domingo, 6 de fevereiro de 2011

Larga a mão de ser criança.

Tatá era uma criança muito pensativa, entediada e sofria da pior síndrome psicológica que uma criança pode sofrer: não se sentia desse planeta.
Ela fazia todo mundo rir com suas danças esdrúxulas, suas caretas bizarras e seu raciocínio incomum, mas por dentro ela sabia que todo mundo ria e ia embora, logo ela estaria de volta ao seu solitário e chato planetinha neurose.
Um dia, quando Tatá tinha lá pelos seus sete anos, eu sentei com ela na escada vermelha da casa da nossa avó e prometi, acreditando na promessa: calma garotinha pálida de perninhas tortas, um dia você vai viver uma vida de cinema, um dia todos os dias serão incríveis, todas as comidas serão de chefs renomados (desde aquele tempo eu já era metida), todos os amores serão intensos e eternos, todos os dinheiros serão acessíveis, todas as viagens serão possíveis, todos os amigos morrerão pela sua companhia, todas as casas serão com vista para o mar e um campo florido, todas as tardes serão lilás, todas as noites estarão à sua espera.
Tatá arregalou os olhos, me abraçou e nunca mais chorou pedindo a Deus uma vida com mais emoções. Sempre que ela comia quiabo ou assistia a algums desses programas dominicais com a família inteira roncando na sala, ela apenas se dizia em voz baixa: um dia nada será rotina, nada será chato, nada será morno, nada será banal. Um dia eu vou acontecer e o mundo estará aos meus pés.
Esse foi o jeito que eu arrumei, na época, de seguir em frente. Sim, as garotinhas bailarinas do recreio desfilavam enquanto ninguém olhava pra mim, as crianças normais praticavam esportes e nadavam no mar enquanto eu e meus óculos fugíamos de bolas e serenos, afinal, minha família sempre me fez acreditar que eu era mais frágil (e vai ver eu era…).
Sim, as crianças normais do meu prédio se machucavam na quadra, tomavam chuva, pegavam doenças estranhas umas das outras (eu nunca tive um sarampinho na vida!) e vire e mexe subiam o elevador chorando e aprendendo a parar de chorar. Eu brincava o tempo todo no carpete da sala, sempre protegida de tudo e de todos, menos da minha cabecinha maluca que achava que o mundo todo era feliz e se divertia muito, menos eu.
Mas tudo bem, eu pensava, um dia vou nadar mais que todo mundo, praticar esportes mais que todo mundo, ir para a praia mais que todo mundo, ter mais amigos que todo mundo, ser mais bonita que todo mundo, mais rica, mais popular, mais amada, mais desejada, mais inteligente, mais incrível… tudo bem, é só eu ter paciência, um dia eu vou ser a melhor do mundo.
Vinte anos depois aqui estou eu, mais meia boca do que nunca. Não sei mais se quero publicar um livro, será que essas linhas valem uma capa? Não sei mais se quero amar alguém, afinal, o amor é imperfeito e sempre me decepciona. Se com 27 anos não consegui ter o corpo das atrizes do Malhação, não vai ser com 37.
Eu não conquistei o mundo porra nenhuma, muito pelo contrário, eu não conquistei nem a minha cachorra, que prefere a empregada.
Não dei um jeito no rodamoinho do meu cabelo sempre sem jeito, não dei um jeito na minha canela fina, não dei um jeito na minha bunda de preguiçosa. Continuo fugindo de bolas, friagens, águas profundas e vírus. Tenho sim uma boa centena de amigos, mas só gosto, e de vez em quando tenho saco, para uns dois ou três.
Outro dia desses eu ganhei uma viagem para ficar num hotel mil estrelas com mil mordomias, mil festas e com vista para a Riviera Francesa. Adivinhem? Acordava triste todos os dias, afinal, não era bem a Riviera Francesa que eu tinha me prometido há 20 anos, era o mundo inteiro.
Não aguento nenhum emprego, afinal, todos são chatos. Não aguento nenhum namorado, afinal, nenhum é perfeito. Não aguento mais levantar da cama de manhã, afinal, nenhum dia é exatamente como eu gostaria que fosse. Não me aguento mais, afinal, eu não virei a mulher que eu queria.
Eu era uma fraude, um erro, eu não tinha dado certo. Minha vida era chata, meu dia era chato, as raras felicidades sempre acabavam ou se mostravam mentiras da minha cabeça. Quem ia me aturar assim, sempre insatisfeita? Eu própria não dava conta das minhas exigências e não me suportava mais. Tudo tinha dado errado, eu continuava me sentindo de outro planeta e, pra piorar, eu tinha mentido para a minha menininha, a única que eu prometi fazer feliz na vida.
Escolhi o vigésimo andar do prédio que eu trabalho e dalí fiquei olhando para a infinita escada vermelha. Estava decidida, fechei os olhos, levantei os pés, soltei a mão do corrimão, enclinei o corpo.
De repente, uma mãozinha pequena e gorducha agarrou na minha camisa e me puxou com uma força que eu jamais poderia acreditar que era dela. Estava escuro mas eu reconheci o rodamoinho na testa, as botinhas ortopédicas e os dentes cheios de aparelho. Foi então que ela me disse, ajeitando os óculos: ei, larga a mão de ser criança!

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