segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O que sobrou de Turim

Tudo o que guardei são flashes, sensações, segundos, milímetros, frames. Não me lembro de nomes de ruas, não me lembro de preços de entradas tampouco de sobremesas e nem dos melhores restaurantes, não quero pesquisar sobre a exposição do momento no museu do momento. Quero apenas respirar fundo, fechar os olhos e lembrar da primeira vez que pisei na Europa. Lá vou eu.
Perguntei ao taxista porque todas as janelas tinham cortinas verde. Perguntei sorrindo, tipo criança boba que de tão feliz vê magia em banalidades. Ele fechou a cara e respondeu que Torino era o melhor lugar do mundo. Eu vi que ele usava suspensório, boina, piteira e continuei sorrindo. Típico de uma turista mezzo loira, mezzo atrapalhada, dei 100 euros pra ele achando que eram 10 e ele me perseguiu 3 quadras pra devolver o dinheiro. Saiu me xingando. Eu continuei sorrindo.
Ia ter um show na pracinha próxima ao meu hotel. Estava uma noite quente e rapazes vestidos com uma moda que misturava a máfia italiana com a última tendência em Berlim passaram por mim falando de forma tão viva que foi como se me enfeitiçassem. Tudo era estranho demais e ao mesmo tempo quase familiar, como um filme do Fellini.
As ruas estavam povoadas de força motriz: gente das faculdades, das indústrias promissoras, das indústrias lutando para sobreviver. Gente boa. Eu só caminhei como uma ovelhinha feliz em pertencer aquele mundo. Eu esperava algo parecido com uma quermesse mas tratava-se de um show do New Order. Assim, de graça, sem trânsito, sem fila, sem neura, um show do New Order numa pracinha perto de casa. Eu até queria cutucar as pessoas e dizer “dá para acreditar?”. Mas pela cara blasé da maioria, dava fácil pra acreditar.
Era um tumulto de senhorinhas fervorosas comprando santinhos, medalhinhas e lembrancinhas de todos os tipos. O Santo Sudário passível de foto é apenas uma réplica, o outro fica guardado. Mas juntando toda aquela fé com todas aquelas idades e com todas aquelas senhorinhas, dava fácil pra sentir uma espécie de momento milagroso.
Naquele mesmo dia, só que a noite, me sentei num banco solitário bem no centro do Quadrilátero Romano, lugar onde se concentram restaurantes, bares, lambretas, casais de namorados, tipos bizarros com botas verdes por cima de calças roxas e algumas casas de show. Falei mal de todo mundo que passava mas, acho que pela primeira vez na vida, porque eu não tinha maldade nenhuma no coração.
Era a quinta vez que eu ia ao restaurante sem nome. Apenas um desenho de um gato negro na porta. Eu não agüento mais comer! Dizia em vão. E lá vinha o “nonno” com alguma degustação de pasta, de vino, de profiterole, de sei lá mais o quê. É de graça minha filha! Manja que ta fa bene! Lembrava da minha infância. Eu magrinha, por natureza, e minha família italiana me entuchando comida até não poder mais. Inconformados. Por isso escolhia o restaurante do gato negro nas noites mais solitárias. Família é algo que muitas vezes enche o saco, mas sem ela ficamos, muitas vezes, sentindo um baita vazio. O restaurante quase nunca tinha gente, mas sua esposa, quando não trazia mais comida, me trazia a foto de algum filho, neto ou sobrinho. Me senti na casa de parentes queridos que eu nunca mais veria.
Um dia acordei cedinho e fui para a estação de trem. Me deu uma espécie de bobeira e comecei a achar que cada centímetro daquela estação renderia uma foto inesquecível. Tirei foto de pássaros tranqüilos sobre trilhos, de turistas cansados sobre malas coloridas demais, de guardinhas cínicos e debochados sobre tantas dúvidas que eu trazia a cada instante. Então tem que validar o bilhete? Mas como é? Onde é? Eita que picotaram meu bilhete! Ele vale mesmo assim? Ei moço! E eles riam. E eu queria ter raiva mas sei lá porque é impossível sentir coisas mesquinhas na estação de trem de Turim. Desci em Milão e por lá fiquei algumas poucas horas. Eu não estava nem aí para o shopping Armani. Eu queria era voltar para os meus vovôs de suspensório.
Caminhei da praça dos cafés suntuosos até o parque que recria um vilarejo medieval com direito a castelo e tudo. Nas grades, milhares de declarações de amor na língua mais bonita do mundo. Em uma única tarde, as arquiteturas misturadas (e nem por isso não orgânicas) me fizeram caminhar com um pé em cada sensação. O poder monárquico e o industrial, o barroco e o futurismo, o contemplativo solitário e a força da agilidade, o museu das histórias contadas em papiros e o museu das histórias contadas em película.
Em fins de tarde, o que eu mais gostava era de caminhar pelas vias largas, com arcadas sombreando tudo e nem por isso escurecendo as vistas. Suntuosas, altas, próximas, decadentes, antigas, de primeiro mundo, de um mundo acontecendo, de um mundo esquecido. Via Roma. Uma atmosfera de revolução industrial novinha em folha com certo charme do século XIX. Grifes importadas, sapatos bregas e baratos, a agência de viagem que avisava “só avião, não ensinamos a pegar trem”, cafés perfeitos para tomar vinho , primeiro prato, segundo prato e mais milhares de comidas sendo servidas em meio a homens de um charme avassalador, garotas que se despediam cantando e crianças coradas e redondinhas.
Turim é formada da educação dos Alpes, do esbanjamento de Milão, da melancolia orgulhosa de quem já foi capital, da simplicidade em voz alta dos trabalhadores mais pobres que vêm da região sul, dos estudantes cheios de sonhos, da fé no catolicismo e no Juventus.
Tudo isso é muito perto de ser Turim e ao mesmo tempo Turim não é nada disso. Turim, pra mim, é o lugar que consegue fazer nhoque bom mesmo sem requinte. É o lugar que consegue fazer taxista simpático mesmo sem sorriso. É o lugar das cortinas verdes e fim de papo.
Isso foi o que ficou. Talvez tenha mais coisa, mas agora já abri os olhos.

