domingo, 6 de fevereiro de 2011

Um banho de feira

Eu estava há meses achando tudo feio, cinza, falso e limitado. Da cama ia para o trabalho, do trabalho para a cama. Me arrumar pra que se não existem pessoas interessantes no mundo? Sair pra que se quase todo mundo é igualmente sem graça? Ir para onde se todos os lugares são feios e sem novidades?
Parei de fazer as unhas, pintar os cabelos, comprar roupas novas e malhar com o Paulão, personal que todo mundo achava lindo, menos eu.
Ao me ouvir comentar que estava há exatos 7 meses sem fazer sexo, minha amiga Laura, baiana legítima, no entanto loira de olhos claros, teve a idéia brilhante: Pai João!
João era seu “pai de santo” desde a adolescência, quando ela precisou de uma forcinha para entrar na faculdade. Depois disso, João de Deus conseguiu emprego, casa própria em São Paulo, namorado e até namorada para sua “filha” loira.
Eu ri incrédula e simpática, acenando que não com todas as partes do meu corpo. Mas ela não se convenceu, ligando para ele no dia seguinte e dando meu nome completo, data de nascimento e outras coisas que não faço idéia.
Às exatas cinco e meia de uma tarde chata de quinta-feira recebo uma ligação em meu celular com o prefixo de Salvador. Achei que meu celular havia sido clonado novamente e não atendi. Mas o tal do João não era homem de desistir fácil e continuou insistindo, até que eu atendi:
-Mia fia, ô lê lê, tu tá com um encosto bravo em cima di ocê, ô lê lê! Vai tomá cinco banho com girassol, hortelã, gengibre, mel e vai me ligá no último dia do banho. Ô lê lê. Ocê vai ve como a vida vai ficar bonita de novo. Upa lê lê!
Fiquei sem entender nada, fiquei fula da vida com a minha amiga que deu meu telefone para aquele homem sem me avisar, fiquei achando que aquele pai de santo era um médico perfeito pras minhas dores de garganta (mel? gengibre?) e não pra minha falta de apetite sexual!

Mas depois parei e pensei: como é que esse homem adivinhou que ando achando tudo feio? Eu não tinha dito isso pra ninguém e, no entando, ele adivinhou! Resumindo: lá fui eu comprar os ingredientes.
Depois de ir a três floriculturas grandes do meu bairro, eu já estava desistindo de encontrar os girassóis, até que me lembrei de uma feira no Parque da Àgua Branca, não muito longe da minha casa, que ocorreria na manhã do dia seguinte. Quem está há sete meses achando a vida um saco, e sem ninguém para amar, pode ficar mais um dia, não é mesmo?
Estacionei dentro do parque e resolvi fazer uma longa caminhada antes de ir às compras. Era bem cedinho e não estava nem frio, nem calor, o tempo perfeito para reparar mais nos outros do que em si mesmo. E foi exatamente o que eu acabei fazendo: reparei nos outros. Crianças, casais de namorados, casais casados, bebês, babás, velhinhos passeando de mãos dadas, intelectuais e seus óculos lendo embaixo de árvores, pessoas correndo no ritmo do Ipod último modelo, atletas acompanhados de profissionais que cronometravam o tempo. Que tempo? O tempo parou para mim, sentei num banquinho para tomar água de coco e, aos poucos, voltei a não julgar tanto a vida e ser mais feliz.
Uma mulher de moletom cor-de-rosa passou por mim e sorriu, ela tinha os olhos bem profundos, o cabelo bem curtinho e a nuca exposta, era tão linda que acompanhei seus passos até ela ficar bem minúscula na minha visão. Na sequência um homem com o shorts mais curto do mundo parou na minha frente para se alongar. Pernas, pêlos, músculos, cheiro de homem. Algo que não acontecia comigo há muito tempo de repente desaflorou: eu fiquei boba, encantada, querendo arrumar os cabelos e passar batom.
Lentamente o dia se impunha, as árvores se mexiam, a poeira de terra levantava, os passarinhos competiam usando o máximo de suas goelas, como em um concurso sertanejo, e as borboletas voavam em bando, ainda que fossem diferentes em tamanho e cores.
 
A feira estava começando a acontecer. Os cachorros dormiam sonolentos nas sombras, os homens fortes descarregavam tudo a que tinham direito. As frutas novinhas e coloridas faziam uma composição linda que explodia aos poucos com o brilho do sol que ainda se espreguiçava.
Eu nunca tinha reparado, mas o dono da barraquinha de verduras era um tipo bem másculo e interessante. Herdeiro de uma fazenda razoavelment e lucrativa… Hmmm fazenda, imagina só a gente andando a cavalo, rolando na grama, dormindo ao som de cigarras e acordando ao som de passarinhos? Delícia. Fiquei até com vontade de fazer uma piada com ver-dura, mas achei que não era o caso, apenas sorri e segui adiante.
Na barraca de flores um homem de terno tentava se resolver entre margaridas e rosas, flores básicas e que dizem muita coisa, pelo menos para mim. Adorei ver aquele homem muito cheiroso desviando de poças e de frutas esmagadas em nome do amor. O amor, que lindo, ele existia sim, ainda havia homens como aquele, gentil, de terno, cheiroso e apaixonado. Homens que acordam cedo e dormem tarde, tudo para agradar uma mulher.
Ou será que ele levaria as flores para uma amante? Ou será que ele levaria as flores para se desculpar por ter uma amante? Gentilmente o homem pagou as margaridas e não quis aceitar o troco, antes de sair apressado para corrigir algum erro ou dar início a ele, dedicou alguns segundos para me devorar com os olhos.
O homem que comprava as maçãs tinha a mão enorme e os dedos fortes, o jovem da barraca de sementes e folhas secas parecia me convidar com seus olhos de loucura para um chá alucinógeno, ainda que estivéssemos falando apenas de camomila. A delicada japonesinha tinha a pele tão clara e macia que me deu vontade de comer vários pêssegos com casca e tudo.
 
O cheiro de manhã misturado ao de mato me deu uma vontade louca de me misturar a todos e sentir o desejo de todos. De repente o mundo inteiro respirava e exalava sexualidade. Eu queria devorar e ser devorada por todos.
Por fim encontrei meus girassóis, comprei logo um monte porque, além do meu banho de cinco dias, me deu vontade também de enfeitar a casa.
Esperei a água esfriar um pouco e joguei uma meleca muito cheirosa e marrom da minha cabeça, que tinha novas mechas loiras, até os eus pés, que usavam agora esmalte vermelho.
O gosto era realmente bom, tanto que dediquei o resto da tarde a dar umas lambidinhas de leve nos meus braços.
Eu tinha recuperado o meu gosto por mim mesma , pela vida e, por consequência: pela minha cidade. São Paulo conseguiu ficar tão bonita quanto uma visão ampla da Baia de Todos os Santos, vista da casa do tal do Pai João, como fiquei sabendo depois.
Não sei se por causa dele ou apenas porque alguém me tinha feito reparar que algo estava errado, eu estava diferente. Talvez, simplesmente porque deve ser normal morrer, de vez em quando, para renascer melhor depois.
O texto deveria acabar aqui, com um fim bonito, poético e até meio religioso. Mas é preciso contar que o meu problema dos sete meses sem “ver a coisa”, com direito a margaridas espalhadas para tudo quando foi lado, também foi resolvido. Ô lê lê, e como foi.

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