quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O ator

Estou dentro do carro há vinte minutos e ele não desce. Ligo e ele não atende. Ele sabe que estou aqui, eu disse que estava saindo. Ele então aparece, colocando o cinto na calça. Vejo um pedaço da barriga. Ele entra no carro e aperta meu braço. Eu vejo um pedaço do calcanhar. Eu vejo um pedaço da nuca e ela está vermelha, coisa de quem se enxugou rápido porque ficou enrolando pra tomar banho. Eu tenho um impulso de enfiar minha cara inteira dentro da camisa dele pra cheirar o centro do seu peito. Onde mistura o cheiro do amaciante, dos pelos e do desodorante que parece ter o cheiro das testosteronas dos deuses. Quando se está com um homem assim, eu lembro "meu deus, como eu gosto disso". Eu não gosto de trabalhar, eu não gosto de mais da metade de tudo que eu como, eu não gosto de falar ao telefone, eu não gosto de ser paquerada, eu não gosto de festa de família, eu não gosto de acordar, eu não gosto de pagar conta, eu não gosto das minhas roupas, eu não gosto de 80% dos papos que as pessoas querem começar comigo, eu não gosto de colocar o umbigo nas costas na aula de yoga, da minha vizinha que está sempre berrando com alguém ao telefone, eu não gosto da louça, do pessoal que me pergunta como faz pra trabalhar num sei onde, de listas de presentes. Mas eu gosto disso, eu vivo pra isso, eu acordo pra isso, eu trabalho pra isso, eu tomo banho pra isso. Isso é: esse momento em que eu coloco minha cabeça numa caixinha e sou inteira um animal predador que pode matar pra ter o que comer ao final. O cabelo dele é muito cabelo. Ele tem uma covinha na expressão da boca. Não é onde as pessoas graciosas tem. É na expressão do sorriso. Ele parece desenhado por alguém minuciosamente grosseiro. Ele então começa seu festival de me adores. Ele é ator. E começa então com seu festival de me adores. Ele quer ser adorado. Ele tem mulheres mais bonitas e o que tenho de melhor ele nem tem muita capacidade mental pra valorizar. Mas ele sabe que tenho algo diferente e que é legal ser adorado por uma garota que tem algo de diferente. E eu o adoro. Ele fala sobre o horário da madrugada que acordamos com um frio no estômago. É um texto que recebeu e tem que decorar para uma leitura. Ele não consegue explicar nada sobre o texto. Ele me pergunta porque almoçar é com ç e almocei não. E isso, dito por um deus grego, me parece um tratado profundo sobre a humanidade. Não importa, amor. Basta saber que seu gigantesco ombro ultrapassa os limites do banco do carona e vai o caminho inteiro roçando em mim. Ele se demora no cardápio. Ele adora as refeições semanais nas quais uma garota com olhos enormes pra cima dele, presta atenção quase que religiosa a tanta baboseira. Ele conta em detalhes sobre a peça e a outra peça e a novela e o filme e as famosas todas que ligam pra ele o tempo todo e os produtores e esse papo que nunca quer dizer nada a não ser sobre ele próprio enquanto ator. Eu escuto nononononononononono. Não, não é isso. Eu escuto música clássica. E torço para que o tormento acabe logo. Vamos logo pra casa. Me conte tudo isso pelado, que tal? Eu juro que escuto tudo, dou minha opinião e de repente até te escrevo uma peça inteira na qual você, nu…Eu só penso nele pelado. Ele é uma linda moça chata e eu um macho encantado pelo filme mais lindo do cinema mudo. Enquanto ele tenta concluir frases, eu me pego pensando "se ele não quiser ir pra minha casa, não vou pagar a droga da conta. Se ele não quiser ir pra minha casa, eu vou tentar no carro e eu…eu vou ficar louco se ele não quiser ir pra minha casa". A ereção da mulher é ainda mais forte porque não tem fim. É no buraco da existência. Ele pede o décimo café e quer falar mais e contar mais. E encosta em mim, gosta de sentar colado, e fala ao meu ouvido, e mexe no meu cabelo. Me adore, eu sou ator, me adore. Sim, querido, muito, muito. Em casa, ele deita no sofá, sou sempre eu que tenho que começar tudo. Eu que faço a massagem, o carinho, eu que mordo, assopro, lambo e mais esse monte de coisa. Quase tenho saudade da entrega perfeccionista que só os feios e os pobres têm como qualidade. Mas passa rápido. Ele pede, reclama, dorme, acorda, pede mais. Sim, querido. Deixa tudo comigo, apenas exista. Pessoas como você apenas precisam existir e nada mais, pessoas como você podem tudo, até escrever almocei com ç. Aliás, você tem razão, almoçei é a coisa mais linda que já vi na minha vida.

A vingança do ginásio

Depois que meu twitter alcançou quase 40 mil seguidores, as coisas mudaram um pouco pra mim. Digamos que da nota 6,4 em beleza eu tenha subido para 7,2. O que significa que dos 4 convites para eventos fashion que eu recebia, passei a receber seis. É um pequeno passo para uma mulher fútil, mas para a humanidade não significa porra nenhuma.
O fato é que meu cabelo está bonito de uns tempos pra cá. Meu pai ontem disse “até que enfim” olhando para meu cabelo. Depois desconversou. E meu número de sutiã aumenta a cada ano. O que significa que aos 40 vou virar uma vaca leiteira, mas por enquanto eu engano tranquilamente que sou uma escritora até que gostosinha. Resumindo: ando me sentindo apresentável.
Enfim. Mas por conta desses alguns convites e dessa alguma auto-estima, resolvi ir numa dessas festas que a gente vê em revista, quando tá fazendo a unha, e pensa: esse povo deve ter gases e síndrome do pânico de tanto que chupa o abdômen e força a ossatura facial para parecer feliz. Em algum momento eles devem peidar e chorar e querer muito morrer.
Mas eu fui. Dizendo para mim, baixinho “nem que seja para rir deles depois”. Mas eu estava me enganando. Eu tava era gostando daquilo. O povo bonito que não sai do salão de beleza e dos passeios de barco com o Eike me pegando pela mão e dizendo “você é incrível”. Ah, isso afeta gravemente o coração de uma moça nascida na Zona Leste. Eu queria era ligar pras minhas tias da Moóca e falar “Tia Carminhaaaaa, eu cheguei lá, conta pras prima”.
E eis que na tal da festa, tinha esse cara. Pensa num cara bonito. Agora pensa num cara muito bonito. Agora esquece isso, porque sua imaginação não deve ser capaz de chegar aos pés dele. Só digo que quando aquela raquete de Itu em formato de mão máscula resolveu tirar um fiozinho de cabelo da minha boca e devolvê-lo “paratrás” da minha orelha, meu coração de menina da Pompeia trucidou por dentro. Eu realmente fiquei nervosa. Eu REALMENTE fiquei nervosa. E chupei meu abdômen e nem precisei forçar minha ossatura fácil. Eu tava feliz como só alguém rico e medicado pode ser.
O convite para ouvir alguma música ruim (ah isso é meio óbvio, né? Eu to deslumbrada ,mas o preconceito eu não perco) na casa dele foi negado pela minha pessoa. Ele achou fofo e tal. E eu pensei em explicar que não era exatamente porque eu tenho algum problema com sexo no primeiro encontro. E aquilo nem era um encontro, mas eu também não tinha nenhum problema com sexo no não encontro. Sexo não era um problema. Eu só ia dar uma de difícil porque precisava correr na esteira uns 3 meses até poder tirar a roupa na frente dele. Mas isso não se diz, então eu apenas deixei no ar. “Vai ligando aí, bonitão, que uma hora você consegue”. E ele me achou tão misteriosa que não para de ligar. E eu não paro de malhar a bunda desde quinta passada.
Marquei com caneta BIC velha (pode esfregar o quanto você quiser que a tinta de uma boa caneta BIC velha não sai) um tracinho na bunda. A hora que a beira de minha poupa estiver naquele tracinho (o que significa que minha bunda levantou dois centímetros e meio), eu vou ouvir música ruim na casa do raquete de Itu. Antes disso, charme e mistério.
Pelos meus cálculos, se eu malhar 5 vezes na semana, consigo o feito em 14 dias e uma manhã. Não tá tão ruim assim. Porque eu sou bonitinha e tal, eu só não sou uma puta gata. Mas até aí, a festa estava abarrotada de putas gatas e ele continuava em pé, ao meu lado, se deliciando com alguma besteira proferida de minha mente perturbada e marinada na segunda taça de vinho.
Cheguei a pensar que o Raquete de Itu, cansado de pegar delicinhas abençoadas pela natureza, estava querendo ver como era degustar uma mocinha normal. Tipo quando eu, cansada dos gênios de humor sarcástico apegados a mãe, resolvi ir a uma festa com gente que cheira pó mágico escondido em pérolas falsas, pegar um deus grego que cala qualquer sinapse irônica. Resumindo: o cara sem camisa (ele pulou na piscina uma hora) coloca na lata do lixo tudo o que eu me acostumei a renegar em 31 anos de análise e boa leitura.
Fui embora da festa sem fazer nada com o moço. Você já vai dormir, querida? Não, eu vou fazer esteira. Quatorze dias é muito tempo, mas se eu começar logo, podem ser doze. Ou talvez se ele quiser me comer enquanto eu faço o último dia de esteira, podem ser onze.
Antes de ir embora, pensei em perguntar, logo após seu número de telefone, seu grau de miopia. Mas resolvi encarnar a gostosinha e ainda sai rebolando, para desespero das chucas modeletes que me encaravam dos pés à cabeça. Era a vingança do ginásio. Vocês são lindas? Pois saibam que eu sou bonitinha e tenho cinco livros publicados, quatro roteiros em aprovação e um short list no Festival de Cannes. Ah, e eu sei fazer um homem rir e não é da minha cara.
Agora o Raquete de Itu me liga o tempo todo. Ele quer conversar, ele quer me contar como foi na fila da padaria, ele quer ser normal. Ele não tem muito papo, preciso ser honesta aqui, mas papo é comigo. Pode deixar. Ele só precisa tirar a camisa. E pular na minha piscina que eu não tenho. Ainda.

Ninguém

Sapato baixo, calça larga e cabelo preso. Esquentou e seus ombros tensos agradecem. Que cara bonita é essa? Já logo no elevador. Ah, devo ter dormido bem. Bom dia, bom dia. Olha, você está muito bonita hoje. Um fala, outro concorda. E pelos corredores, sorrisos dão continuidade aos elogios. O que é? Que segredo ela guarda? Que novidade é essa? Na cozinha perguntam: novo amor? No estacionamento perguntam: voltou com alguém? No restaurante, na hora do almoço: é alguém novo? Cruza com um namorado antigo “nossa, você tá muito... é o quê? Sexo? A noite toda? Conta, vai, eu agüento ouvir”. Contar o quê? No espelho, enquanto escova os dentes, fecha os olhos e sabe pra si o segredo: ninguém. Não gostar de ninguém. Nada. Nem um restinho de nada. Nem de tudo que acabou e nem de nada que possa começar. Nada. Pouco importa qualquer outra vida do mundo. Não é nem pouco, é nada mesmo. Um dia inteiro para achar gostosas coisas bobas como um pacote de pipoca doce, um tênis pink ou a hora do banho quente com músicas recém baixadas e o tapetinho vermelho. Um dia inteiro sem escravidão. O celular, o e-mail, o telefone de casa, o ar, o interfone, a rua. São o que são e não carrascos que nada dizem e nada trazem. Um coração calmo, se ocupando de mandar sangue para as horas felizes de trabalho, estudo, yoga, massagem, dormir, bobeiras, pilates, comer, rir, cabelo, filmes, comprar, trabalhar mais, ler, amigos . É isso. Uma agenda enorme que a ocupa de ser ela e não sobra uma linha de dia pra lamentar existências alheias. Linda, ela segue. Linda e feliz como nunca. O segredo do espelho, escovando os dentes, sozinha, aperta os olhos, segura a alma um pouco sem respirar. Segura a pasta pensando que é um pouco de alma consistente na boca. Não cospe, suporte. Ela pode finalmente suportar seu peso e não dividir isso nem com o ventinho que entra pela janela. Nem com o ralo que a espera boquiaberto. A sensação é a da manhã seguinte que o papai Noel deixava os presentes: não é mentira, é só um jeito de contar a verdade com algum encantamento.