Não é feito pra dar certo

Ele me pegou em casa a contragosto. Esbravejando. Xingando. Eu ri. Achei graça. Mudei de estação na rádio. O teu amor é uma mentira, que a minha vaidade quer. Tava tocando isso. E eu nem aí.
No banco de trás um casaquinho verde musgo tamanho PP. De alguma garota da noite anterior. Ou da semana passada. Ele é cheio de garotas e pela primeira vez na vida sorri ao pensar isso. Tá certo ele. Bonitão, rico, engraçado e safado. Que mulher não se apaixona por ele?
Eu. Eu não me apaixono mais por ele. O que significa que agora podemos nos relacionar. O que significa que agora, posso ficar tranquilamente ao lado dele sem odiar meu cabelo e minha bunda e minha loucura. E posso vê-lo literalmente duas vezes ao ano, sem achar que duas vezes na semana são duas vezes ao ano. E posso vê-lo ir embora, sem me desmanchar ou querer abraçar meu porteiro e chorar. Consigo até dar tchauzinho do portão. Tchau, vou comer um pedaço de torta de nozes e assoviar. Tchau, querido mais um ser humano do planeta.
Passamos no CEASA pra comprar caixotes podres de feira. Última moda em decoração de bibliotecas. Ele briga comigo, que pobre que você é, Tati. Mau gosto da porra. E diz que eu não sei tratar gente simples, que chego falando difícil de propósito. Eu não fiz nada disso, mas tô nem aí de me explicar ou convencê-lo do contrário. Morro de rir. Se eu o amasse, sentaria no chão e começaria a chorar. Por favor! Goste de mim! Por favor! Como assim eu não sei tratar gente simples? Eu ia ficar com isso na cabeça um mês. Ia aumentar a terapia em três vezes por semana. Ia fazer um curso na Casa do Saber de como falar com feirantes em final de expediente. Ia querer morrer. Mas apenas ri e continuei na minha missão de tomar garapa. Se eu o amasse, ia morrer de medo de passar mal de dor de barriga por causa da garapa. Ou dele me achar brega por causa da garapa. Mas como não tô nem aí, nem lembro que tenho barriga. E o feirante tentando entender o que era fashion. E eu arrotando internamente, sabor garapa.
Depois fomos à Bienal. Eu fiquei com nojo de colocar as luvinhas para ver as fotos. Porque o mundo todo usou aquelas luvinhas não descartáveis. E ele me olhando com preguiça. Ai, Tati, como você é fresca. E eu assumi minha frescura e o larguei falando sozinho. Se eu estivesse apaixonada, ia bolar milhares de motivos mirabolantes para lhe explicar meus motivos em não querer usar a luvinha. Ia entrar na lenga lenga insuportável de pedir desculpas por ser como sou, como se isso tivesse explicação ou desculpas ou salvação. Teria morrido, ou melhor, o matado, porque não suporto olhares de preguiça e reprovação. Teria perguntando, ainda que inconscientemente, o que fazer, naquele fim de tarde, para ser absolutamente perfeita. Me odiando e odiando ele por me sentir assim, uma imbecil. Mas não, apenas fui ver as fotos. Ele me achar fresca e uma barrinha de cereal sabor artificial de banana tem o mesmo poder sobre mim. Nenhum.
No final do dia fomos até a casa de uns amigos dele. E eu lá, pela primeira vez na vida, gostando dos amigos dele, tratando todo mundo bem. Rindo pra caramba daquele monte de besteira. Ficando amiga das garotas de 20 anos com sombra roxa nos olhos. A galera que vai em peso para “a praia do momento para quem quer pertencer a algo que todos querem pertencer mas não sabem bem o que é”. E ele me olhando de longe. Ah, se ela tivesse agido assim. Tão normal, tão simpática, tão leve, tão boa companhia. Ao invés daqueles surtos de ciúme, daquelas cobranças por mais intensidade, daquela necessidade em acordar de madrugada com medo da vida, daquela arrogância pra cima de mim e dos meus amigos que não sabiam conversar de livros, filmes, músicas e dor na alma. Se ela tivesse confiado assim no taco dela. E sorrido mais. Se ela tivesse me amado sem amar. Ou como amam as pessoas que conseguem se relacionar. E eu lá, sendo adorada por ele, justamente porque não o adoro mais. Ô vidinha filha da puta.
No final do dia, a frase que eu temia. “Quer fazer alguma coisa amanhã?”. Eu sabia. Toda mulher feliz e equilibrada deixa saudades. Mas eu não queria. Eu só queria amar alguém, com toda a tristeza e desequilíbrio que vem junto com isso, e continuar deixando saudades.
Quando dizem que namoro ou casamento ou qualquer relacionamento mais sério não pode dar certo, eu discordo. O que definitivamente não dá certo, ao menos para mim, é se apaixonar. Agora, que graça tem fazer qualquer coisa da vida sem estar apaixonada? Ô vidinha filha da puta.

Abismo

O garoto sai do banheiro feminino achando graça. Tava muito apertado e não rolou esperar pra usar o outro. Gosto dele de cara. É o tipo de garoto gatinho, tímido e ansioso que você sabe exatamente como se comporta pelado: cachorrinho, demorado e desinibido. Gosto mas faço de conta que não. Sorrio superior afinal sou pelo menos uns sete anos mais velha e uns quinze mais esperta. Ele entende na hora tudo e compra a submissão. Faço meu xixi com pressa porque gostei mesmo do garoto.
Ele senta perto de mim na mesa. Está na mesma festa que eu, com a diferença que eu já fui chefa do chefe dele. Só aí já é um bom motivo pra ele me olhar baixo mesmo. E ir com muita calma. Ele mexe no cabelo, ajeita a calça pra sentar, alinha a carteira com o celular em cima da mesa. Que garotinho bonito. Ele está nervoso e fica ainda mais bonito. Gosto muito dele.
Ele então começa a rir alto. Contar de garotas da idade dele. Se exibir para garotas da idade dele. Ele é o sucessinho da festa. Faz tudo pra chamar a minha atenção. Eu sei. A cada dois segundos ele olha pra saber se eu estou olhando. E ri. Eu só espio por cima dos meus óculos. Sem nem gostar e nem não gostar.
Quando dou por mim, que absurdo, estou pegando um cigarro da minha amiga. Acendo, não trago, mas faço pose. Olho pro horizonte. Sou sofrida, você vê, garotinho? Sou tão sofrida e experiente e estranha e terrivelmente charmosa. Percebe? Você aí, com essa alegria terrível de viver e jorrando beleza e graça pra cima de mim. E eu aqui, arqueada pelo tanto que carrego de mundo e suas rasteiras. Você acha que é quem pra me abalar assim? Eu li muitos mais livros que você. Conheço mais países e pessoas e gemidos e vontades de morrer. E você com tanta graça pra cima de mim. Percebe que não vai ser fácil? Vou dificultar bastante pra você. Até porque é só o que eu posso contra essa coisa fácil e linda que é a sua vontade. Contra você eu só tenho a minha impossibilidade. Como se todos não a tivessem. Contra seus olhos que sorriem e isso me mata tanto, só tenho a parede nojenta que criei pra você jamais descobrir que sempre compro duas entradas para o concerto. Na espera do que não quero.
Ele senta ao meu lado. Cara de pau. Me provoca. Diz coisas inteligentes e delicadas. Eu acendo outro cigarro. Seguro a tosse e a ânsia. Hoje eu fumo e isso é como um braço meu. Não venha querer me dizer como deve ser um braço meu ou eu soco você. Pergunto se ele quer conhecer minha casa. Ele fica assustado e ri. Ele pede mais uma água com gás, sem gelo e com limão. Eu não sei o que acontece comigo, mas peço uma taça de vinho e bebo como macho. Ele me pergunta o que eu faço da vida. Eu respondo: nada. Eu não faço nada. Eu leio, o dia todo. Tô louca pra contar que sou escritora e roteirista e todo o blábláblá mas me dá a louca e eu respondo isso. Eu leio o dia todo. Ele estranha, arregala os olhos. E quem paga suas contas? Eu respondo que não pago contas. Odeio todas elas. Odeio qualquer cobrança. Aos poucos, sinto um prazer descomunal. Acendo mais um cigarro. Resmungo algo sobre Deus ser como os cinzeiros. Nunca estão onde a gente precisa. Se é que existem. Dessa vez tusso, não estou dando conta do personagem, mas sigo em frente reclamando: preciso parar, sabe? O médico falou que já passou da hora. Aliás, odeio qualquer um querendo cuidar de mim. Ou saber da minha vida.
O garoto topa vir para a minha casa. Ele chega querendo me contar mil histórias mas eu pouco suporto a metralhadora. Pessoas são interessantes só na minha imaginação. A partir do momento que elas passam a ter vida própria, sinto vontade de jogá-las pela minha janela. Ele perde a graça a cada minuto e eu o odeio por isso. Eu estava feliz por gostar de algo e sair de mim. Mas não mantenho nada aqui dentro. E já sinto o tédio novamente. Largo o mala falando sozinho e vou para a minha varandinha. Não sei e nem quero saber dessas coisas que ele quer me mostrar que sabe. O quê? Sei lá que livro de merda é esse. Coloco Keith Jarrett no ultimo volume e vou ficar terrivelmente sombria olhando para as casas em torno de mim. Fumando de um patamar jamais escalado por qualquer ser humano. Pior ainda os bem intencionados. Ele está louco por mim. Eu sou tão misteriosa e inatingível e dura e alta. Ele me abraça por trás. Eu gosto dele. Eu gosto muito dele. Mas não posso. Não quero. Ele é chato, mala. Sai daqui, garoto. Daqui a pouco ele vai precisar de mim ou eu vou precisar dele. E seremos mais um casal. E se eu quiser ficar desfacelada num canto e ele sofrer com isso? E me ameaçar, como todos, dizendo que vai deixar de me querer só porque sou assim, tão incapaz de querer? Ele vai descobrir. Eu estou morta. Ele vai descobrir. Eu morri há muitos anos quando era para eu ter morrido. Por isso não acendo a luz, minhas plantas são um pouco secas e murchas, minha casa é rachada, bagunçada, suja, mal assombrada. Não quero planejar, sair da cidade, ter um filho, conhecer seu melhor amigo, ver suas fotos, largar esse cigarro maldito, cuidar dos meus dentes, colocar perfume, fazer um exame de saúde. Não quero. Porque eu estou morta. Eu nem saio mais em fotos. Sou um fantasma. Amo com a intensidade de um último sopro, mas sempre morro em seguida. Ele vai descobrir. Ele vai me amar muito porque nessa tentativa de amar sou tão única e especial e absurda e perfeita e tudo. Mas depois. Nada. Vou deixar que ele me reanime com o choque e então será tão bom. Mas depois. Quieto e sereno como os elefantes que sabem o dia que vão morrer. Vou caminhar enorme e derrotado e cinza e sem drama para a minha vala.
Ele me abraça e é tão bom. Ele é só mais um tentando me salvar. São sempre os bonzinhos e puros que caem no meu papo furado de longa espera por algo que valha. Faço eles se sentirem um presente do mundo pra mim. Finalmente o escolhido. Os desembrulho de tal modo e eles têm certeza. É a primeira vez que se abrem. Agradeço a surpresa e torno a vida deles tão superior a tudo que já foi vivido que fica praticamente impossível voltar pro mundo.
Ele pergunta o que eu tenho. E então começa o festival de sempre. Tenta me alegrar e eu ignoro. Tenta me emocionar e eu ignoro. Se fecha e eu ignoro. Me enche de beijos e eu reclamo. Estou fedida. Me deixa, me deixa. Ele desiste e desaba no meu sofá. Ele não sabe o que fazer. É o desfecho grandioso da crueldade do meu personagem. O momento em que deixo claro que a pessoa quase conseguiu. Algo impossível e você chegou tão perto! Nunca ninguém chegou tão perto! Por que você foi estragar tudo no final? Eu estava a fim. Abri minha casa para você. Você tinha tudo pra me dobrar. Mas você não conseguiu. Balanço a medalha na frente dele pra depois dizer que nunca ninguém chegou tão perto de usá-la. E então, lanço o caralho da medalha pra puta queu pariu. Ouvimos o som dela se espatifando longe e para sempre. O garoto vai embora se achando um lixo. Mas conforme anda, volta a sentir seus músculos e cores e sentidos. Que sensação é essa que mata a gente só porque escapamos da morte? De cada amor, tu herdarás só o cinismo. Ele vai embora enquanto espio. Eu vou embora junto. Quem é que fica?

