosse pular pela boca. Ele colocava a mão sobre a minha quando eu fazia que ia sair do gira-gira, e apertava a minha mão. Eu sempre fazia que ia sair só para ele colocar a mão sobre a minha.
Um dia eu simplesmente o agarrei e dei um beijo de língua nele. A professora chamou minha mãe na escola para contar e minha mãe, puxando de leve a minha maria-chiquinha, perguntou à professora quem era o Thiago.
"É aquele ali na aula de ginástica." Quando olhamos, ele estava todo sujo e com o nariz escorrendo.
Eu ouvi da minha família toda, até poucos anos atrás, que eu gostava de "ranhentos".
Um dia ele me trocou pela Dani, uma garotinha de sardas que tinha irmãos e não usava botinhas ortopédicas. Eu lembro até hoje de ter perguntado à minha mãe se sardas eram doença. Torcendo muito para serem.
Hoje tenho 25 e eles têm idades, nomes e manias variadas. E por mais que eu olhe para o meu escarpin, ainda vejo aquelas botas grosseiras numa canelinha fina.
As Danis com sardas e Melissas bailarinas ainda existem, e elas continuam tendo a família mais descolada do mundo e ficando lindas em calças de moletom.
Por mais que meu corpo durma, minha alma continua na janela esperando você aparecer, ingênua e cansada.
Eu continuo acordando todos os dias com saudade do doce e com medo do azedo. Eu continuo fazendo caretas e sou a única que não vejo muita graça nelas.
O gira-gira não pára nunca, meu coração continua acelerado e continuo fazendo que vou pular fora para você me socorrer. Para você segurar bem firme na minha mão e me fazer ter coragem de arriscar o vento na cara e o mundo muito rápido. Coragem para o mundo que dá tantas voltas.
Eu ainda espero chegar a minha vez de receber o bilhete "Te amo. Quer namorar comigo?" apesar do moletom na cintura e das marcas causadas por ele e por todo o resto.

Muito prazer (2005)

Uma breve apresentação da minha pessoa para o ano que chega.

Eu tenho medos bobos e coragens absurdas. Eu vivo cercada de pessoas por fora da minha bolha egocêntrica, infantil e sensível.

Eu preciso de sal e açúcar para não virar os olhos de pressão baixa e hipoglicemia, já tive ptiríase aliquenóide crônica e tenho prolapso da válvula mitral.

Eu quase nunca sei se uma palavra começa com e ou com i.

Escrevo por três motivos simples: preciso aparecer e não sou bonita o suficiente, preciso matar o tempo e preciso não morrer.

Sou fútil, entro em pânico pela moda, mas meto um chinelinho pra parecer desencanada. Sou romântica, entro em pânico por não ser amada, mas meto um... Bom vocês já entenderam o contexto pobre.

Eu vivo à espera daquele momento, mas não sei que porra de momento é esse.

Às vezes sinto cheiros e morro de saudades de coisas que já não me lembro mais.

Eu me orgulho de todas as minhas lembranças ingênuas, mas tenho consciência de que foi a minha fragilidade cansada que me transformou numa pessoa irônica.

Eu tenho uma risada escandalosa que me envergonha e uma mania ridícula de imitar a Madonna nas pistas de dança. Às vezes eu só queria estar deitada com meu diário, olhando as estrelas e me masturbando, igual o Leonardo DiCaprio naquele filme de drogados.

Passo metade do dia odiando minha vida e querendo ser sugada pela minha própria insignificância. A outra metade passo rindo do quanto sou dramática e exagerada.

Eu sei de cor o nome de todos eles, mas faço de conta que já perdi a conta. Eu sei de cor tudo o que tenho que fazer para dar certo, mas tenho medo da responsabilidade de ser notada.

Adoro o toque do telefone que quebra o barulho do abandono, a força leve da caneta no papel que pode transformar tantas coisas e o som do carro chegando na chuva para me salvar. Eu adoro ouvir música bem alta, do som da agulha no disco e do resto do Sol que entra pela janela me trazendo calmaria por pertencer a algo e faniquito por não pertencer a tudo.


Às vezes, eu gosto apenas da folha em branco, do silêncio, da noite e da janela fechada, de preferência todos juntos.

Adoro o som de crianças num parquinho, mas como nem tudo são flores adoro o pai sentado no banquinho da praça louco para brincar no trepa-trepa.

Apesar da minha espera em viver um agrande amor, abasteço meus buracos de falsos cognatos. Homens que parecem ser.

Acho tudo o que se refere ao amor extremamente brega. Acho tudo o que não se refere ao amor extremamente infeliz.

Não sou lésbica mas adoro as mulheres, seus cheiros, cabelos, cinturas e mil faces para disfarçar o óbvio. Quando vejo uma mulher bonita, em vez de invejá-la me pego imaginando como ela seria fazendo amor: suas caras, bocas e sons.

Tenho crises de pânico mas nunca tomei nenhum remédio, acho normal que às vezes o ar se despeça do meu mundinho fechado e me faça vagar pela falta de pressão do universo. Minha mão fica tão gelada e meu coração tão quente que eu pareço um petit-gateau.

Tenho medo de vomitar e não parar nunca mais de vomitar. De bater a cabeça desmaiada na pia e morrer solitariamente, entregando ao mundo por impotência minhas vísceras magoadas e sujas.

Eu tenho vontade de pisar na grama cheia de insetos que pinicam, de me sujar na bosta do cavalo, de corroer minhas neuroses no ácido do meu fígado, de dormir melada de amor. Mas sou mais viciada em banhos do que em qualquer outra coisa.

Eu cansei de papo furado à luz de velas, eu cansei da ansiedade e da ilusão de princesa. Eu prefiro um DVD e um pijamão com a minha cachorrinha e todas as minhas guloseimas no armário da cozinha.

Mentira. Tudo mentira. Eu corro atrás o tempo todo. Mas acabo dando de cara com a minha bunda. E eu odeio a minha bunda.

A maior alegria para mim é colocar a música “This Fire” do Franz Ferdinand e berrar, até porque depois de berrar eu fico rouca e posso fingir que sou outra pessoa.

A última vez que tentei ser meiga falei: não tá vendo que agora eu sou meiga, porra!

É isso, não vou falar do Bush, não vou falar do Lula, não vou falar do beijo de sangue do filme Os Sonhadores. Não vou falar de nada que não seja meu umbigo. Sou essa mala monotemática mesmo, chata, obsessiva e sem sobrancelhas, mas que ama muito mais do que odeia, apesar de odiar isso.

Feliz tudo para todos vocês.