O amor

Semana passada liguei pro meu melhor amigo e convidei para um cinema. A gente não se falava desde o ano novo, quando tudo deu errado pro nosso lado. De tempos em tempos sumimos, falamos umas coisas horríveis de quem se conhece demais. Ele topou desde que fosse daqui pra frente, preguiça de conversar da briga e tal. E fomos. Cheguei antes, comprei. Ele chegou depois, comprou água. Porque eu comprei os ingressos, ele comprou também uns doces e disse que pagaria o estacionamento. Porque ele pagaria o estacionamento, eu disse que daria a carona da volta. E com meu coração tão calmo eu voltei a sentir o soninho de sofá de casa com manta que sinto ao lado dele. A gente não se beija nem nada, mas quando vai ver pegou na mão um do outro de tanto que se gosta e se cuida e se sabe. Já tivemos nossos tempos de transar e passar nervoso e aquela coisa toda de quem ama prematuramente. Mas evoluímos para esse amor que nem sei explicar. Ele me conta das meninas, eu conto dos caras. Eu acho engraçado quando ele fala “ah, enjoei, ela era meio sem assunto” e olha pra mim com saudade. Ele também ri quando eu digo “ah, ele não entendeu nada” e olho pra ele sabendo que ele também não entende, mas pelo menos não vai embora. Ou vai mas sempre volta. Não temos ciúmes e nem posse porque somos pra sempre. Ainda que ele case, more na Bósnia, são quase quinze anos. Somos pra sempre. Ele conta do filme que tá fazendo, eu do livro. Os mesmos há mil anos. Contar é sem pressa de acabar. Se ele me corta é como se a frase que eu fosse falar fosse mesmo dele. É um exibicionismo orgânico, como se meu silêncio pudesse continuar me vendendo como uma boa pessoa. São quinze anos. É isso. Ele me viu de cabelo amarelo enrolado. Eu lembro dele gordinho e mais baixo. Ele sempre comprou meus testes de gravidez, mesmo a suspeita nunca sendo nossa. Eu já fui bem bonita numa festa só porque ele queria me fazer de namorada peituda pra provocar a ex mulher. Minha maior tristeza é que todo novo amor que eu arrumo vem sempre com algum velho amor tão longo e bonito. E eu sofro porque com pouco tempo não consigo ser melhor que o muito tempo. E de sofrer assim e enlouquecer assim, nunca dou tempo de ser muito para esses amores porque estrago antes. Mas meu melhor amigo é meu único amor. O único que consegui. Porque ele sempre volta. E meu coração fica calmo. E ele vai comigo na pizzaria e todos meus amigos novos morrem de rir porque ele é naturalmente engraçado e gente boa e sabe todos os assuntos do mundo. E todo mundo adora meu melhor amigo. E eu amo ele. E sempre acabamos suspirando aliviados "alguém é bobo como eu, alguém tem esse humor" e mais uma vez rimos da piada que inventamos, do pai que chega pro filho e fala: sua mãe não é sua mãe, eu transei com outra". E esse é meu presente dessa fase tão terrível de gente indo embora. Quem tem que ficar, fica.

Na fila do supermercado

Quando ele colou meus livros na boca eu entendi que era uma maneira de encostar em mim sem encostar em mim. Ele tava de ressaca de pinga e eu de tudo. Não era pra gente se beijar. Apesar de eu estar fazendo bico sem parar, uma mistura de vontade de chegar mais perto com vontade de me proteger.
Ele se desculpava pelo cheiro e pela cara feia. E eu não desculpava nada. Era tudo tão bom. O cheiro e a cara feia. Tudo tão bom e nada feio. Seu nariz ganhou o prêmio de melhor coisa do ano. Eu disse e ele riu. E já que ele não trouxe a gaita, que pelo menos fizesse a dancinha pra mim. E ele quase fez mas foi mexer nos meus livros e eu tive a idéia de emprestar meu amado Martin Page só pra depois ter desculpa de pegar de volta. E ele topou. É um livro sobre como tudo é insuportável e a gente quer morrer mas de repente tudo fica incrível e a gente quer viver. E ele entendeu. E melhor uma das primeiras visitas pra minha casa nova não podia ter. Mas já? Já? E então ele tomou minha água de coco e foi ficando melhor. E eu fui ficando melhor. Ressaca passa. É isso, simples. Você pensa que vai morrer, mas passa.
As mulheres não me aguentam porque sou muito desligado. Ele disse. Os homens não me aguentam porque sou ligada demais. Coisas soltas ditas enquanto ele me contava que tinha o pôster do “Homem que amava as mulheres” igual ao meu e gostava de House. Você vai na minha casa um dia? Claro. Você vem na minha de novo? Claro. A gente vai se ver o ano que vem? Claro. Adoro coisas claras. Mas já?
E então ele pediu dedicatória e eu comecei a chupar a caneta. E ele continuava encostando meu livro na boca. Até que a gente percebeu e deu risada. Essa coisa é mesmo absurda. Mas já? Tô achando minha dor duvidosa, porque agora, por exemplo, não tenho dor nenhuma. E ele riu e disse que também não tinha dor nenhuma naquele momento. E quando ele riu, eu percebi. Eu percebi que eu estava na merda. Porque adoro esses caras que dão risada com a cara inteira mas continuam com os olhos um pouco tristes e parados. E adoro que a ressaca dele não permitia muita emoção e por isso ele fechava um pouco os olhos e ficava quietinho. É impressionante como eu não gosto de ninguém mas, de vez em quando, escapa um momento, um gesto, uma pessoa perdida e linda e única. E eu fico nessa felicidade de ser uma pessoa boa e capaz dessas coisas boas.
E então eu contei pra ele que não fumava e ele que já tinha tomado drogas pesadas com aquele cantor fodão que faz as mulheres ajoelharem. E dos amigos que morreram e tudo muito rock and roll e achei divertido se é que se pode achar isso. Eu nunca namorei escritoras. E eu que nunca namorei. Acho. E então falamos do melhor japonês do bairro e do melhor livro do Philip Roth e ele confundiu Quarto do Filho com filho do quarto e quase falou mal do John Fante e de repente tudo ficou tão bem, tão bem. Mas já?
Todo mundo é um pouco triste e um pouco louco e já estava muito tarde. E na televisão tava passando um filme brasileiro idiota. E ele imitou viado pra mim, porque achei o fim do mundo ele ser um comunista rock and roll que fala francês e gosta de coelhinhos. E tudo era legal, tudo, qualquer coisa nele é tão legal. Vai da camisa até o nariz. E do jeito dele falar até o tempo todo que ele fica quieto. É tudo tão legal. E a força que saia de dentro dele aquele dia e agora ele sem forças. E tudo forte e ao mesmo tempo eu quase com sono e calma. E de como ele fala de coisas terríveis quase sorrindo. E de como ele diz que me liga em meses e liga no dia seguinte. E de como ele chegou até aqui completamente bêbado e completamente bom moço. E de como ele disse, da maneira mais sensual do mundo, que queria, um dia, fazer sacanagens meigas comigo. E eu perguntei se eram bregas, os textos. E ele disse que eram no limite, porque ninguém diz verdades sem ser. E nada disso me descontrolou porque a voz dele é quase uma meditação. E ele disse que precisava me contar uma coisa que ia me deixar triste. E eu disse vai com tudo. E ele disse que não tinha nenhuma música falando “na fila do supermercado”. Eu tinha imaginado tudo. Era outra frase, era outra coisa, eu tinha imaginado tudo. É isso que eu faço, baby. Eu imagino tudo. A sua profissão é escrever para os outros imaginarem, a minha é imaginar para eu escrever. E ele me achou inteligente e eu adoro isso porque é um tipo de sexo que se faz que não enlouquece e nunca sacia. E ele ficou melhor e foi embora. E eu fiquei melhor e voltei. Não quero mais morrer, eu só quero meu livro de volta. Viver é bom demais.

Pedido

Sem risinho eu mantive o pedido, fazendo dele algo mesmo. Um murro, você escolhe o lugar. É isso mesmo? Claro que não, seria terrível conviver com isso. Então espero do fundo da minha alma que você possa continuar ouvindo isso sem jamais me saciar. Mas era um minuto tão escuro de uma hora que nem existe, então, quis te dar essa honestidade que nem poderia ser contada pra não perder seu caráter. Eu queria mesmo era um murro. Não o dado porque se ama, o dado com a secura e a realidade de não significar nada. Pra ver se mata ou acorda isso que, também em nome da realidade e da secura, não vou significar.
Isso que queria um murro pra doer onde se fala tanto de uma dor que não se sabe ao certo onde bate. Um murro na boca. Isso que precisa do limite da força pra suportar caber em alguma aresta que sou eu mesma. Isso de doer pra ser bom, que podemos fazer se no fundo funciona também assim?
Isso de apenas ser um murro, algo tão absurdo. Algo que acaba sendo alguma verdade nunca dita causando assim tantos problemas ditos até que todos não se suportem mais. Se as pessoas simplesmente pudessem pedir, assim, vai, me dá um murro, quantos jantares e viagens e noites e festas e conversas e histórias seriam salvas.
Tá, eu vou metaforizar, afinal, é assim que acabo cabendo no que sinto ou ao contrário. Eu queria um murro massagem cardíaca. Queria um murro reboot de cabeça. Um murro pra sentir aquele salgado quente azedo doce na boca, pra ser vampira de mim, fome de mim, um murro pra me sentir e a violência que me amedronta tanto não ser culpa minha. Um murro para eu amar o mal fora de mim, mas sempre precisando dele. Sempre lutando pra segurar o sangue na boca ainda que seja inevitável me escorrer vermelha em cima de qualquer coisa que me faça precisar de ar. O mal arrebentando minha boca e dentes e cordas vocais sempre segurando tanto potencial pra dizer e estragar tudo e ficar livre e querer dizer pra resgatar tudo e ficar livre. E nunca se fica livre porque nunca se fica bem. Um murro pra ter o que cuspir, o que costurar, o que esperar. Pra ver a ferida e não ser a ferida. Pra cuidar de uma ferida que pode se ver e esperar. Pra poder ficar quieta. É isso. Um murro na boca. Bem dado. Para eu ficar quieta. É isso. Eu sou um marido que não agüenta mais sua mulher. Eu não agüento mais a minha mulher. Cala a boca!
Não é sexual, tapinha, coisa de gente que escuta samba e faz piada com pandeiro. Não é doença protegida por açúcar e língua. É raiz à seco. Não é pra exorcizar a merda e correr pro banho e correr pra festa e correr. É murro de cair no chão e enxergar cantos distorcidos de teto se fechando. É um murro bem dado, numa rua sem árvore com flores amarelas. Em algum lugar onde as pessoas falam sueco e escutam húngaro. Em algum lugar onde o azul defunto e o branco dia nada não seja efeito de cineasta perturbado. Um murro terrível, impossível de perdoar, impossível de ser amor, impossível de continuar. E então eu poderia dormir ao seu lado. Cansada, ensangüentada, sem nenhuma espera, acabada, sem amor, sem dente, sem sangue, sem ser gente, principalmente sem ser mulher. E então eu poderia só porque não correria mais o risco de levar um murro.