Eu e o resto do mundo

Eu sentia tudo e com muita particularidade desde que começou a sentir alguma coisa. Tudo começou no dia em que sentiu sua primeira raiva, lembra bem. O dia em que quebrou seu único e primeiro dente. Depois desse dia, eu combinou que não perderia mais nenhum dente sequer. E cumpriu. Nenhum dente de leite caiu, todos tiveram de ser arrancados com anestesia. As raízes eram imensas e fortes. Eu isso, eu aquilo, eu, eu, eu. Desde pequenininho essa força absurda pronta pra destruir brocas ou a si mesmo.
O resto do mundo fritava menos, enquanto isso. Quem ter irmãos, pensa menos como é um absurdo nascer. O resto do mundo via que do mesmo buraco outros tinham chegado. O resto do mundo seguiu a carreira que todo o resto do mundo segue. O resto do mundo ganhou dinheiro porque o resto do mundo, a sua volta, ganhava. O resto do mundo achava que alguma coisa ia mal, alguma coisa faltava. Mas vai ver que é assim com todo mundo.
Eu sabia que faltava alguma coisa e que essa coisa que faltava, dessa maneira e desse jeito, era algo muito seu. Por isso escolheu fazer uma coisa que mais ninguém no mundo poderia fazer a não ser eu mesmo. Eu tinha tanto o que pensar e sentir, que refutou muitas coisas. Eu podia parecer preconceituoso, mas era apenas ocupado em si mesmo. O que parecia um erro terrível, mas era só um medo filho da puta do resto do mundo.
O resto do mundo continuava achando que algo faltava e então chamou isso de tristeza. E então, ficou perto de gente triste, pra poder ser triste. Se o resto do mundo fosse eu, ficaria triste e pronto. Mas o resto do mundo precisava de mundo, pra sugar e tal. Ainda que depois, se fechasse em seu mundo pra brincar de eu. Depois achou que lhe faltava morte, e ficou perto da morte. Depois achou que lhe faltavam palavras e assim fez, morou com as palavras por anos. Até que as emprestou e virou um pouco as palavras. O resto do mundo é música, é letra, é história, é tudo. O resto do mundo é gigantesco. Mas tem um medo filho da puta de ser eu.
Eu também adora brincar de resto do mundo. Sai sempre que pode de casa. Experimenta tudo. Tenta entrar nas coisas. Tenta deixar as coisas um pouco dentro de si. Logo vem o medo de vomitar. De expulsar tudo que não é eu. Eu precisa do resto do mundo perto o tempo todo, para senti-lo. De longe, eu só sente eu. Eu ri do resto do mundo. Um misto de nervoso, arrogância, ritual de sobrevivência e servidão.
Eu virou eu justamente pra se proteger do resto do mundo. Então, quando escuta que é amado pelo mundo, duvida, provoca e espanta. O resto do mundo virou resto do mundo justamente porque ser eu enlouquece e é limitado. Então, por mais que eu seja esperto, o resto do mundo só vê um rato de laboratório, preso e correndo em sua esteirinha.
Eu adoraria casar e ter filhos e construir um lar. Mas para isso teria que ser um pouco nós. O que é quase a morte. O resto do mundo pode ser tantas coisas, pode se vestir de tantas coisas, que não é e nem quer coisa de ninguém em específico. E também acabou sozinho.
Eu come pouco e vive enjoado. O resto do mundo engole o que vê pela frente e vive com dor de estômago. Um é ligado demais por dentro, não quer mais do que é porque o que é já quase o explode. O outro nem lembra o que esse por dentro agüenta, de tanto que carrega tudo pra ser algo. Pode tanto tudo que tudo banaliza.
Eu diz coisas feias que saem sem filtro e de dentro. O resto do mundo diz coisas lindas que já chegaram filtradas, de fora. Os dois sabem do que o outro está falando, mas é que dá uma preguiça desgraçada parar de brincar só porque a bola caiu do outro lado do muro.
Eu e o resto do mundo, são seres solitários que se atacam. Cada um pra defender o seu ser de tantos mil anos. Um sem saber o que fazer com o amargo que desce da boca pro cu. O outro sem saber o que fazer com o amargo que sobe do cu pra boca. Um com medo do que pode calar tantas certezas conquistadas na ignorância, o outro com medo da voz trêmula que poderia ter a sua inteligência se não estivesse pautada em algo. Eu não sabe o que sente, mas diz mesmo assim. O resto do mundo tem certeza do que sente, mas quando diz, fala pelo resto do mundo. Eu entende só de si, o que já é uma humanidade inteira. O resto do mundo entende de todo o resto, o que faz eu parecer uma criança de cinco anos se debatendo pra entender tanta vontade de chorar ou de ser feliz.
Eu e o resto do mundo desistiram de se amar em suas roupas rasgadas pela luta. Mas nus, eu empresta do resto do mundo um silêncio que seu eu jamais lhe daria. Ter o resto do mundo dentro de si é a morte mais feliz. Ainda que doa e ainda que seja morte.
E o resto do mundo pára, quem diria. O mundo pára pra ver eu. O mundo pára para ver como eu sente e se explica sem fim. Sem eu, o mundo é um lugar enorme, mas sem vida passeando em suas riquezas. Eu precisa do mundo para ser lido. E o resto do mundo precisa de eu para ser livro.
Depois eu volta a sentir tudo com uma solidão avassaladora. Depois o resto do mundo volta a rodar. A rodar e atropelar eu. A rodar e trucidar eu. Eu volta a martelar em si. O resto do mundo volta a somar todos os martelos do mundo para se sentir martelado. Cada um na sua despedida egoísta, vingativa e perdoável. Na sua vida a dois que não existe a não ser por essa intersecção, no ponto onde eu se esquece pra pertencer e o resto do mundo se encontra pra ser alguma coisa.
Não é inveja isso que nutrem um pelo outro. Nem ciúme. Nem ódio. Nem maldade. É absurdo. É só absurdo. Algo tão parecido com amor que confunde a vida.

Olheiras, ossos e escárnio

Já que você me viu dormir, acordar, tomar banho, gozar e ter medo de requeijão vencido, acho que posso te dizer mais algumas coisas. Até porque não preciso ter medo de espantar o que já está tão longe de mim.
Eu vou embora porque tenho pavor de você querer que eu vá embora. Não ser mais desejada por você é como ser convidada pelo super homem para sobrevoar minhas dores e, de repente, só porque o super homem não existe e eu deveria saber disso, ser lançada lá de cima, de encontro aos meus mundinhos antes tão grandes, depois tão pequenos. Agora enormes. Se aproximando. Se aproximando. E cair de cara em mim mesma. E me quebrar e quebrar tudo de novo. Eu não faço questão que ninguém goste de mim, mas fico completamente louca quando alguém gosta. Porque descubro que cada segundo da minha vida foi pra sentir isso. E o que será dos próximos segundos? Não me tire da minha merda pra depois me lembrar que tudo é uma merda. Sem fim, sem fim.
Eu só queria voltar a ter aquele cabelo curto e loiro e ter o braço inchado de puxar ferro. E comer que nem uma vaca enquanto seduzo idiotas em almoços idiotas.
E comer os idiotas enquanto seduzo eu mesma achando que talvez o segredo seja fugir do fato de que sou uma mulher. Eu era feliz. Na verdade eu não era nem um pouco feliz, mas pelo menos eu sabia o motivo.
Eu quero aquelas ligações superficiais e descartáveis no meio da tarde, que me enchem de irresponsabilidade e morte. Depois a despedida doída, mais uma vez servir ao amor sem saber amar nem um pouquinho, mas pelo menos, nesse caso, ser exatamente o esperado, o correto, o forte, o jeito de se viver como tantos vivem. E me sentir desesperada por estar levando uma vida normal e ter a opção a qualquer momento para enlouquecer e chutar tudo. Mas quando se está louca e chutando tudo e ainda assim se sente desespero, o que resta?
Com você e todo esse amor, eu consigo apenas me largar pelos cantos assustada. Isso é vida? Eu não quero andar duas quadras no sol com você. Porque te amar assim, me dá medo de enfartar ou da minha pressão cair. Não sei. Eu quero deitar e esperar passar tudo. Eu quero te olhar deitada enquanto seguro um copo com água de coco geladinha. Porque você não sabe, mas tenho corrido maratonas e vencido monstros gigantescos para conseguir sentir tudo isso sem arrancar minha cabeça fora. E quando você, ao invés de me esperar no pódio de chegada com pomadas e isotônicos, me olha desconfiado ou entediado de tudo, eu quase desejo que dessa vez eu morra no meio da corrida. Porque é ridículo achar que você faz tudo valer a pena, mas, no fundo, acabo achando que você faz tudo valer a pena. Isso é vida?
Eu queria cutucar as pessoas na rua e perguntar como elas fazem pra ter pernas grossas e filhos pendurados nas pernas grossas. Eu não faço a menor idéia de como se vive, se cresce, se multiplica. Eu só me como por dentro, me corrôo de ciúmes, fico tentando segurar tudo com medo que eu comece a despedaçar no meio da rua. Eu me maquio pouco, como pouco, transo, digo e amo pelas beiradas. Tudo pra eu me arrepender menos na hora de limpar a sujeira. Tudo pra, arrogantemente, não sentir a vida como bicho. Quando tudo o que eu queria era andar de quatro pela casa e mijar nos cantos. E olho pra você, meu amor, como eu amo você, e tenho vontade de enfiar o garfo no seu braço branquelo. E não me pergunte como é que nascem pessoas assim, como eu, que amam com tanta necessidade de machucar. Como é que tem gente, como eu, que acha que sentir amor é uma gripe forte, uma célula mutante, um motivo pra chorar muito como se a vida fosse demais pra gente simplesmente viver sem prestar atenção nela.
Não me pergunte de quem é a culpa e não me pergunte se tenho consciência disso e não me pergunte nada. Eu sei de tudo, eu sei muito de absolutamente tudo. E por isso mesmo é que fico catatônica vendo minha incapacidade de amar ou ter pernas grossas.
Como é que se vive? Eu queria cutucar as pessoas. E se você não suportar mais? Como é que faz? Como eu faço pra disfarçar a solidão profunda que sinto no meio de reuniões, no meio de papos leves, fins de sexo e começos de relacionamento? Como eu faço pra ficar perfeita o tempo todo ou virar um bicho estranho e não precisar mais de ninguém? Eu jamais serei o que eu quero e jamais serei o que eu sou sem precisar disfarçar que quase sou o que eu quero. E cada hora eu quero uma coisa. E no fundo eu não quero porra nenhuma. Talvez só encher um pouco o saco, provocar, ser expulsa do peito de todo mundo porque não agüento morar nesses lugares obscuros que são os outros e suas más intenções disfarçadas. Tudo é uma jaula, até minha fuga. Principalmente minha fuga. E eu estou cansada demais. É só olhar pra mim. Olheiras, ossos e escárnio.
Gosto das pessoas fortes e burras. Gosto porque jamais vou odiar o que não amo. Como é bom cagar pro mundo e andar de cu ereto. Basta amar alguma coisa para eu enfiar o rabo entre as pernas. Para eu arquear os ombros pra frente. Porque quero proteger tanto você dentro do meu peito que acabo andando como se eu tivesse grávida na garganta. Cada vez que eu quero falar ou comer ou gritar ou viver. Vem o medo de que você me saia pelos buracos da cara. Medo de vomitar você.
Como é que se vive? Como é que se ama em meio aos fedores e sujeiras e desistências da sua casa? Como é que se espera alguém voltar do seu mundo particular se eu acabo, por conta de um medo absurdo, indo para o meu para não ter que ver você longe? Esperar o quê? A vida secar tudo, murchar tudo. Não quero viver a porra do momento como dizem. Me sinto o tempo todo uma inocente me debatendo nas paredes de uma piada de mau gosto. Só queria achar a saída e rir por último. Como se eu tivesse tamanho ou força pra peitar assim as coisas como elas são. Ser humano é constatar nosso tamanho ridículo perto das coisas como elas são. Ser humano é a coisa mais linda e sábia a se fazer. Mas ser humano dói em mim de uma maneira tão especial e absurda e assustadora que, em meio a toda essa auto-estima de merda, ganho certa arrogância. Não tenho mais bunda, nem dinheiro, nem peitos, nem sorrisos, nem amigos, nem viagens, nem línguas, nem nada do que os outros..mas tenho meu jeito de bloquear a vida fora e mergulhar aqui nessa coisa horrorosa. Nessa lista VIP da pior festa do ano só tem o meu nome. E lá vou eu voltar pra mim e esperar algum saudosismo escondida atrás da minha porta, com a arma na mão. A porta com todos os trinquinhos. O olho mágico vendo o escuro eterno das pessoas que desistem porque até eu mesma sempre desisto.
Aos poucos os olhos se preenchem. As pernas engrossam. Minha voz volta a parecer a voz de uma garota que merece ser amada. Compro uma roupa bonita. Mudo de analista. Escolho uma comédia ou uma revista de fofocas. E então estou pronta de novo. Sou uma armadilha pra ratos. Sem queijo. O que me faz pensar que só atraio quem merece.