Barbie Blogueira

O William Carlos Williams tem uma poesia sobre nojo de homem, sabia? Sei, sei. É tipo eu chamar Tati Bernardi Tatis? Minha filha, é um poeta maravilhoso. Eu não gosto de poesia. Vou pegar uma coisa aqui que você vai gostar, calma ai. Perai que vou pegar um banquinho, tá lá em cimão. Eita, sua cueca é marinha? É marinho. Ahhh. Achei! Olha só. Kaváfis! Oi? Tá, tudo bem, fica conhecendo agora, sem problemas, vou ler pra você: “ohh macedônios…”. Pode parar! Tem certeza? Absoluta, tô fora de qualquer coisa que comece com “ohhh macedônios…”. Você é chatinha heim, Chatiane? Eu, né? Não é o “cagaris” que é chato não. Sou eu! Tá, mais uma tentativa! Roberto Piva. Ah, desse eu gosto. Confessa, ce nem sabe quem é. É, acho que não. Ó qui ó: “arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
 dos meus sonhos”. Ufa! Beeem melhor… tem algo doce? O vinho me deu hipoglicemia. Tem bis velho na geladeira, quer? Tô me sentindo louca, que tem aí pra louca? Tem Lesley Chamberlain, conhece? Nietzsche chorou no cavalo, ficou louco. Ah, sei, o best seller que ele chorou e tal? Não, filhota, não! Me vê o bis velho? Tem cartas a Theo, tem Quixote. Ah, sei, você é o tipinho que chama gente famosa e morta de apelido como se ele fosse o cara que troca lâmpadas pra você? “Ô Quixotêê, não vai enfiar a faca, hein?”. Tó o bis. Valeu. Sabia que eu escrevo pra TV? Vou escrever um lance aí de quadrinhos. Quadrinhos!? Boa! Boa! Conhece Ralph Steadman? O cara ilustrou Freud, acredita?! Tá velho mesmo esse bis. E “Maus”? O do holocausto, o do Pulitzer… sabe? Hmmm. Art Spiegelman? Hmmmm….não, não sei não. Guido Crepax é lindo, ó. Você é a minha Valentina. Ah, valeu, ela tem peitões. Eu já tive um dia, antes da anfetamina natural do meu sangue ansioso matar enjaulado os meus estrógenos. Olha! Você também é poeta! Meio poesia de folder ginecológico mas já é alguma coisa. Bem mais atual que macedônios, pensa bem. É, mais atual eu não posso negar. Bonita essa música, que quer dizer isso? Quer dizer “te amo e também não”, é Sergie Gainsbourg, conhece? O cara da música universal da trepada? É. Ufa! Conheço! É, digamos que você não conheça exatamente, mas tudo bem. Você é pseudo-comunista? Não, por quê? Porque todo cara louco por mim que fica com pé atrás porque me acha chata é o típico leitorzinho de livro comunista que trata garçom como lacaio... já aconteceu 99 vezes! Isso me lembrou o Raymond Queneau. Responde, você é comunista? Não, se eu fosse esse tipo, não amaria sobre todas as coisas o “Viagem ao fim da Noite”. Sei. Céline fazia panfletos anti-semitas, mas escrevia sobre o tédio da vida como ninguém. Sei. Ce tá tirando sarro da minha cara? Não, eu tô tirando sarro da minha cara, to me sentindo uma imbecil. Não sei porra nenhuma de nada. Tô me achando uma bonequinha na sua mão. É, você é a minha Barbie blogueira. Sou? É. Sabe o que é mais legal de tudo? O quê? Se eu gostasse de você, me mataria agora, mas como não gosto, me dá mais um bis velho e aumenta a música.

Encrenca

Conheço ele na casa de uma amiga. São ao todo oito homens solteiros, felizes e solícitos. Mas ele, estranho, reservado e tentando há horas estabelecer uma conversa com o gato da casa, me chama a atenção. Aquele alí é…? Xiii, Tati, encrenca. Mesmo? Tem certeza? Absoluta. Encrenca das grandes. Não me dou por satisfeita. Preciso saber mais. Descubro que ele já saiu com a irmã de um grande amigo. Na segunda ligo pra ele. E sua irmã? Casou. Mesmo? Foi. Mas e o…? Xiiii, Tati, encrenca. Mesmo? Nossa, bota encrenca nisso. Das grandes, amiga. Certeza? Posso confiar? Pode. Sei bem o que tô te falando. Mas se você estiver com dúvida, sabe a Ana? Então, a prima dela já saiu com ele. Jura? Juro. Na terça ligo pra Ana. E sua prima? Ah, menina, toda feliz, morando em Londres. Mas ela já saiu com o…., não saiu? Xiiiii, nossa, nem fala esse nome pra ela, nossa, EN-CREN-CA. Das bravas. Das grandes. Mesmo? Olha, tô pra ver encrenca maior. Mas se você tiver com alguma dúvida, o Beto, sabe o Beto? Foi chefe dele. Na quarta ligo pro Beto. E, aí, cara? Tudo certo? Certíssimo. Tô grávido do segundo moleque. Que beleza. Mas me fala, você já foi chefe do…? Menina, nem me lembra disso. Uma puta encrenca, viu. Olha, prefiro nem tocar nesse assunto. Mesmo? Sério. Mas olha, quem pode te falar melhor é o Dr. Ricardo. Tratou ele ano passado. Mesmo? Ele foi no Dr. Ricardo? Pra você ver o tamanho da encrenca. Na quinta ligo pro Dr. Ricardo. Sei como são essas coisas de discrição médica. Mas…e o…? Tati, não vou te falar nada, é antiético, você entende, né? Mas como você é minha amiga, vou te falar só uma coisa: o cara é a maior encrenca da cidade. Talvez do país. Mesmo? Mesmo. Mas se você tiver com alguma dúvida, minha irmã mais velha, a Fabi, fez faculdade com ele. Na sexta ligo pra Fabi. E aí, gata? Menina, quanto tempo! Faz mesmo. E você? Algum paquera novo? Sim, tô noiva! Jura! Juro! Mas e o…ouvi dizer que vocês estudaram juntos já. Ah não! Esse assunto não! Pô, mó vibe. Tati, olha, esse cara redefiniu pra mim o conceito de encrenca. Manja “A” encrenca. Então. Mas se você tiver alguma dúvida…não, não tenho mais dúvida nenhuma. Chega. Já ouvi tudo o que eu precisava. No sábado ligo pra ele, coração disparado, não é sempre que encontramos alguém tão bem recomendado.

O suco

Estou numa mesa de restaurante com meu chefe e meu dupla. Almoço importante pra decidir o lançamento de um novo celular. Quero um suco de abacaxi, mas lembro que a última vez que estive nesse restaurante, o suco veio aguado, amarelado e com gosto de abacaxi velho. Penso em voz alta, ao que parece, pois, ao fim de minha lembrança, todos estão sem graça na mesa e o garçom me olha feio “faço questão de te trazer um suco de abacaxi delicioso por conta da casa”. Certeza que vão sacanear meu suco. No cosmos das coisas que se encaixam perfeitamente e fazem a mente de um neurótico feliz, cara feia não combina com promessas positivas. E degustações incríveis não combinam com oferecimentos gratuitos. E coisas que não se encaixam com clareza e, pior, comprometem minha dignidade fisiológica, disparam em mim a sirene obsessiva pela verdade minuciosa. Minha vontade era gritar: não, amigo, não, traz uma água mesmo e, de preferência, fechada. E de preferência com gás, que é mais difícil de você me sacanear (água de torneira não vem gaseificada). E traz só a água fechada e um canudinho embalado. Só isso. Eu decidi não comer hoje. Mas era tarde demais. O garçom lançou a delicadeza com voz e olhar indelicados, causando um desequilíbrio energético que começou na unha mais rosada do meu dedão do pé esquerdo e subiu para o quase inexistente pelo loiro que tenho dentro da orelha direita, e sumiu do meu horizonte. O desgraçado foi para cozinha e, junto a outros nordestinos injustiçados pela desigualdade social e cansados das duras horas de trabalho pra atender peruas raivosas com seus sucos não satisfatórios, ia me sacanear. Eles, certamente, aprontariam comigo. Porque é o que eu, provavelmente, faria.
Enquanto meu chefe e dupla tentam escolher entre privilegiar na comunicação os features diferenciais da tecnologia ou o charme incomparável do design, minha mente também está entre dilemas, mas outros: catarro ou pelo do saco? Ranho ou gotícula de suor? Espirro ou esporro?
O suco chega finalmente, trazido em bandeja particular. Por que uma bandeja particular? Claro, tem sacanagem aí. Porque os outros que pediram calma e simpaticamente suas bebidas não podem ser confundidos com a vaca que vai tomar sêmen com muco nasal da mesa sete. O suco, em copo grande e reluzente, olha pra mim. Como um pedido de noivado feito por alguém que rouba rins na madrugada. Se tenho ojeriza a pega-lo com a mão, o que dirá mandá-lo para dentro do meu ser. Peço perdão se escrevo um pouco mais floreadamente que de costume, mas a neurose, meu amigo, a verdadeira neurose, não é brincadeira não. Ela merece o máximo de esforço intelectual possível, para que seu tamanho possa ser sentido até pelos mais exigentes neurônios. Não, não é isso, é apenas que a neurose se leva a sério demais, então, não consigo as palavras mais leves e diretas agora.
Pego o suco. Isso tudo é coisa da minha cabeça. Minha cabeça, sempre muito rápida e esperta, responde: mas existe alguma coisa do mundo que não seja coisa da sua cabeça? Chega. Dou bronca em silêncio para mim mesma. Chega. Sorrio para o garçom, na esperança infantil dele sorrir em retribuição e tudo ficar bem. Se ele sorrir, amigável, não tem nada no suco. Se ele sorrir, jocoso, tem. Ele não sorri, ele apenas me encara. Forte, sem desviar os olhos, profundamente. Eu sorrio mais, eu sorrio além da conta. Pelo amor de Deus, amigo. Sorria de volta. Vamos, sorria e me liberte. Sorria e todos os sucos vão sorrir. Sorria e não existem mais sujeiras e maldades no mundo. Ele não sorri. Mas antes de virar as costas, ele diz, novamente olhando firme dentro dos meus olhos: “mandei caprichar pra você”. Não, essa era a última coisa que ele deveria ter dito. “Mandei caprichar pra você” é o código universal do “mijei aí dentro, sua puta”.
A essa altura do campeonato, meu chefe e dupla já tinham se decidido pelo design em detrimento aos atributos mais tecnológicos. E você, Tati, o que acha? Eu, eu...Bom, eu acho que se não for urina é, no mínimo, cuspe. Aliás, os dois dariam esse efeito de espuma, dependendo da concentração de PH.
Almoço a metade dos pratos de tudo o que meu chefe e dupla pedem, não tenho coragem de pedir mais nada com exclusividade. Se o paraíba me sacaneou, sacaneou também outros dois bons seres, pais de família e trabalhadores. Acho que ele não faria isso. E, se fez, divido a desgraça com outras pessoas, o que sempre torna nossa vida menos terrível e injusta.
No suco, não toco. Até que uma sede infinita começa a me tomar. Claro, o paraíba precisava se cercar de todos os lados. “E se ela, depois de todo esse esforço cruel, não beber o suco? E se ela for esperta e não tomar o suco? Vamos salgar bastante a comida!” Dá certo, eu estou morrendo de sede. Última tentativa: se ele sorrir pra mim, eu bebo o suco. Olho pra ele, insistente, sorrindo muito. Ele sorri. Finalmente ele sorri. Mas não é pra mim. É para o garçom que está ao lado dele. Os dois me olham e sorriem entre si. Aparecem mais outros dois. Agora são quatro que me olham e riem desbragadamente. Um cutuca o outro, olha pra mim, e sorri. Sim, sim sim. Certeza que eles sacanearam meu suco! Os quatro! Toda sacanagem de moleque é feita em bando. Homem sozinho não sabe ser mau. Ou melhor: homem sozinho não acha divertido ser mau. Sim, sim, eles sacanearam meu suco! Mas, que saber, eu não bebi e nem vou beber. Eu não sou uma idiota não! Eu sou mesmo é muito da esperta.
Ao final do almoço, meu chefe vai buscar o carro e meu dupla vai até o banheiro. Estou sozinha. Morrendo de sede. O garçom me encara, ainda desafiador e com profundidade. Os outros continuam se cutucando e rindo muito. Que graça eu ainda posso ter se já não estou mais em posse do suco batizado? O garçom se aproxima. Meu coração gela. Ela vai confessar que meu suco tinha coliformes fecais? Não, ele me entrega um bilhete com seu número de telefone e fala, agora sim sorrindo muito: também gostei muito da senhora!