Mundo pequeno

Quando o Ricardo me conheceu numa dessas micaretas de faculdade, há trezentos anos, ele exclamou que tinha certeza que eu era muito mais alta. Ele tinha lido alguma coisa que escrevi num desses fanzines toscos de diretório acadêmico e tinha me imaginado maior. Depois, quando ele já não imaginava mais nada mas resolveu se meter no que eu imaginava, reclamou que eu escrevia muitas futilidades. Ele era médico e não entendia meu mundo. O mundo dele, de urologista, era muito mais interessante. Terminei com ele não sem antes concordar: passar o dia pegando em vários pintos é mesmo mais interessante do que escrever sobre um ou dois. Ainda mais pra ele.
Quando o André, meu roteirista preferido, resolveu que queria me conhecer mesmo não tendo aprovado sequer um roteiro meu, eu fiquei sem entender nada. Seus textos, Tati. Seus textos. Sempre eles. Não serviam para aprovar, não serviam para humor, não serviam para a boca do personagem de rugas corrigidas pelo computador. Mas tinham acabado com a semana dele. Sem dormir. Seus textos. Quero te conhecer. Tô indo pro Brasil. Quero te conhecer. Ele era meu roteirista preferido. Eu não podia dizer não. Toquei a campainha as duas da manhã e avisei que ficaria só meia hora. Eu só sei viver em meias horas. Ele disse que viver pouco combinava com o meu tamanho. Mas só com ele. E por lá fiquei dezenas de meias horas, ouvindo em todas elas como não fazia o menor sentido o meu tamanho. Depois, quando ele já não sabia mais o que fazer com meus meio metros e meias horas, disse que, talvez, eu devesse falar menos de tristeza. Eu não perguntei nada, mas ele quis dizer. Você escreve tão bem mas sofrer é chaaaato. No exato instante em que ele perdeu a graça, lembrei que os saltos estavam me matando e fui embora.
Quando a Amália me chamou pra ser sua madrinha de casamento, avisou que tinha insistido muito com o marido que, segundo ela, tinha medo de mim. O Beto não gosta muito de você, sabe, Tati? Ele não gosta não. Mas por quê? Ele nunca me viu na vida! Ahhhh, quer saber? No fundo, o Beto não gostar muito de mim é quase um elogio. É como se meu amigo Nelson Rodrigues me dissesse “esse Beto é mesmo um pulha, querida Tati”. Foda-se o Beto.
Depois, na hora de abraçar os padrinhos e madrinhas, nunca vou esquecer, o Beto me falou, ao pé do ouvido, na frente de um anjo que quase caia: “até que pra uma baixinha você é bem bonita”.
Recentemente estive em Porto Alegre e uma leitora me disse que sempre me imaginou trintona. Eu disse, me achando a mais bem cuidada “mas eu sou trintona, sei que não parece…mas faltam poucos meses e...”. E ela disse “não, guria, tri altona”. Sim, claro. É, desculpa, mas eu sou média mesmo. E ela riu. Achou engraçadíssimo eu ser média, mesmo.
Tem sempre alguém achando um absurdo eu escrever sem usar os “lhes” e “los” e outras firulas. Meu português simples e direto e sem os mares assoviados que planam na planagem dos assovios que se perdem no trilho do trem assolado. Tem sempre alguém achando um absurdo eu não saber o que disse aquele filósofo ou poeta ou colunista de revista gringa. Tem sempre alguém me comparando com as histéricas “dadeiras”, com as discípulas dos beatniks que vivem “pra caralho, meu”, as doidinhas que largaram tudo pra “super viver a vida, cara”, as blogueiras que contam do dia com fotinhos para ilustrar, as traças que vivem de livros e drogas pra descobrir o que pensar da vida ou sei lá mais o quê de desgraça se pode encontrar por esses bares de gente que faz sarau ou simplesmente faz mais melhores amigos.
E achando um absurdo erros de português. E imperdoável eu não falar outras línguas. E que eu deveria conhecer mais o mundo. E que eu deveria falar dos outros. E que eu deveria falar menos de mim. E que eu deveria, deveria, deveria. Tem sempre alguém reclamando de ter virado personagem. E reclamando de nunca ter virado nada. Tem sempre alguém reclamando que é muito triste, que é muito pesado, que é muito bobinho, que é muito zorra total, que é escatológico, que é muito adolescente, que é muito puro, que tem muita putaria, que é velho demais pra minha idade, que sempre fala a mesma coisa, que não diz coisa com coisa, que incomoda, que não causa nada, que me expõe demais, que me protege, que diz tudo sobre mim, que não diz nada. Tem sempre alguém chegando e indo embora por causa deles. Atraído, espantado, enojado, louco, excitado.
De Jucymaras do sertão a advogados do presidente. Todos os dias chegam e-mails. Daqui e de todos os cantos. De surfistas prateados a neurocirurgiões amarelados. Todos os dias chegam e-mails. De garotinhas ginasiais que não entendem tudo a suas avós que entendem além, mas isso passa. De amigos e gente que torce pra ser um texto triste. Tantos e-mails lindos. Todos os dias tem um. De garotos para uma manhã a amores infinitos.
Ah, se você lesse mais. Ah, se você soubesse menos. Ah, se você. Se você. Se você. Me achando uma arrogante egocêntrica máster sete cruzes ou simplesmente alguém pedindo socorro antes das bolinhas de gude correrem para as valetas do mundo. Querendo me ver pequena pra calar a curiosidade crescente. Querendo me afogar pro mar ficar menos gelado. Querendo me dizer que sou isso ou aquilo, tenho isso ou aquilo. Classificar tantas formas de sentir além de deixar o mundo mais controlável ainda dá dinheiro. Querendo me matar, me comer, me bater, me amar, me dizer que assim eu estrago tudo, me ligar de longe, me maltratar bem de perto.
Mas até hoje não teve uma só pessoa que não me imaginasse enorme por causa deles. Enormes. Os textos. Sempre eles.