Márcio

No primeiro colegial, com treze ou quatorze anos, eu gostava de um garoto chamado Márcio. Ele era branquinho e tinha os cabelos castanhos cacheados. Ele namorava a Priscila, uma menina bonita e riquinha e bailarina e de cabelos lisinhos e amiga de todas as outras meninas iguais a ela. Mas a Priscila e suas amigas não faziam sexo. E todo mundo era louco pra fazer sexo com elas. Eu era o que se podia chamar de beleza indefinida. Não era de todo mal, mas também não era a óbvia lindinha. Cabelo nem pro liso e nem pro cacheado e nem pra nada que pudesse ser um estilo ou moda ou até mesmo um cabelo. Roupas do mesmo jeito. Nem feias, nem bonitas. Corpo do mesmo jeito. Nem magra atlética, nem gordinha desleixada. Um meio do caminho que piorava muito quando era dia de uniforme. Não chegava a andar com as meninas feias mas nunca fui amiga da Priscila e das amigas dela. Eu era média.
Foi daí que eu tive a ideia. Eu tinha algo que aquelas meninas não tinham: eu fazia sexo. E calmamente caminhei até o Márcio, na hora do recreio, e falei: quatro horas na minha casa, eu vou fazer sexo com você, tudo bem? Ele respondeu sério, sem rir, sem parar pra pensar: me passa seu endereço que eu peço pra minha mãe me levar. Sai pisando firme, com os olhos apertados e com as unhas enfincadas nas palmas das minhas mãos. Minha vontade era sair correndo e só voltar pra escola na outra encarnação. O que tinha me dado?
Pois bem, às três da tarde, sem conseguir conter o coração e o intestino, tento expulsar minha empregada de casa. Mas o que você vai aprontar? Sua mãe sabe que vem um garoto estudar aqui? Maria, cadê aquela minha calcinha de renda branca? Convenço Maria a ir embora às quinze pras quatro. Prometo a ela que, se ela não contar nada pra minha mãe, a deixo ir embora todo dia mais cedo e também não conto nada. Quatro em ponto, vejo da janela do meu quarto um Escort vermelho parando em frente ao meu prédio. Márcio desce cheio de livros. Sua mãe o acompanha até a portaria. Ele entra. Meu coração vai parar na língua. Eu vou fazer sexo. Eu consigo fazer. Ele vai enfiar o pinto dentro de mim. Eu vou ficar bem quietinha até parar de doer. É isso. E amanhã, na hora do recreio, ele vai…. Ele vai o quê? Continuar namorando a Priscila, que é bailarina e tem o cabelo lisinho e é amiga das meninas mais bonitas da escola. E eu? Eu vou ter gêmeos, que ele não vai assumir, e eu terei que ir à escola e fazer as provas apesar da barriga. E serei motivo de fofoca pra sempre. E ele não vai falar comigo porque não sou exatamente linda e nem exatamente muito normal e ele nem é da minha turma. Seu pai vai ligar pro meu “precisa de alguma coisa?”. Meu pai não vai querer falar com ele, porque quem resolve as coisas mais difíceis é a minha mãe. E minha mãe não vai querer falar com ele, porque vai estar internada pelo susto. A campainha toca. Do olho mágico, vejo ele puxando de dentro de um livro e guardando no bolso uma fileira animada de camisinhas. Me sinto ofendida: esse menino tá achando mesmo que vou transar com ele?
Eu era virgem aos quatorze e assim fiquei até os vinte e um anos de idade. Mas o Márcio, o garoto mais popular e bonito e charmoso e gente boa da escola, estava na minha casa. Abro a porta. Vejo que ele trouxe os livros de química, física e gramática. Tentando parecer descolada mas tremendo muito, pergunto qual matéria ele quer estudar primeiro. Qual? Ele ri, ensaiado: anatomia. E me empurra pro sofá. E vai direto pros meus peitos, sem nem me beijar na boca. Ah, então acho que é assim, né? Que se trata uma puta ou alguém de quem não se gosta. Aquilo tudo me faz mal demais. Se eu fosse uma princesa, teria um namorado pra ir ao shopping. Mas como sou a garota estranha, ele tenta ver meus peitos. E como eu sempre tive curiosidade em saber como era estar com um garoto realmente lindo e desejado, eu deixo. Mas se eu fosse uma princesa, ele estaria agora nervoso pra pegar na minha mão. Triste, triste, vou ficando tão triste. Por que não sou uma princesa?
De repente. Puft. Scatapuft. Trililililim. Não sou mais a garota de treze ou quatorze anos, estranha, com o peito direito pra fora e um garoto inexperiente e afobado em cima deles. Estou ao lado da cena, escrevendo esse texto. Márcio é um ótimo personagem para uma historinha. A garota de calcinha de renda branca que mandou a empregada embora é uma ótima personagem também. Não sinto que ele tenta abrir a minha calça, mas leio “ele tenta abrir a calça dela”. Não sinto que ele começa a querer enfiar sua mão dentro da minha calça, mas leio “e ele começa a enfiar a mão dentro da calça dela”. E fico feliz quando, no parágrafo seguinte, descubro que a garota levanta e grita “chega, desculpa, mas eu não consigo, vai embora, por favor, eu não sei o que me deu de deixar você vir aqui”.
Márcio, frustrado e muito tímido, veste sua roupa, devagar, como que tentando ainda pensar em algo que salvasse sua tarde de sexo selvagem. Muito provavelmente a primeira. Ela fica deitada, com a camiseta e a alma amassadas. Márcio vai embora. Ela sente uma dor profunda e se promete duas coisas: um dia vou ser uma escritora e um dia vou ser uma princesa.

Por que você não deve ver a Copa com um grupo de mulheres

Compro salgadinhos, pães, queijos e bebidas. Me visto de verde e amarelo. Estou ansiosa mas não é pelo jogo. É porque nunca sei se a quantidade de comida está boa e se a minha casa pode aconchegar tanta gente. Elas chegam com o jogo já começado, pouco se importando. A primeira avisa “tive que passar na farmácia pra comprar pílula do dia seguinte, dei ontem pro meu estagiário”. O foco todo se vira pra ela. Conta! Conta! Robinho avança. Passa pra Kaká. Que passa pra alguém que não sei o nome mas que é a cara do Robinho. Mas qual o nome do seu estagiário? Tem foto dele no Facebook? Tem? Corremos todas pra ver. Ah, não é ruim não hein? Quase sai gol. Mas ninguém viu. Vimos apenas que o Robinho está sem barba. Mas esse é o Robinho mesmo? Vimos também que o time da Costa do Marfim usa um uniforme com listras que os engordam. Alguém comenta “odeio quando vendedora de loja vagabunda fala listas ao invés de listras”. O papo já muda pra regime. A Costa do Marfim quase faz gol, mas alguém comentou “olha o tamanho do negão”. E todas caíram na risada, relembrando experiências individuais com rapazes grandiosos. Teve o...e teve também o...mas teve um que, coitado, o pinto parecia uma latinha de leite condensado. Pequeno e grosso. O que você faz com um pinto desses? Kaká recebe seu primeiro cartão amarelo e não estamos nem aí. Olha o tamanho da bunda desse negão, alguém comenta. E o Kaká, você fazia? Ah, eu fazia sim, mas ele tem pouca experiência, né? Eu gosto de homem mais experiente. Eu não, prefiro os novinhos, tipo meu estagiário. E voltamos pro assunto da pílula do dia seguinte. O goleiro negão usa um uniforme preto. Uai, mas ele tá pelado? Alguém lança essa. Eu to fazendo o álbum da Copa mas só colo os que eu acho bonito, alguém comenta. E esse Lúcio, hein?! Eu pegava! Cre-do, eu não pegava não. Ah, eu pegava, adoro um homem com essa cara de lavrador. Gol do Brasil. Nos abraçamos rapidamente mas estamos mais preocupadas em fazer fotos felizes para colocar no Facebook. Todo mundo tem um ex namorado perdido que entra no nosso facebook e queremos provar que não morremos sem ele por perto e vamos muito bem obrigada. E daí, lá vamos nós, fazer pose. O Brasil perde um gol na sequência mas nem vimos, estamos fazendo pose sensuais com a vuvuzela. Como somos bestas. Muito. Googla aí o Nilmar, ele é um gato. Esse rato? Cre-do. Escuta, moicano é o novo pretinho básico? Por que mesmo a gente tem raiva da França? Ah, é, né? Tirou o Brasil. Em que ano mesmo? Paris, vamos marcar uma viagem? A Mari não tá legal, passou mal por causa da quantidade de frituras que ingeriu e também porque pulou muito na hora do gol. Pressão baixa. A outra tá enjoada por causa da pílula. Eu to enjoada com o cheiro de progressiva de chocolate no ar. Olha o tamanho desse negão! Brasil faz outro gol. Mas teve mão? No gol eu não sei, mas ontem, menina, o cara fazia cada coisa com a mão. Ah é? Mas mão é coisa de namoro juvenil, não? Não. Mão ainda é bom. Não tem idade pra essas coisas. Alguém comenta que homem de cabelo duro não pode fazer o corte “cabelo de buceta” e aí já acabou o jogo, estamos um pouco alcoolizadas, rindo como gralhas loucas e loucas pra postar as fotos no Facebook e fuçar a fotos dos caras que estamos saindo e comentar sobre todas as coisas do mundo, menos futebol. Vai Brasil!

O problema

Ele nem é mais tão bonito, mas as modeletes do interior que chegam em vãs e almoçam de graça em restaurantes caídos do Itaim ainda o medem dos pés à cabeça. O cheiro do sucesso. O garçom fica nervoso mesmo quando ele sorri. A música abaixa na hora que ele abre o cardápio. Sei lá, ele incomoda o mundo. E eu, depois de o quê? Quase dez anos? Ainda me irrito, principalmente com as modeletes oferecidas. E ele ainda se irrita que eu me irrito “Tati, querida, é só você que vê essas coisas”. Não, querido, sou só eu que falo sobre essas coisas que todo mundo vê. E lembro porque eu não quis casar com ele, mesmo ainda tendo guardada a aliança grossa que ele me deu com um “te amo’ gravado na parte de dentro. “Com essa você pode tomar banho”, ele disse, tirando sarro das jóias vagabundas que outros caras me davam.
Então quer dizer que essa semana você fechou um contrato que adicionou “podre de” ao seu “rico”? Ele ri à vontade. Ele sempre gostou da maneira esculachada com a qual eu trato seu dinheiro. A cada compra de carro do momento, a cada apartamento maior como se isso fosse possível. E eu, ao invés de fazer biquinho blasé como, tenho certeza, sua mulher atual faz, gritava. Pulava. Corria de meias pela sala enorme. Brincava de ligar da sala e falar que eu não lembrava como fazia pra voltar pro quarto. Apelidava o meu banheiro de “suíte 45B”. Abria a porta da varanda e falava um palavrão bem alto pra vista maravilhosa. Eu adorava. Eu tinha 21 ou 22 anos, era boba de tudo, e adorava ter um namorado coroa que de repente atendia um dos celulares (naquela época eram dois apenas) e disparava uma bronca em espanhol, uma ordem em francês e, teve até um dia, ele encarnou o carioca boêmio (ele queria convencer um cliente gringo a vir curtir a noitada brasileira). Tratava-se de um grande homem.
Bom, mas o tempo era inversamente proporcional ao seu dinheiro. Além de suas cinco empresas (e eu, coitada, querendo contar dos meus cinco “empregos”) ele agora tinha um quinto filho também. Era um tal dessa desocupada parir que…bom, deixa pra lá. Vamos direto ao assunto.
Eu quero saber meu problema. Mesmo. Você me conhece há dez anos. Você, sempre que me encontra, deixa claro: “se precisar de alguma coisa, qualquer coisa”. E eu agora to precisando. Quero saber qual é o meu problema. Onde eu tô errando?
Ele então respirou profundamente. Se ajeitou na cadeira. Desligou seus cinco celulares pra não ser interrompido. O grande momento havia chegado. Ele poderia me dizer tudo aquilo que ficou entalado em sua garganta. Aquilo que eu nunca permiti verdadeiramente que um homem ou qualquer pessoa me dissesse. Eu não estava contando uma história e pedindo conselho. Eu estava pedindo pra que me dissessem “o problema”. Eu estava pedindo ajuda ao homem mais maduro e vivido e esperto que eu conhecia. Ele então olhou com sua cara de águia míope pro garçom “não me interrompa agora caso tenha amor pela vida”. E pegou na minha mão. E apertou minha mão. E ficou muito sério. É agora, eu pensei. O único homem que realmente poderia me ajudar. Isso vai mudar a minha vida. Vai, fala logo. E ele se aproximou e disse, bem devagar, e baixinho, no meu ouvido: “não olha agora, mas o cara da mesa ao lado é igualzinho o Shrek”.