Meu namorado doctor House

Eu decidi que tô namorando o doutor Greg House, aquele com cara de “adoro sexo mas sou arrogante demais pra fazê-lo” que passa todo dia as oito da noite no canal 43. Menos as sextas. E sábados. E domingos. Como todo péssimo namorado, ele tem mais o que fazer da vida nesses dias.
Já que a vida inteira namorei rapazes que não me namoravam e fui namorada de rapazes que jamais namorei, resolvi namorar o House e fim de papo. Comprei um estoque de Vicodim e um apartamento em andar baixo. Tudo pensando nele.
O House pode tudo. Ele pode me dizer que meu cabelo era infinitamente melhor mais curto e mais claro. Ele pode me dizer que eu fico infinitamente mais bonita com uns cinco quilos a mais. Ele pode reclamar que eu cortei a malhação por falta de grana e paciência. Ele pode reclamar da queda hormonal e da minha mania de viver caindo. Ele pode rir da minha vontade de escrever novela ou qualquer outra coisa popular que me encha de dinheiro para eu poder escrever livros quieta ouvindo Nina Simone, da minha mania de cantar Maroon 5 e do fato de eu escrever tudo em primeira pessoa porque, de verdade, acho um saco qualquer outra coisa do planeta que não passe aqui por dentro. E o House super passa, em meus sonhos.
Quando vai dando sete e meia da noite (ahhh, a falta do que fazer, já tem uma semana que não aparece um bom freela ou um bom sei lá o quê) tomo meu banho. Passo meus cremes. Coloco uma roupinha pra ele. Me tranco no quarto, no escuro. Vou passar os próximos sessenta minutos vendo vômitos, sangue, paradas cardíacas, berebas purulentas e a famosa “lombar punction”. Mas meu coração não entende nada como desgraça, a não ser a óbvia desgraça do amor.
Todos os dias eu acho que vou morrer. E todos os dias ele descobre mil coisas pra não deixar. Porque quase nunca se morre nas mãos dele. E todos os dias ele me magoa terrivelmente com sua amargura e inteligência. E eu deixo porque não tem nada mais sexy do que gente que te odeia. Namorar quem tá cagando pra você, então, é o auge do sexy. Por isso eu namoro o House.
Nós nunca vamos casar, ele nunca vai conhecer meus pais e eu sei que divido o seu amor com as garotas pagas. Não tem ilusão, não tem meiguices, não tem roupinha rosa com babados. É preto no branco. É sofrimento puro. É o pior namoro do mundo. Mas como diria minha mãe “quando essa menina decide uma coisa...”.

Vazio

Fui na Bienal hoje. Tem um andar inteiro vazio. Parece comigo. Eu tenho um andar inteiro vazio. Os meus cinqüenta e oito andares estão vazios. Está tudo vazio.
Eu queria avisar as pessoas que eu era a melhor instalação da Bienal. Veio ver o vazio? Olhe pra mim. Não tenho nada dentro de mim. Nada. Não tenho vontade nenhuma de lutar por você, mas também não tenho vontade nenhuma de não lutar. Não espero nada, mas também não espero outra coisa nenhuma. Eu não tenho nada. Eu perambulo por aí, atendendo meus 78 mil amigos e odiando ver o nome de cada um deles no visor do meu celular. Todos divertidos, leves, incríveis, amigos. E eu cagando um mundo pra toda essa merda.
Aí na Bienal fiquei sabendo que uma professora enlouqueceu e jogou umas fotografias lá pra baixo. Ninguém entendeu nada. Mas eu acho que entendi. O vazio dá desespero, cara. Dá um desespero filho da puta.
O vazio dá um desespero silencioso. É como se o tempo jogado no lixo batesse sutil, num relógio esquecido em algum canto do quarto, que você só descobre quando está muito de madrugada e ao longe você escuta aquele tic,tac,tic,tac. Um batida que quase não existe. Você não sabe se é o tempo sendo contado pra você ou o seu coração contando você pro tempo. Um desespero sem cara de desespero. Mas que é desespero puro. A pior espécie dele.
Aquele tobogã da Bienal...que porra é aquela? Sofrer anda tão sem graça que mergulhar no vazio tem fila e casal de mãos dadas.
Tem três seguranças no andar vazio da Bienal. A vida anda tão sem graça que até o nada corre risco de ser roubado. Até porra nenhuma precisa de vigília. E eles com aquela cara brava, fechada. Uma cara familiar pra mim. Da pessoa que protege o nada como se fosse a única coisa que ainda restou. Um egoísmo em dividir o nada e ver ele virando alguma coisa.
Ai que dor. Que dor. Que merda. Que lixo. O andar vazio da Bienal tem cestos de lixos espalhados. A vida anda tão chata que nem o nada pode sujar. Eu queria ter gritado. Eu queria ter essa cara de pau. E ter berrado no meio do andar vazio da Bienal. Um grito de nada. Pior é que eu berrei. Berrei com o pior tipo de desespero do mundo. Meu silêncio, meu conformismo, minha aceitação, minha quase maturidade.
Eu tenho a impressão que a hora que eu chorar, vai ser das coisas mais tristes do mundo. Mais triste que aquelas crianças carentes correndo pelo vazio da Bienal. Mais triste que o sol frio entrando pelo vazio da Bienal. Mais triste que a mulher tirando foto do marido descendo no tobogã da Bienal. E aquela bandinha que fica embaixo do pão de queijo. E o velhinho com uma ave azul no ombro. Mais triste que os gringos tirando fotos com as crianças carentes correndo ao fundo do andar vazio da Bienal. No vazio cabe um monte de coisa, mas nenhuma se encaixa. Todas deslizam pelo rio de lágrimas que inundam todos os meus andares vazios. A hora que eu chorar, vai ser o choro mais triste do mundo.

Tereza e um milésimo de segundo

Ela preencheu durante toda a noite o buraco fundo abaixo dos meus olhos, meu cansaço sem fim e sempre enojado de tanta simplicidade masculina.
Enquanto os debilóides arrotavam, riam alto, se amavam quase sexualmente em seus guetos medrosos e nos olhavam como pedaços de carne numa feira em promoção, Teresa tentava aprender a dançar sem cruzar os braços, Teresa tentava aprender a viver sem proteger seu coração.
São tão poucos os momentos de encantamento nessa vida que quis prestar uma homenagem a ela e me esqueci imóvel numa cadeira baixa. Depois quis sobrevoar Teresa e me esquecer de tanto lixo pesado que guardo em mim.
Ela quis ser minha amiga e perguntou inocentemente o que eu fazia da vida, nada demais. O problema é que Teresa é míope e pra falar comigo colou seu rosto no meu rosto.
Queria te contar, Teresa, enquanto tiros os nós do seu cabelo, toda a dor que eu guardo em mim, todo o nojo, toda a sujeira, toda essa merda que eu carrego. Queria te contar sobre tudo isso que me aconteceu, sentindo que liberto o seu shampoo para afastar esse cheiro quase podre de tudo o que quase morreu.
Chega a ser pecado contar isso nos seus ouvidos, mas eu preciso me purificar, eu preciso sentir que esse veneno que me corrói vira groselha quando escorre pela sua orelha. Me desculpe, Tereza, mas você é tão linda que eu vou te enterrar com as minhas merdas.
Ele não me beijava mais e seus olhos não escravos cresciam sobre a minha cabeça enjaulada, até hoje tenho esses pesadelos, ontem mesmo sonhei que a musa dele era um espírito que vagava seguro pelo meu corredor. Todo mundo morreu mas na verdade eu é que me sinto fora desse mundo e embaixo de tantas terras que não são minhas.
Eu me agarrei nas saias de Tereza e fui embora, chicoteada de um lado para o outro. Isso mesmo, minha princesa, me tire daqui, eu estou congelada nessa vida que acabou e tanta vontade de me cortar inteira só pode ser porque preciso derreter esse gelo com o meu sangue, tanta vontade de me rasgar inteira só pode ser porque chegou o tempo de mudar de casca.
Você é linda, você tem útero, você gera vidas, você tem esse buraco enorme e peludo que pode apenas me guardar sumida por uns tempos e nunca mais me furar tanto em praça pública. Não sei o que te dizer, meu amor, não sei o que querer, mas sei que nos seus passinhos pequenos e na sua requebrada quase que como se espreguiçando, eu salvei segundos do meu dia, eu salvei algumas pulsações malucas da minha cabeça que continuam confundindo todo o lixo que deixaram em mim com restos de prazer.
Veja o caldo que eu exalo, esse caldo de dor azeda, como é que se chama mesmo? E Tereza corre até o meu ouvido, seu seio direito é maior que o esquerdo e chega milésimos de segundos antes. Ela fala baixinho colada em mim novamente: é chorume, o nome desse caldo é chorume.
Então dance pra mim, só isso, continue fazendo esse beicinho para fingir que sabe a letra, continue me olhando com esse mistério profundo, negro, de uma criança que equilibra deslumbramento com alguma dor. Esse olhar que só os olhares um pouco árabes têm. Continue rodando a saia, continue ajeitando o ferro do sutiã por baixo da camisetinha justa, continue olhando miopemente para o mundo que pára por você.
Continue, por favor, alivie minhas marteladas, meus tormentos, me tire desse mundo que errou e me aprisionou como perdedora. Só quem quer ganhar muito se aprisiona por perder, e eu sempre quero ganhar muito. Tereza, eu não sei viver, por isso, continue me fazendo de mera espectadora, continue me inebriando com a sua vida.
Se eu sentir qualquer coisa que não seja você, volto a sentir o lixo, volto a me lembrar que aquelas cabeças nojentas e estúpidas querem se enfiar em mim sem nenhuma poesia. Essas cabeças imundas e covardes só prestam para rasgar a nossa verdade que carrega o universo inteiro, só prestam para provar ao mundo que são maiores que a beleza e a interrogação porque podem transformá-las em ódio, e o ódio nunca é bonito e muito menos tem dúvidas.
Quero me agarrar à minha unidade e nunca mais me despedaçar assim, quero me agarrar a tudo o que é meu e nunca mais precisar de ninguém, a não ser você. Quero andar por aí sem sentir que o vento atravessa minhas janelas.
Por favor, Tereza, me ame como só eu posso me amar, me ame com a urgência assustadora que eu cobro do mundo, me ame com o peso sufocante que eu coloco no mundo, me ame com as horas intermináveis que eu espero do mundo. Me ame sem amar porque nenhum amor é assim tão assustador, mas eu vivo assustada e precisando desse amor. Me dê esse amor, nem que seja para eu descobrir finalmente que ele existe e parar de querer tanto ele só pela mania de querer o que não existe.
Tereza corre de volta, eu não ligo que ela tenha um pouco de pêlo escuro no braço, eu não ligo que ela use sapatos de boneca gastos, eu não ligo que ela tenha um fiapo do seu cachecol na sobrancelha, eu não ligo que ela tenha os dentes tão pequenos. Ela se aproxima e me faz a pergunta idiota: você é louca ou se faz de louca? Os dois, meu amor, os dois. Eu me faço de louca para que ninguém descubra que eu sou louca. Agora volte para lá e continue respirando e se mexendo por mim. Volte para lá e continue fazendo eu me sentir um homem nojento com sua pica nojenta pronto para estragar a sua perfeição. Eu preciso me sentir um pouco menos porque a solidão de ser mais é ainda pior do que a mediocridade. Eu preciso vagar como uma besta pelo universo e não ser mais o universo.
Tereza, por favor, enfie esse seu sapato boneca gasto pela minha goela, me enforque com o seu cachecol, faça qualquer coisa para me tirar desse esgoto de porra em que eu vim parar.
Eu não quero lembrar que não me sobrou nada do que eu acreditei que era o meu castelo, nada. Eu não quero me lembrar que, depois do e-mail gigante de parabéns que eu escrevi para ele, ele apenas respondeu que sua namorada vai muito bem, obrigado. Eu não quero me lembrar que, depois do e-mail gigante que eu escrevi para ele, ele me respondeu que estava de férias e tinha deletado tudo, eu não quero me lembrar que, depois do e-mail gigante que eu escrevi para ele, eu apaguei tudo. Eu não quero lembrar que o mundo é simples e segue em frente enquanto eu não consigo nem levantar mais da minha cama de tanto que eu peso.
Eu não quero mais nenhuma mão nojenta tentando segurar os poucos fios que eu deixei na nuca, não quero mais que ele me ligue de madrugada só para me comer e me fale naquele sotaque meio paraíba meio argentino que eu sou muito novinha para entender a vida. E que pareço a filha dele. E não quero nunca mais me emocionar com esse quase incesto. Ele que é muito velho para estar vivo.
Eu não quero mais desejar aquele velho filho-da-puta que responde cada dor minha com o seu típico “hehehehehe” de quem disfarça a nossa história ou faz de conta que não sabe o quanto me assusto com pessoas rasas.
Eu não sei o que fazer, por favor, chame o carro, me tire daqui, me leve ver o pôr-do-sol, diga que vai ficar tudo bem. Eu preciso ver coisas bonitas, eu preciso sentir coisas bonitas, eu preciso não viver mais dentro desse planeta arrasado pela guerra e pelo cheiro de carniça.
Eu não sei mais o que fazer se tenho nojo de todo mundo, medo de todo mundo, descrença em todo mundo. Como se vive num mundo tão hipócrita tendo tanta verdade dentro do coração? Como, depois de tantas noites em claro agradecendo a Deus por aquela visão, a visão simplesmente sorri o mais alto possível da minha dor, arregala os olhos o máximo que pode para a minha cegueira e simplesmente vai comer um lanche no boteco da esquina?
No que eu devo acreditar agora, Tereza? Por favor, apenas seja você. Não abra mais a boca, não queira saber nada de mim, não me deixe mais sentir seu seio direito no meu braço, não vá embora, não queira entender a vida. Apenas permaneça exatamente assim, dançando alegremente e sem que isso a torne menos especial. Eu sei que a gente dança não porque é feliz, mas porque ficar feliz no meio de tudo isso também faz parte. E eu estou feliz olhando você feliz.
Então, por favor, volte aqui. Sei lá por que, e isso nunca tinha me acontecido, eu preciso que você exista tão enorme na minha visão que não sobre um centímetro do quadro para qualquer outra pessoa.
Eu quero sentar você no meu colo, eu quero enfiar meu cérebro inimigo no meio da sua nuca quente, eu quero agarrar as suas pernas e dirigir você pra sempre. Eu quero amar alguém de verdade, e você, sozinha nesse cantinho, com seus passos, seus sorrisos e sua preguiça de sentar naquele vaso imundo pra fazer xixi, é a única coisa de verdade que eu conheço.
Eles não, eles mijam em qualquer canto, eles dormem sujos, eles comem qualquer vadia, eles esquecem tanto amor, eles batem punheta vendo canal pago, eles trocam tantas trocas inteligentes e profundas por um e-mail de agradecimento mais curto e grosso que seus paus. Eles não imaginam o que se passa dentro da gente, mas eu sei o que se passa dentro de você, Tereza, e só por isso sou digna de estar aí dentro.
E, se por um acaso, meu amor, você precisar da minha superficialidade, te dou meus dedos todos, meu cotovelo, meus pés, meu queixo, meu nariz, minha língua, te dou todos os meus cantos, Tereza.
Agora vá embora, por favor, eu sou mulher demais para ser prática, eu sou mulher demais para colocar um final em tudo isso, eu sou mulher demais para corromper a sua dança.