O mito da mulher misteriosa

Com certeza você já deve ter visto uma dessas ou no seu trabalho, grupo de amigos ou mesmo andando nas ruas. Talvez você até mesmo seja uma dessas mulheres.
É fácil reconhecer a mulher misteriosa. Ela jamais atende o celular na sua frente. Se levanta e vai atender bem longe de você. E você não sabe se ela está narrando alguma postura do Kama Sutra ou uma receita de bolo de fubá da vovó. O toque do seu celular é discretíssimo e você nem percebe que ela saiu de perto pra atender. Porque ela também é discretíssima.
Por que terminou o namoro da mulher misteriosa? Ela enjoou dele? Levou um pé na bunda? O cara morreu? Ela ta sofrendo? Você nem sonha. Ela não conta nem pro terapeuta. Aliás, você também jamais vai descobrir se existe um terapeuta.
Sua idade é entre 25 e 38 anos. Não dá pra saber só de olhar. Seu rosto se desfaz em segundos. Talvez ela more nos Jardins. Pinheiros. Veio de Curitiba. Ela é carioca? É ali por perto, você acha. Seu carro é preto ou cinza, quase certeza. Ela gosta de música, porque vive de I-pod. Mas o que será que ela escuta? Nada. você não sabe absolutamente nada da mulher misteriosa. Quando você a encontra no banheiro, dá um segundo e ela desapareceu. E você louca pra descobrir, ao menos, a marca da sua pasta de dente.
Numa mesa de bar com conversa animada ela se limita a sorrir. Numa festa importante ela se limita a aparecer por minutos e desaparecer em segundos. Em um show ela jamais canta as letras, rebola, comemora, fica suada. Aliás, quem é que já encontrou ela em algum show? Ou em algum lugar? Mas era ela, não era?
Dizer seu nome em vão parece até um pecado. Ela nunca fala de ninguém e muito menos dá assunto para alguém falar dela. Não se tem nada a dizer dessa mulher. Mas, para desespero geral de todas as outras mulheres, o mundo não tem outro assunto.
Todos os homens desejam loucamente a mulher misteriosa. Todas as mulheres desejam loucamente a mulher misteriosa. Sua personalidade incerta acaba se tornando uma personalidade fortíssima e seu jeito anulado acaba se tornando um espaço gigantesco para todos imaginarem o que bem quiserem.
E eu, como estava dizendo, sempre quis ser dessas mulheres imperfuráveis, inatingíveis, inaudíveis e incompreensíveis. Mas nunca consegui. Quando vou ver, já contei minha vida pra primeira pessoa que me deu um pouco de atenção. Já to rindo alto no restaurante porque não me controlei e fiquei feliz demais. Já escrevi um texto sobre o fulaninho da terça passada e publiquei numa revista. E o fulaninho ta morrendo de medo porque escrevi que gosto dele. E se alguém perguntar, vou dizer mesmo que goste dele. E se ele não gostar de mim, minha tristeza não será segredo para ninguém. E minha pasta de dente é para deixar os dentes branquinhos. E quando vou ver, lá se foi a mulher misteriosa que eu gostaria tanto de ser. Porque eu jamais poderia ser uma.
E sofri anos com isso. Até que resolvi conviver de perto com algumas mulheres misteriosas para tentar descobrir o que se passa na cabeça e na alma desses seres incríveis que nunca têm nada a dizer, a doer, a aconselhar, a cantar, a dançar, a morrer de rir, a fofocar, a detalhar, a exagerar, a sonhar, a dividir, a acrescentar. E descobri que a coisa era muito mais simples do que eu imaginava: nada. Não se passa nada de relevante nem na cabeça e nem na alma dessas mulheres.
As mulheres misteriosas, tão admiradas e desejadas, não passam de mulheres sem a menor graça. Elas não calam por mistério, charme ou discrição. Calam porque simplesmente não há nada mais sábio que elas possam fazer.

Tudo errado

A primeira parte da primeira vez que fomos jantar foi um completo fracasso. Eu escolhi o restaurante, eu peguei ele em casa, eu paguei a maior parte da conta porque “você que inventou de pedir o vinho” e ele estava muito mal vestido e não tinha tomado banho depois de um dia inteiro de trabalho. Erro, erro, erro. Assim que paguei sozinha o manobrista e me vi andando na chuva até ele, que aguardava o carro tranquilamente embaixo de um toldo, tive a certeza: esse não serve nem pra amigo que você cumprimenta quando cruza na rua uma vez a cada quinze anos.
Mas eu estava uns bons meses sem transar, sem o menor saco de conhecer gente nova, sem a menor cara de pau para ligar para ex namorados e ele havia sido recomendado por amigas limpinhas “vai que é bom” e, por total falta de opção numa terça fria, deixei ele subir no meu apartamento.
Na manhã seguinte, já éramos melhores amigos. Cantamos todas as músicas do Radiohead tão alto que a vizinha de baixo bateu com o cabo da vassoura no teto. Fizemos campeonato de quem imitava melhor a dança epilética do Ian Curtis, falamos mal das meninas que usavam saltos muito altos nos domingos ensolarados, pulamos de alegria quando descobrimos que estávamos lendo o mesmo livro do Philiph Roth e ele instalou todos os aparatos eletroeletrônicos que, assim como eu, aguardavam um homem inteligente dentro de uma caixinha semi aberta.
Ele foi embora se despedindo de mim com um beijo amigo e pela primeira vez na vida achei essa ideia ótima “ele está indo embora sem promessas de amor eterno e eu não estou sofrendo nem um pouco com isso”.
Sem mensagenzinhas de carinho ou e-mails fofos, seis dias depois nos encontramos de novo para mais uma maratona de sexo sem amor, e assim ficamos por uma vida. Com intervalos para quando ele arrumava uma namorada ou eu achava que arrumava um namorado. Era leve, divertido, gostoso e uma experiência incrível para a minha pessoa ciumenta: eu ajudava ele a paquerar em baladas e me divertia quando ele ligava na manhã seguinte “a mala da mina apaixonou, e agora?” E agora vamos no cinema mais tarde. E pronto.
Esse ano ainda não havíamos nos encontrado. Ele porque arrumou uma mulher bem ao seu estilo (que escolhe restaurante que aceita Visa Vale, usa chinelas crocs com meias de lã coloridas e super se preocupa mesmo com aquelas passeatas dentro do prédio de sociais da USP) e eu porque estava tão apaixonada por outra pessoa que preferia deitar na cama sozinha, só com a voz dele do outro lado da linha, a milhões de quilômetros de mim.
Ontem nos encontramos numa festa de um amigo em comum. Ele estressado, com a menina ciumenta ligando no seu celular de meia em meia hora; e eu pelos cantos, suspirando por mais um amor perdido pelo excesso.
Ficamos abraçados por horas. Meu coração não disparou e nem o dele. E só por isso o abraço durou tanto.

Perdão

Tomo um remédio chamado Exodus. Um antidepressivo pra quem tem problema de pânico. Eu tenho problema de pânico. Por pânico entendo momentos em que tive a plena certeza de que iria desintegrar em praça pública, nua, e pessoas enviadas do inferno tirariam a minha pele com giletes podres para vender numa feira macabra. E eu estava apenas comprando pão na padaria ao lado de duas senhorinhas e uma criança.
Sim, eu tenho esse problema. Não tenho orgulho, mas também não tenho vergonha. Só acho, confesso, que susto pela vida não dá em gente besta. E eu sou bem esquisita mas definitivamente não sou besta. E apesar de viver dizendo que não, gosto pacas de mim quando consigo.
Não é sempre que a coisa dá, mas é como se fosse: o pânico é um eterno medo do primeiro pânico. Você passa inexplicavelmente mal (ou muito explicavelmente se quiser entender) uma vez e depois apenas convive com a certeza de que pode, uma vez que já pode, quase não morrer novamente. E de fato a coisa volta. E volta. E volta. E quando não volta, simplesmente está. Quem tem a coisa estranha, tem a coisa estranha sempre, a diferença é que quando estamos ou queremos estar bem, viver distrai. E pra mim, aprendi recentemente, viver é exatamente isso: se distrair do medo que dá pensar em viver.
Enfim, durante muito tempo não sai de casa sem minha cartelinha de Rivotril sublingual. Pra ir do quarto até a cozinha de casa eu levava uma no bolso. Mas as coisas melhoraram e eu simplesmente não tenho mais cartelinhas de Rivotril. Fiquei apenas com o Exodus, uma vez ao dia, 10 mg, depois do café da manhã. Há meses sem brigar com mamy, sem brigar no trabalho, sem brigar no trânsito, sem querer esfaquear mocinhos (a não ser quando eles realmente merecem), sem ter medo de velhinhas esquartejadoras na padoca da esquina. Não posso negar que o tal do Exodus me faz bem. Até a manhã de hoje, em que o danado do remédio simplesmente acabou sem o meu planejamento.
Tudo bem, algo aparentemente fácil de resolver. Era só ligar pra psiquiatra e pedir uma receita. Ligo, ela atende, celular falhando: “não estou no Brasil”. Tudo bem, fácil de resolver, era só ligar pra minha amiga pediatra. Ligo, ela atende “eu tenho uma receita médica com dois peixinhos dando um beijo, tudo bem?” Acho que não. Melhor não, né? Sei lá, tomar um remédio com nome de disco do Bob Marley já é humilhação suficiente, não preciso de uma receita com peixinhos apaixonados. Nem aceitariam, acho. Tudo bem, fácil de resolver, eu tinha que ter tomado o remédio às dez da manhã e já são duas da tarde, mas o que não me falta é amigo doido. Ligo pro V. Você vai ao psiquiatra hoje? Ele fica puto “por quê? Você acha que eu deveria?”. Não, esse tá pior que eu. Tento o K. Você tem algum amigo médico? Ele fica puto “pô, Tati, já te falei que se você quer um cara rico, mercado financeiro é muito melhor que hospital”. Não, eu quero uma receita, mas deixa pra lá. Tento meu ex namorado que trabalha num prédio com 45 psiquiatras, mas quando escuto a voz dele, começo logo a fazer piada nervosa e não me explico direito. Algo sobre uma receita, sobre um remédio, sobre o Bob Marley, sobre minha vagina. Perai, me perdi um pouco. Ele não entende, mas ri, e eu preciso mais do que nunca do Exodus acalmando meu sangue. E agora? E agora? Tento minha mãe, mas o que minha mãe tem a ver com isso? Nada. Mas por via das dúvidas eu sempre tento a minha mãe. Tento minha analista. Ela não atende. O mal de não ser louco de verdade é que meu tratamento nunca é VIP. Eu sou só uma esquisitinha mimada que esqueceu de pedir a receita do remédio do cagaço. Mas nada disso importa, eu preciso do remédio e pronto. Pra sentir a falta da química enjoando meu sangue e dando vazio no centro da minha cabeça ainda demoram três dias, mas psicologicamente falando, já estou tonta e com o coração disparado. Se eu pagar mil reais, será que o farmacêutico me vende?
Lembro de um leitor neurologista, que me escreve umas obscenidades de vez em quando. Me arruma uma receita, Fulano? Arrumo, mas você tem que vir pegar em casa, umas onze da noite. O Exodus tá valendo a prostituição? Não. Não tá. Então o quê? O quê?
Às sete da noite, depois de tentar todas as ideias possíveis (inclusive, comprar uma caixa deixando minha carteira de motorista na farmácia até conseguir a receita com a minha psiquiatra na próxima terça-feira) já estou engolindo cinco litros de água por minuto e tremendo mais que dependente de drogas (ops!). Ligo então para uma clínica ortopédica que fica em frente ao meu trabalho. Preciso ir aí agora, entende? Agora? Você fraturou alguma coisa? Sim, o cérebro. Preciso ir agora. O doutor Alê me recebe. Eu tenho vontade de abraçar o doutor Alê. Vou direto ao assunto: eu tenho lordose, escoliose, cifose e o dedão do meu pé pode ser seu mestrado em ossatura extraterrestre, mas eu vim mesmo porque preciso de uma receita de antidepressivo. É feio fazer isso, eu sei, mas muito mais feio é ter medo de gente na padaria, entende? Doutor Alê faz a receita pra mim, Exodus, 10 mg, duas caixas, me olha, sorri, amigo: “sabia que pra homem esse remédio funciona pra ejaculação precoce?” Pra mulher também, doutor Alê, ansiedade é um gozo tão prematuro de felicidade que parece tristeza. Mas eu chego lá.

Exodus

Tomo um remédio chamado Exodus. Um antidepressivo pra quem tem problema de pânico. Eu tenho problema de pânico. Por pânico entendo momentos em que tive a plena certeza de que iria desintegrar em praça pública, nua, e pessoas enviadas do inferno tirariam a minha pele com giletes podres para vender numa feira macabra. E eu estava apenas comprando pão na padaria ao lado de duas senhorinhas e uma criança.
Sim, eu tenho esse problema. Não tenho orgulho, mas também não tenho vergonha. Só acho, confesso, que susto pela vida não dá em gente besta. E eu sou bem esquisita mas definitivamente não sou besta. E apesar de viver dizendo que não, gosto pacas de mim quando consigo.
Não é sempre que a coisa dá, mas é como se fosse: o pânico é um eterno medo do primeiro pânico. Você passa inexplicavelmente mal (ou muito explicavelmente se quiser entender) uma vez e depois apenas convive com a certeza de que pode, uma vez que já pode, quase não morrer novamente. E de fato a coisa volta. E volta. E volta. E quando não volta, simplesmente está. Quem tem a coisa estranha, tem a coisa estranha sempre, a diferença é que quando estamos ou queremos estar bem, viver distrai. E pra mim, aprendi recentemente, viver é exatamente isso: se distrair do medo que dá pensar em viver.
Enfim, durante muito tempo não sai de casa sem minha cartelinha de Rivotril sublingual. Pra ir do quarto até a cozinha de casa eu levava uma no bolso. Mas as coisas melhoraram e eu simplesmente não tenho mais cartelinhas de Rivotril. Fiquei apenas com o Exodus, uma vez ao dia, 10 mg, depois do café da manhã. Há meses sem brigar com mamy, sem brigar no trabalho, sem brigar no trânsito, sem querer esfaquear mocinhos (a não ser quando eles realmente merecem), sem ter medo de velhinhas esquartejadoras na padoca da esquina. Não posso negar que o tal do Exodus me faz bem. Até a manhã de hoje, em que o danado do remédio simplesmente acabou sem o meu planejamento.
Tudo bem, algo aparentemente fácil de resolver. Era só ligar pra psiquiatra e pedir uma receita. Ligo, ela atende, celular falhando: “não estou no Brasil”. Tudo bem, fácil de resolver, era só ligar pra minha amiga pediatra. Ligo, ela atende “eu tenho uma receita médica com dois peixinhos dando um beijo, tudo bem?” Acho que não. Melhor não, né? Sei lá, tomar um remédio com nome de disco do Bob Marley já é humilhação suficiente, não preciso de uma receita com peixinhos apaixonados. Nem aceitariam, acho. Tudo bem, fácil de resolver, eu tinha que ter tomado o remédio às dez da manhã e já são duas da tarde, mas o que não me falta é amigo doido. Ligo pro V. Você vai ao psiquiatra hoje? Ele fica puto “por quê? Você acha que eu deveria?”. Não, esse tá pior que eu. Tento o K. Você tem algum amigo médico? Ele fica puto “pô, Tati, já te falei que se você quer um cara rico, mercado financeiro é muito melhor que hospital”. Não, eu quero uma receita, mas deixa pra lá. Tento meu ex namorado que trabalha num prédio com 45 psiquiatras, mas quando escuto a voz dele, começo logo a fazer piada nervosa e não me explico direito. Algo sobre uma receita, sobre um remédio, sobre o Bob Marley, sobre minha vagina. Perai, me perdi um pouco. Ele não entende, mas ri, e eu preciso mais do que nunca do Exodus acalmando meu sangue. E agora? E agora? Tento minha mãe, mas o que minha mãe tem a ver com isso? Nada. Mas por via das dúvidas eu sempre tento a minha mãe. Tento minha analista. Ela não atende. O mal de não ser louco de verdade é que meu tratamento nunca é VIP. Eu sou só uma esquisitinha mimada que esqueceu de pedir a receita do remédio do cagaço. Mas nada disso importa, eu preciso do remédio e pronto. Pra sentir a falta da química enjoando meu sangue e dando vazio no centro da minha cabeça ainda demoram três dias, mas psicologicamente falando, já estou tonta e com o coração disparado. Se eu pagar mil reais, será que o farmacêutico me vende?
Lembro de um leitor neurologista, que me escreve umas obscenidades de vez em quando. Me arruma uma receita, Fulano? Arrumo, mas você tem que vir pegar em casa, umas onze da noite. O Exodus tá valendo a prostituição? Não. Não tá. Então o quê? O quê?
Às sete da noite, depois de tentar todas as ideias possíveis (inclusive, comprar uma caixa deixando minha carteira de motorista na farmácia até conseguir a receita com a minha psiquiatra na próxima terça-feira) já estou engolindo cinco litros de água por minuto e tremendo mais que dependente de drogas (ops!). Ligo então para uma clínica ortopédica que fica em frente ao meu trabalho. Preciso ir aí agora, entende? Agora? Você fraturou alguma coisa? Sim, o cérebro. Preciso ir agora. O doutor Alê me recebe. Eu tenho vontade de abraçar o doutor Alê. Vou direto ao assunto: eu tenho lordose, escoliose, cifose e o dedão do meu pé pode ser seu mestrado em ossatura extraterrestre, mas eu vim mesmo porque preciso de uma receita de antidepressivo. É feio fazer isso, eu sei, mas muito mais feio é ter medo de gente na padaria, entende? Doutor Alê faz a receita pra mim, Exodus, 10 mg, duas caixas, me olha, sorri, amigo: “sabia que pra homem esse remédio funciona pra ejaculação precoce?” Pra mulher também, doutor Alê, ansiedade é um gozo tão prematuro de felicidade que parece tristeza. Mas eu chego lá.

Louca

Uma vez, no recreio, comendo um Bis derretido, pensei isso, pela primeira vez: e se eu ficasse louca?
Vi minhas amigas trocando papéis de cartas, vi uns meninos correndo de testa suada, vi uma professora caminhar como alguém que pensava em alguém que ela encontraria no final do dia, vi tudo isso como se não pudesse ter, ver, ser. E se eu ficasse louca. Que triste para meus pais, que triste para a carteira vazia da escola, que triste para os livros plastificados com a etiqueta que dizia que era eu. Uma estudante, uma garotinha, com família, amigos, presilhas de cabelo, camisas brancas PP com um brasão que trazia um livro e um fogo. Se eu ficasse louca tudo isso seria o quê? Pra onde iriam os materiais e as pessoas e o amor? E se eu ficasse louca? Quem iria me ver babar num canto de um hospital? Existe louco em casa? Mãe ama os loucos? Louco tem amigo? Louco tem livro plastificado? Louco começa e não para mais até acabar? Louco uma vez, louca pra sempre? Converse. Respire. Pense em garotos. Pense em xampus. Vamos. Não fique louca. Mude de assunto. Pense na menina mais bonita do mundo e odeie. Dê nome pra loucura que ela deixa de ser. Sinta dor com nome que assusta menos. Caia na aula de educação física, rale o joelho, sangre, dói menos. Desembarace os cabelos e sinta que problemas se alisam. Faça o papel do Bis virar um barquinho. Isso. Conte uma piada. Se os outros rirem bastante. Se a sua estranheza puder ser amada. Qualquer coisa menos loucura. Pense naquela música da rádio. Não, você não está triste. Uma fofoca e pessoas em volta. Vá até o banheiro retocar o batom da moranguinho. O professor mais ou menos bonito, por ele. Os outros. Olhe. Os outros. Vamos. Que data mesmo? Da guerra. Que data? Qualquer coisa. Menos louca. O hino. Sujou um pouquinho da meia. Limpinha. Dê nome aos problemas. Problemas com nomes são problemas e não loucuras. Sempre evitando que ela saia. Sempre segurando. Não caia dura no meio do mundo. Não se chacoalhe no meio do pátio. Não vomite só porque sei lá o que é isso impossível de digerir e nem quero saber. Não abrace sem fim porque é preciso sentir o vento com o peito sozinho. Terrível mas tem banho quente pra distrair. Não espanque, não soque, não chore sangue, não arranque a língua, não grite, não acabe. Siga. Sorria. Mais uma prova. Mais uma festa. Mais um garoto. Sempre um pavor escondido mas nem era nada disso. Sempre uma tristeza abafada mas nem era nada disso. Sempre uma alegria exagerada que ninguém acolhe e o silêncio depois, fazendo curativos na pureza criando cascas. Um dia você será. O quê? Normal. Um dia você será. Normal. Um dia. Enquanto isso, se distraia como a professora que ama, as crianças que trocam papéis de cartas, os garotos que correm. Eles estão se distraindo também e pensando “olha, uma menina comendo Bis”.

Traíra

Venha, não tenha medo. É só o mar. Não, eu não sei nadar. Eu te ajudo, vem. Confia, vem. Estica a perna assim, abre o braço assim. Respira assim. Vem. Mas eu não sei. Mas eu tô aqui. Olhe meus olhos tão arregalados, como posso guardar mentira aqui? Eu posso cantar pra você, eu posso te segurar, eu posso ficar aqui até você conseguir. Eu não sei. Tá perto. Vai. Solta da borda. Eu sei, você já foi parar no fundo. Mas agora é diferente. Tá mais raso. E eu tô aqui. Eu vim do outro lado do oceano. Eu vim só por sua causa. Vem, larga da borda. Pode vir. Eu vi você como você é e é por isso que estou aqui. Confia. Não sei. Pode vir. Não tem mais ninguém. A borda é para os peixes pequenos. Solta, isso, relaxa a cabeça no meu peito. Não tem fundo mas eu te ajudo a flutuar. Você pode. Calma. Afoga um pouco no começo, cansa, desespera. Mas você quer como eu quero? Quero. Então eu te ajudo. Vem. Isso. Segura em mim. Paz. Azul. Agora, você está quase conseguindo. Falta só metade. Você está quase chegando, mas eu vou decepar a sua cabeça pra usar de bóia. Eu também não sei nadar.

A bobeira

Quando eu era criança, no meio da noite, às vezes eu escutava um sopro bem dentro da minha cabeça. Vai me dar a bobeira, eu pensava. E a bobeira dava. E eu ficava sem saber se a bobeira já tinha dado (e por isso eu pensava nela) ou se eu pensava na bobeira e ela dava. Eu mandava na bobeira ou ela mandava em mim? Se eu mandava nela, como obedecia?
Ter a bobeira era a pior coisa do mundo, mas era também uma honra. Eu lembro direitinho de olhar as outras crianças -e eu sempre lembro delas descalças e comendo cachorros quentes e dormindo suadas- e pensar: elas não têm medo da bobeira porque são bobas. Não entendem como é louco isso tudo aqui. Caramba, pense bem. É bem louco, não é? E pronto. Eu começava a tremer e queria vomitar e tinha certeza que não saberia viver. Eu nunca saberia viver. Nunca. Crianças só precisam pedir pros pais, não é? Como se vive, mãe? Tá, agora já posso ir brincar? Mas eu não, eu realmente pensava 24 horas por dia nisso. Em não saber viver. Se criança eu não conseguia, imagine adulta. Adulto ainda precisa cuidar dos outros. Mas como? Eu nunca vou conseguir. Mas passava, tinha prova, tinha menino bonito, tinha cansaço, tinha filme. E isso era viver e saber, mas eu não me dava conta. Nem hoje, se bobear. Dali a pouco, voltava. Eu passei mais de 60% dos segundos da minha vida assustada. Muito assustada. Mas rindo, mas fazendo todo mundo rir. E por dentro, um poodlezinho com medo da tosa. Fofo e fresco. E afiando dentes na madrugada caso me tirassem os pêlos bem no inverno. Você precisa ser menos agressiva, poodle. Ah é? E quem me garante então que não vão me arrancar os pêlos bem no inverno?
Eu posso explicar melhor agora que sou adulta. Apesar de continuar com o mesmo medo e com o mesmo respeito pela bobeira. Não, o mesmo medo não. Eu já sei que sei viver. Com ela. Não com medo dela chegar ou com medo dela ficar pra sempre. Mas com ela, sendo ela, sendo a bobeira, sendo o tremor, sendo o enjoo, sendo minha vontade de sempre ir embora. Mesmo ficando porque a gente ficou, pense bem. Não tamo aqui? Eu posso explicar melhor. Se depois do orgasmo você precisa de uns minutos abraçada, pro mundo não virar a coisa mais absurda do mundo e você ser engolido pelo buraco negro no asfalto de frente pro meu carro (eu sempre sonho isso). Depois da bobeira você precisa é de um útero. Porque ela é o orgasmo do mal. É o prazer que não se pode ter porque não te coloca no mundo, te tira. Não te aproxima de aconchego alheio, mas do inferno próprio. E o que é isso? Tentei algumas vezes. Para psiquiatras, analistas, neurologistas. É tipo assim ó: de repente, eu preciso ir embora, entende? Rápido, correndo. Por que o quê? Como assim? Porque eu morro, sei lá. O supermercado é terrível. Se você pensar bem, a obrigação das duas horas de um filme, pode ser terrível. E sentar retinha na cadeira do restaurante pra fazer alguém gostar de você? E o nariz, a gente tem nariz, entende? Cara, somos meio alaranjados e temos nariz. Nariz é estranho de doer, não é? E você beija uma pessoa, dai você lambe uma pessoa, dai essa pessoa dorme com você e, dali uns meses, o quê? Não sei, sumiu. Sumi. E segue-se.
Mas aí começou a piorar muito. Tipo todo mundo se divertindo na sala, e eu pensando: duas quadras, carro, três quadras, casa. Eu aguento. Eu posso aguentar. Duas quadras, carro, três quadras, casa. Tem mato, tem árvore, tem passarinho, tem filme 3D, tem passagem pro mundo inteiro, tem elevador com dezenas de pessoas que conseguiram tomar café da manhã, tem suco de laranja, tem nariz, somos alaranjados. Duas quadras, carro, duas quadras, casa. Eu aguento. Eu só preciso colocar isso aqui embaixo da língua. E mais um porque tá demorando. Talvez mais meio, porque tô cansando. E pronto. Só daqui 12 horas abrir os olhos e pensar como tudo fora do quadrado da minha cama me dá pavor.
Daí comecei mesmo a piorar. Tipo: padaria você consegue, vai! A bobeira, que muitos chamam de síndrome do pânico, é como sofrer um acidente e perder os movimentos da perna. Seu cérebro está aleijado. Não adianta correr meia maratona. Não adianta pegar um avião pra Nova Iorque. É padaria mesmo. Aos poucos. Ir à padaria é como fazer fisioterapia pra perna acidentada. Um dia a padaria do bairro, outro a padaria do outro bairro. E pronto. Você consegue ficar na sala com as pessoas sem pensar: duas quadras, carro, três quadras, casa.
Agora tomo um remédio de manhã. Que engulo como se fosse uma vitamina meiga que a natureza fez brotar pra mim de uma frondosa árvore outonal. Nem sei o que tô escrevendo, mas sei que não me parece química, de verdade. As pessoas falam pra mim “larga essa merda”. Segurando seus copos de bebida, seus cigarrinhos de mato, seus vícios todos, suas manias, suas madrugadas fritas, seus dias fazendo de conta que não é assim, seus Ipods, phones, pads. Quem é que larga essa merda? Que merda? A vida. A bobeira? Não largamos, nunca. Vamos como der. Algumas vezes de muletas, algumas vezes mutilados, algumas vezes sem nem poder tocar direito o chão. Mas vamos. Mais perto. Primeiro até a padaria. Mas falta pouco, muito pouco, para padarias na China, pois estou melhor. Mesmo. Ainda procuro sentar perto das saídas. Ainda suo um pouco frio pra viajar sem meu carro. Ainda pergunto, sempre, aliás: e se eu precisar ir embora, onde é? Mas melhor, bem melhor. Já até como na padaria.
Eu senti meu cérebro romper. E toda vez que penso nisso, eu choro um pouco. Porque, cara, eu sempre achei que a bobeira mandasse em mim. Que minha mente, essa filha da puta, mandasse em mim. A soberana. Mas no dia que eu senti, de verdade, formigar pra todo lado. E algo que não era o poodle afiado disfarçado. Não era ninguém além disso. Eu fui lá e falei, olha, cara, eu quero um remédio aí pra ansiedade porque, na boa, eu preciso de ajuda. De verdade. Nesse dia eu vi que a mente é como a perna. O joelho estraga se você fizer os exercícios errados. E fritar é foder o joelho do cérebro. E se o cérebro é só um joelho, então o quê?
Nada. É isso. Um dia, você descobre e está salvo. Nada. Viver é só esse mistério mesmo. Não tente respirar mais rápido que o mistério pra tentar chegar antes dele. Respire passos pra trás da vida e isso é só o que dá pra fazer. Ela ganha e ponto final. Ela ganha, mas a gente se diverte pacas com isso. É tipo estar numa festa linda, você conhece alguém pra amar, você pula meio de pileque na piscina, você nunca se esquece. Mas a festa era de outra pessoa que, gentilmente, te convidou. Não tente roubar sua casa, sua comemoração grandiosa. Apenas bata palmas na hora do parabéns e aceite o convite da vida.
Não dá pra entender nada. Mas é isso. Temos um nariz, somos alaranjados. Com calma, que agora consigo ter (por causa do remédio, sim, mas também porque precisei ter medo de supermercado pra não ter medo de super qualquer coisa). Com calma, você repara. E não é ruim. Com calma, não se vê lá fora o assustador borrado da velocidade. Se vê como é. E não é tão feio. E até o feio, tem seu valor. É só isso. A vida. Com calma. Mil quadras do carro e três mil quadras de casa. Só a vida. Uma linda e magnífica bobeira.

Gilmar

São onze da noite e ele, o Gilmar, me liga dizendo que não aguenta mais ser ignorado. Ele me quer. Agora. E está na porta da minha casa. Eu corro para fechar os trincos. Não estou mais no meu apartamento. Estou na casa dos meus avós. Fecho o portão do meio. Não estou mais lá também, estou no primeiro apartamento que morei com meus pais. Corro pra fechar a porta da cozinha também. Espio pelo olho mágico e Gilmar está de gorro. Não dá pra ver. Ele está calmo. Não grita, não bate na porta, nem aparece pelo olho mágico. Nada. A luz do corredor nem acende porque ele não se mexe. Mas ele liga de novo e avisa “chega de ser ignorado, eu vou entrar”. Ligo pra minha mãe, mas não acerto o número. De jeito nenhum. Agora vou discar com calma. 3, 8, 6, 2…não tem jeito, erro de novo. O inconsciente deixa claro: dessa vez não vai dar pra correr pra mamãe. Tento o mundo então. Abro a janela do meu quarto, que era meu quarto quando eu era criança, e grito para uma mulher na rua. Socorro. Homem tentando…tentando. Na hora que vou dizer o que ele está tentando, minha voz some. A mulher até olhou pra cima, mas desistiu. Corro e pego um papel. Mas nenhuma caneta funciona. Com muito sacrifício escrevo “homem tenta invadir minha casa”. Com o azul bem clarinho de caneta no fim. Jogo o bolo de papel que cai na cabeça de um homem que segura um bebê. Ele lê e grita “não posso fazer nada, estou cuidando do meu filho agora”. Ninguém parece dar importância. É como se, ser estuprada, assaltada, desgraçada, fosse um problema cotidiano. E os outros seguem nas ruas. Está sol. Tudo é tão calmo. Mas eu, pra variar, estou em pânico. O dia calmo, o solzinho gelado de fim de tarde que nada promete, e eu com pânico. É assim sempre e isso cansa tanto. Procuro meu Lexapro. Tomo logo 20 mg, afinal, trata-se de um estranho tentando entrar no meu apartamento. Chego na sala mais calma e ele já entrou. Mesmo com todos os milhares de trincos do mundo. Está sentado com seu gorro num canto escuro da sala. Minha cachorra não se move. Ele a matou? Matou minha cachorra? Grito “Lolitaaaaaaa” e ela se move normalmente. Ela não tem medo do Gilmar. É como se ele já morasse aqui. Tem chave e o amor da cachorra. O Gilmar não é feio não. Estamos na praia agora e eu estou cheia de picadas de borrachudo. Minha mãe liga dizendo que gosta do Gilmar. Meu avô vai dar uma volta e me deixar sozinha com ele, moço bom. Meu pai foi super com sua cara e divide um licorzinho. Mas Gilmar? Eu reclamo com ele. Mas que nominho heim? Ele diz: foca no mar e esquece o Gil. Todo mundo tem um lado bonito. Eu gosto disso. De repente, o que que é isso? Gilmar me deita no sofá e arranca minha calça e faz comigo o melhor sexo da minha vida. Calmo, carinhoso, devagar, com beijo na boca e olho no olho. Gilmar é tímido demais prum louco que invadiu minha casa. Como todo mundo pode gostar dele se ele deveria estar preso? Por que estou transando sem camisinha com um degenerado estuprador? Por que estou gostando? Gilmar, esse remédio que eu tomo, o Lexapro, me tira a capacidade de gozar. É sério. Eu até sinto tesão e fico excitada e tal. Mas gozar, demora aí umas cinco horas. Mas ele não tem pressa. E eu acabo conseguindo. E eu acho que amo o Gilmar. O cara do gorro que cansou de ser ignorado e resolver arrombar minha vida. Acordo com a blusa molhada e salgada. Mar. Só vou te chamar assim agora. Focando na parte boa. Ainda é cedo e dá pra dormir mais um pouco. Mas antes diminuo uma volta das cinco que eu dou na chave tetra da porta.

Sexo

Na semana passada, ele pintou um pontinho de caneta azul no meu dedinho. Isso foi a coisa mais sexual que me aconteceu nos últimos cem anos. Um pontinho de caneta azul no dedinho. Meu coração disparou e meu dedão do pé direito tentou estalar mesmo com a bota apertada. Um pontinho de caneta azul no dedinho. Uma língua na orelha é pau. Uma língua dentro da boca é pau. Pau é pau. Dedo é pau. Mas um pontinho de caneta azul no dedinho é como um espaço gigantesco de um pau que não existe. O maior pau do mundo que não existe. Não sei explicar, mas sei que é mais pau que pau.
Na semana passada, ele encostou o braço no meu, quando pediu emprestado meu carregador de celular. Eu emprestei e depois descobri que ele tem um Iphone. Então o quê? Não sei. Mas sei que aquele braço no meu foi a coisa mais sexual que me aconteceu nos últimos cem anos. Minha língua lutou bravamente contra o céu da minha boca. Uma vontade de me enfiar num buraco dentro do meu próprio buraco.
Nem nos olhamos, mal trocamos palavras, nem sei o nome dele, só o apelido. Mas eu gosto quando ele chuta sem querer a minha cadeira, no meio de uma reunião chata, e pede desculpas. Desculpa, e fala meu nome. Eu gosto de sentir os poucos centímetros que o pé dele causa no espaço entre a rodinha da cadeira e o meu corpo. Gosto de mudar de lugar no mundo por sua distração. Eu gosto que o chute é seco e decidido. E curto. E daqui a pouco mais um pouco. E desculpa, e fala meu nome.
Tudo isso é minha vida sexual do momento. Quando no elevador ele vira de costas pra apertar o andar e eu meço com meus dentes quantas mordidas dá uma lateral de pescoço. Quando ele espreguiça e o pedacinho de barriga que aparece tem o tamanho exato de uma lambida rápida. Essas coisas que quando vou ver, já pensei. Não, eu não quero mudar o texto, repensar o roteiro, arquitetar o layout. Eu queria mesmo era saber se sua cervical inteira secaria a minha língua numa lambida sem intervalo. E chego mesmo a abrir um pouco a boca, mas por fora é apenas um misto de cara de atenção com sinusite.
Na semana passada, porque talvez algumas coisas nos ultrapassem mesmo, ele beliscou com toda a força a minha cintura. E disse. Não sei. Acho que não disse nada. Ele riu à vontade, porque o tesão natural parece mesmo a coisa mais íntima do mundo. Nos conhecemos há mil anos, apesar de ser apenas a semana passada. E eu retribui unhando o seu cotovelo num belisquinho. Também sem dizer nada. E até agora não me caiu a ficha do quanto isso foi estranho. Ou caiu e eu nem pude experimentar essa estranheza, já que estou ocupada demais tentando entender porque algumas pessoas nos agradam pelo cheiro do pelo e não do perfume. São tantas obrigações entre uma sala e outra que ser bicho na copa parece férias.
Tudo isso foi a coisa mais sexual que me aconteceu nos últimos cem anos. E talvez eu nunca mais cruze com ele, porque ele nem é do meu andar e eu nem sinto nada de bonito. Mas por via das dúvidas me depilei e tenho sorrido mais. Uma mulher não precisa transar para estar transando.

A festa

Na sala a dupla mais improvável do mundo discutia Deus. Ele que não acreditava em quem não acreditava. Ela que a vida era um milagre divino, apesar de não existir divino. Na varanda alguém falava sobre mulheres que ejaculam. Menos de dois metros e o mundo vai de Deus a mulheres que ejaculam. E você quer o quê? Passar impune pela loucura? Quase que vai uma página do Grande Sertão pra enrolar fumo. Ce não vai ler isso tudo mesmo que eu te conheço. Depois da quinta mancha de vinho no tapete levei uma descarga tão forte na boca do estômago que foi como se tivesse me curado pra sempre de controlar tudo. Vai vinho, mancha tudo. Vai pedaço de pão esmigalhado por pisantes dançantes. Que as cinzas maltratem minha rinite nervosa até eu nunca mais ter rinite nervosa. Cansei da minha rinite nervosa. Sujeirinhas pra debaixo de tudo. Nunca mais minha casa seria limpa novamente. E eu nem quero. Eu não quero mais meu aparelho de dentes embaixo do travesseiro, pra evitar que eu me morda. Não quero mais tremer por causa do remédio pra evitar que eu trema. Não quero mais esse monte de caroço nervoso na nuca me avisando que não dou conta do que penso. Meu corpo é menor do que minha imaginação. Não quero mais ter um peso que não me serve pra nada. Só pra destruir ossos e histórias. Eu quero manchas de vinho e pedaços esmigalhados e, principalmente, usar o tempo pra celebrar tudo o que eu não entendo. Ao invés de fritar até ganhar alguma coisa. O que se ganha tentando competir com uma cara que não existe? Não quero mais tentar ser vomitada pelo monstro o tempo todo. Prefiro o quentinho de ser engolida. Sou minúscula. Prefiro ser filha do mistério do que uma mãe lutando pra controlar um filho gigante e livre e longe. Meu apartamento de 40 metros mal conforta meu ego e eram ao todo onze pessoas espalhadas pela casa. Tinha pipoca na pia e maço de cigarro dentro do microondas. Era uma sexta idiota e foi chegando um a um. Cada um querendo morrer ao seu modo. Todos cansados por pensar nisso só por um milésimo de segundo porque, afinal, é todo mundo muito normal aqui. E ser normal, pra quem luta diariamente pra isso, é algo a ser comemorado não pensando nisso. Uns fumam, outros enchem a cara, alguns vão de regulador de humor, outros comem beiradas de dedo. Eu tenho meu aparelho embaixo do travesseiro. Pro cachorro que mora no céu da minha boca não me devorar. Todos ao seu modo, juntos, pra modo nenhum. O coletivo do saco cheio tentando ter alguma vontade. O povo esfolado por brigar tanto com a vida, finalmente derrotado, dançando. Como um velório de certezas. Como uma entrega de corpos descontrolados. Uma dança da chuva pro seco do mundo. Não sabemos mesmo, então vamos dançar. Dai chegou a amiga japonesa da amiga loira da amiga antiga do amigo do meu melhor amigo. Muita gente nem tinha assunto. Eu nem gosto muito da pessoa que cedeu as batatas da perna para meus pés gelados. As pipocas não vão ficar muito tempo embaixo do sofá. É preciso não aumentar mais o som porque o interfone já avisou três vezes que vão chamar a polícia. Todo mundo vai embora. Talvez eu passe mal porque misturei vinho com ansiolítico e remédio pra dor de cabeça e magnésia bisurada e Listerine e uma saliva que não me conta nada. Talvez eu não consiga ter prazer hoje porque já acabou o efeito e já não tô mais aqui. Eu tô no amanhã cedo, limpando a casa, olhando a agenda de novo e, só pra tentar contar do meu jeito e me assustar menos, escrevendo um texto. Vai começar tudo de novo.

Chuva

Eu nunca tinha visto uma chuva tão forte. Não eram gotas, era como se o mundo tivesse desabando em água. Era como estar embaixo de uma cachoeira do tamanho de uma cidade. Todos os bancos e lojas da Paulista tinham sua própria fonte, já que os bueiros não suportavam mais a água e esguichavam pra fora. Tive que, por duas vezes, jogar meu carro em cima da calçada, porque a água em alguns pontos estava atingindo quase um metro de altura. Era impossível não pensar no 2012, por mais que eu ache esse papo maluco e chato.
Por causa do trânsito parado, só restavam às pessoas assustadas dentro de seus carros, olhar para as pessoas muito mais assustadas que não estavam dentro de lugar algum. Homens achando graça de dentro de padarias. A típica risada nervosa de quem se culpa por não poder e no fundo nem querer ajudar os outros. Quase carecas protegendo a cabeça com pastas, ao saltar de táxis para suas reuniões (e quem é que pensa em dinheiro quando o mundo pode acabar? Sempre tem alguém que pensa). Pessoas saltando de ônibus e correndo desesperadas. Crianças chorando. Mães carregando filhos já grandes no colo. Mocinhas encharcadas falando ao celular, como se desse pra pedir delivery de tempo bom. Gordinhos correndo como podiam, como dava, causando um misto de vontade de rir e raiva na gente. Não sei explicar a raiva.
Até que uma mulher começou a atravessar o farol na minha frente. Bem devagar pra não cair. A água estava quase nos joelhos dela. Ela olhou séria pra mim, me informando que, caso o farol abrisse, que eu esperasse o final vagaroso de sua travessia porque assim ela queria e, porque sofria tanto, queria do tamanho do mundo. E todo mundo respeitou em silêncio. Fascinado por ela que, sem cara de nojo, atravessava os esgotos da Paulista de chinelinho dourado. Tenho certeza que qualquer doença imunda ficou com medo dos seus pés. Ela usava uma camisa branca que já estava colada no seu corpo. Mas a sem-vergonhice também tinha medo dela. Tanto que não dava pra ver nada. Ou nem pensamos nisso. Com a mão esquerda ela carregava uma bolsa de camurça fajuta toda manchada pela chuva. Com a direita ela tirava uma franja lateral que insistia em cair nos olhos. Bem devagar pra não perder os chinelos dourados ou pra não cair ou, simplesmente, porque não adiantava mais ter nada a não ser essa coisa que, apesar de tudo, nos leva vivos pra casa. Era isso, o mundo que não se controla. A ordem caótica que, de repente, vira apenas caos e pensamos “como é que tinha ordem antes mesmo?”. E ganha quem tem mais desespero no peito. E o dela era tão enorme que a enchia da adrenalina da paz. O ponto máximo do pânico. Se movia como uma iogue. Como crescem as árvores. Era a natureza vencendo do outro lado do rio. Era sobrevivência pura sobrando depois de todos os estágios de socialização. Motoristas de ônibus, se pudessem ou soubessem, teriam assoviado algo bem clássico e feminino pra ela. Ou uma dessas músicas que se compunha para heróis de guerra. Ou esposas de reis. Se ela chegasse do outro lado da avenida Paulista, filhos continuariam nascendo, Natais continuariam sendo celebrados e pães quentinhos continuariam saindo nas primeiras fornadas do dia. Vamos, mulher.
Vamos, minha filha, você não tem a menor ideia de que porra estamos fazendo aqui. Se dói tanto amar, porque continuamos. Se dá tanta solidão pagar contas e impostos, porque continuamos. Se as relações são feitas também de tanta maldade, por quê? Se arranhamos e beliscamos tanto só pra tocar alguém. Se o corpo dói só porque não aceitamos pedir carinho. Mas é preciso se entregar em casa. Depois se pensa a respeito ou, com muita sorte, o cansaço vence querer entender tudo.
E ela chegou do outro lado depois do farol ter aberto e fechado duas vezes. Continuamos olhando pra ela até que as buzinas começaram.
Senti que poderia oferecer uma carona, mas preferi pensar que se ela conseguisse, sozinha e com medo e com frio e com a raiva sempre apaziguada pela sua própria força, eu também ia conseguir.

 

Cachorro

Tanto esforço pra andar ereta. Os remédios que refilam minhas gorduras, deixando esse quadradinho que encaixa em todo lugar. Minha bolha pronta pra sair rolando de tudo, agora mutilada. Tanto esforço pra caber nos lugares, um canto no mundo, uma missão na terra, um pedaço de sofá de festa de amigo, uma rebarba de coração alheio, um resto de cama. Tanto esforço para ter dos outros uma água no chão, uma casinha na varanda. Tanto esforço para ser o melhor amigo do homem. Para não ser animal e apenas um humano sociável, ou seja: cachorro dos outros. Permanecer, o mais insustentável dos verbos; e eu dopada, achando que consigo.
Até que, mesmo embaixo da nova química, da avalanche de gente me ensinando a viver, do calhamaço de papel me implorando que eu volte a pagar a fazer e a querer ter algo. Até que ouve-se um latido que começa baixinho. Ainda morde com dentes sem ponta. Arranha com unhas dobráveis. Mas daqui a pouco a natureza vence toda essa merda. E eu vou voltar a correr interesseira pelas ruas atrás de carne e postes e gatos e pernas pra trepar. Com laço e tosa pra disfarçar a feiúra de não suportar isso que todo mundo chama de “saber levar o dia”. Ao menos voltou a latejar o bicho, a única coisa que me cura de ter tanto medo de não ser um humano exemplar. Aos poucos ele me mostra como é fácil só respirar e ter fome e dormir e extravasar e ter raiva e abaixar o rabo quando vale a pena. Só isso. A simplicidade de existir, sem precisar super existir. E ter faro ao invés de desejo. E ter necessidade ao invés de angústia. E uivar ao invés de colocar o remédio embaixo da língua pra dor passar antes do meu cérebro virar um ovo frito. E poder andar de quatro sem a humilhação de não parecer acima das pessoas que me parecem tão inferiores. E não precisar arrumar desculpa para, de repente, cagar em tudo ou dar um tempo longe dali. O cachorro esfaqueado, derretido, empalhado, a massinha de cachorro dentro de uma caixa. A caixa que vai na reunião e sorri. A caixa que paga tantas contas. A caixa que mora e frequenta e tem e compartilha e sustenta e fica. Verbos transformados em substantivos por causa da evolução dos atos. A essência transformada em dureza pra durar mais e eu só querendo, sempre, ir embora logo. Ar, er, ir. Ser no infinitivo, com a brevidade de uma raiz, com a profundidade de um instante. Tirar a coleira que tanta dor me dá no pescoço. E correr num parque atrás de algum brinquedo ou cu alheio. E me roçar nos mijos das paredes dos prédios dos bairros. Qualquer coisa menos precisar tanto parecer uma mulher bem sucedida, trinta e poucos, apartamento próprio, família equilibrada, corpo em ordem, um amor para dormir embaixo das estrelas, uma vagina depilada e feliz, o cabelo das famosas, o cheiro da moda, a última notícia, o plano dos filhos para logo mais, os rendimentos milimetricamente estudados, os jantares com os casais que riem tanto mas preferem nunca tocar nessa coisa que aterroriza todo mundo, os almoços com quem pode me ajudar na roda social, os ciúmes bem escondidos, as dúvidas bem superadas, a desgraça bem disfarçada, o ódio transformado em “deixa pra lá, afinal, triste é ser só”. E sorrir, e salto alto, e jogo de cintura e acordar meia hora antes pra maquiar meu cinza.
Mas ele desperta preguiçoso, arrasta uma remela com a pata suja, lambe o próprio pau como os animais de estimação que odeiam a domesticação mas adoram a mordomia. E olha pra mim, sério e sábio e puro e apenas bicho. E eu escuto: seu erro é usar a única força que te mantém viva pra fazer teatrinho de gente.

Música

As pessoas seguram uma risada quase de pena. Mas se ele nem morava aqui, mas se ele não ficou mais do que uma semana com você, mas se já faz tempo que ele se foi, sem nunca ter sido.
Então o quê? Nem eu sei. Mas sei da minha enxaqueca que já dura uma semana. Latejando sem parar. O coração que subiu nos meus ouvidos. Gritando que sente falta e pronto.
Eu sinto falta de ligar o celular, depois do avião aterrissar, e ter uma mensagem sua dizendo que vai dar tudo certo. E sorrir mesmo estando numa fila gigantesca para o táxi, embaixo daqueles 78 graus do Rio de Janeiro. Não tem poesia nem palavra difícil e nem construção sofisticada. O amor é simples como sorrir numa droga de fila. E não se sentir mais sozinho e nem esperando e nem desesperado e nem morrendo e nem com tanto medo.
Eu sinto falta de querer fazer amigos em qualquer festa, só pra conhecer gente estranha e te contar depois. Agora, eu fico pelos cantos das festas. Voltei a achar todo mundo feio e bobo e sem nada a dizer. Porque eu acho que estava gostando mais das pessoas só porque te via em tudo. Agora as pessoas voltaram a me irritar. E eu voltei a ter que fazer muita força pra sair de casa.
Quando alguém não entende o meu amor, eu lembro daquele dia que você não queria tocar violão pra mim. Até que dedilhou reclamando que não era o seu violão. Daí tentou uma música conhecida. Tentou uma menos conhecida. Daí tocou uma sua, com a voz baixinha e olhando pro nada. E então me encarou e cantou com a voz alta. E então largou o violão, me encarou e cantou bem alto a sua dor, de pé, na minha frente, e eu achei que meu peito ia explodir. E ri achando que você ia sair correndo e dar um show na padoca da frente. E naquele momento eu pensei que poderíamos ser infinitos se fossemos música. E isso explica tudo, mas ninguém entende. Você entende. Mas cadê você?
Quando vai dando assim, tipo umas onze da noite, o horário que a gente se procurava só pra saber que dá pra terminar o dia sentindo algum conforto. Quando vai chegando esse horário, eu nem sei. É tão estranho ter algo pra fugir de tudo e, de repente, precisar principalmente fugir desse algo.
E daí se vai pra onde?