Quinze pras nove

Desisti. E isso é a coisa mais triste que tenho a dizer. A coisa mais triste que já me aconteceu. Eu simplesmente desisti.
Não brigo mais com a vida, não quero entender nada. Eu espero chegar as nove da noite pra tomar meu Rivotril. E desaparecer.
Vou nos lugares, vejo a opinião de todo mundo, coisas que acho deprê, outras que quero somar, mas as deixo lá. Deixo tudo lá. Não mexo em nada. Não quero. Odeio as frases em inglês mas o tempo todo penso “I don’t care”. Caguei. Foda-se. Eu espero chegar as nove da noite pra tomar meu Rivotril e desaparecer.
Me nego a brigar. Pra quê? Passei uma vida sendo a irritadinha, a que queria tudo do seu jeito. Amor só é amor se for assim. Sotaque tem que ser assim. Comer tem que ser assim. Dirigir, trabalhar, dormir, respirar. E eu seguia brigando. Querendo o mundo do meu jeito. Na minha hora. Querendo consertar a fome do mundo e o restaurante brega. Algo entre uma santa e uma pilantra. Desde que no controle e irritada. Agora, não quero mais nada. De verdade.
Ah, o roteiro não ficou bom? Então não me pague. Não vejo as mulheres mais bonitas em volta e corro pra malhar. Não quero malhar. Não vejo o que é feio e o que é bonito. É tudo a mesma merda. Não ligo se a faca tirar uma lasca do meu dedo na hora de cortar a maça. Não ligo pra dor. Pro sangue. Pro desfecho da novela. Se o trânsito parou, não buzino. Se o brinco foi pelo ralo, foda-se. Deixa assim. A vida é assim. Não brigo mais. Eu só espero chegar as nove da noite pra tomar meu Rivotril e desaparecer.
Não quero arrumar, tentar, me vingar, não quero segunda chance, não quero ganhar, não quero vencer, não quero a última palavra, a explicação, a mudança, a luta, o jeito. Eu quero, de verdade, do fundo do meu coração, que chegue logo as nove da noite. Hora do Rivotril. O remédio que me chapa. Eu quero chapar. Eu quero não sentir. Quero ver a vida em volta, sem sentir nada. Quero ter uma emoção paralítica. Só rir de leve e superficialmente. Do que tiver muita graça. E talvez escorrer uma lágrima para o que for insuportável. Mas tudo meio que por osmose. Nada pessoal. Algo tipo fantoche, alguém que enfie a mão por dentro de mim, vez ou outra, e me cause um movimento qualquer. Quero não sentir mais porra nenhuma. Só não sou uma suicida em potencial porque ser fria me causa alguma curiosidade. O mundo me viu descabelar, agora vai me ver dormir e cagar pra ele.
Eu quis tanto ser feliz. Tanto. Chegava a ser arrogante. O trator da felicidade. Atropelei o mundo e eu mesma. Tanta coisa dentro do peito. Tanta vida. Tanta coisa que só afugenta a tudo e a todos. Ninguém dá conta do saco sem fundo de quem devora o mundo e ainda assim não basta. Ninguém dá conta e...quer saber? Nem eu. Chega.
Não quero mais ser feliz. Nem triste. Nem nada. Eu quis muito mandar na vida. Agora, nem chego a ser mandada por ela. Eu simplesmente me recuso a repassar a história, seja ela qual for, pela milésima vez. Deixa a vida ser como é. Desde que eu continue dormindo.
Eu só espero chegar as nove da noite pra tomar meu Rivotril e desaparecer. Ser invisível, meu grande pavor, ganhou finalmente uma grande desimportância. Quase um alivio. I don’t care.

O golpe

Só eu sei como é difícil descalçar as longas e brutas botas. E repensar pela milésima vez se tudo bem essas meias, se tudo bem esses pés, se tudo bem meu vicio em me estalar mil vezes, me contorcer, não conseguir pisar direito nos lugares onde nunca pisei e muito menos nos lugares onde já pisei de tudo quanto foi jeito. Tudo bem essa pequena tortura dos meus ossos e dos meus pensamentos? Tudo bem eu querer correr muito rápido sem me levantar?
Enfim, botas tiradas. Elas caem, fazem barulho, sinto o primeiro golpe. Não estou mais protegida dos cacos, poeiras e rebarbas do chão querendo me lembrar que existe chão e que até chão dói.
Agora é a vez da blusa. Está tão frio. Eu quero te pedir. Por favor. Tira devagar. Tira sem deixar o golpe me matar. Eu sei, eu já tirei essa blusa tantas vezes. Não sou nenhuma inexperiente e nenhuma garotinha. Mas você me deixa desse jeito, como se tudo fosse a primeira vez. Tenho medo de vomitar, chorar, tenho medo do teto cair. Tenho medo da tristeza. Tenho medo da alegria absurda. E de você cantar o sambinha mais lindo do mundo do Cartola e eu sentir uma alegria tão grande que eu comece a tremer e seja obrigada a te mostrar o quanto não pertenço a esse mundo. E tenho medo de você olhar minha parte ET e gostar da minha parte ET e de nunca mais eu voltar a calçar minhas botas e minha blusinha. Eu tenho medo de esquentar em você e nunca mais fugir do frio. Mas ainda está frio. Então se eu tremer não fala nada, continua me olhando como se fossemos velhos amigos do mesmo disco voador que trouxe a gente pra esse mundo de pessoas que não tremem.
Chegou a hora da calça. Olha, tira devagar. Não dá risada da minha cara. Sei lá o motivo mas me atacou uma bobeira imensa e eu estou tão nervosa. Perder a virgindade da alma pode doer mais do que qualquer dor da adolescência. Então me explica um pouco porque não tem luz no seu banheiro e porque você não joga fora as correspondências de 2001 e porque você tem tantas escovas de dente e porque seu celular não toca e porque eu me sinto com esse gostosinho no peito vinte e cinco horas por dia. Me explica? E você diz que não é pra gente falar nada. E isso já é toda a explicação que eu preciso.
Tirar a roupa é tão fácil. Mas tirar todas as minhas quinhentas peles pra você, só porque é o único jeito de estar com você, tem o frio e a dor e o peso e o medo de zilhões de roupas. Então não ri de mim. Elas foram construídas por tantos dias e meses e anos e vidas. E, de repente, só porque você subiu todos os meus quinhentos andares e não levou um susto quando eu abri a porta, eu resolvi tirar as minhas quinhentas peles. Então cuida do meu sangue correndo atabalhoado, dos meus músculos tentando sobreviver a tantas descargas, das minhas células desesperadas pra entender tanta renovação e do meu peito querendo vomitar mil anos e devorar mil comidas, ao mesmo tempo, causando esse bolo enorme que não me permite dizer nada do que não sou. Eu canto pra você a minha essência e você batuca no mesmo ritmo. A gente é uma música de sucesso que só nós dois escutamos. E só agora eu entendo que isso é algo bom.
Não tem mais nada pra tirar. É a noite mais fria do ano. O mais incrível, e o que me faz querer fazer as pazes com o mundo e o que me faz querer agradecer a vida por achar que eu mereço isso, é que eu sei que, caso você vá embora, já valeu o golpe. O golpe de ar, de vento, de gelo, de tudo.

Só tristeza

Às vezes minha arrogância não deixa e eu queria me cortar. Ela não deixa e eu queria cortar alguém. Ela não deixa e eu quero pular da janela, dormir meses, tratar alguém mal, pouco me importar, quebrar tudo, fazer algo terrível, nunca mais fazer nada. Ela não deixa e eu passo meu batom e vou disfarçar meu desespero por aí. Minha arrogância não admite, não permite, mas não é nada disso, é só tristeza. Eu estou triste de uma tristeza absurda. Muito triste. Quase não dá pra suportar, mas dá.
Eu nem choro porque é daquelas tristezas que o choro sai em berros e eu ainda estou na casa da minha mãe, não posso berrar assim, do nada. E nem resolveria. Nada resolve. Triste. Só isso. Ninguém vai morrer e nem eu. O pintor terminou a parede lilás e eu vou pagar o pintor. O Kiko me arrumou um freela e eu vou fazer. Hoje tem a festa do Rodrigo e eu vou. Amanhã vou apresentar o começo da minha peça de teatro e talvez eu sinta uma quase alegria. Mas aí vou ficar triste porque minha pouca alegria, esse soprinho de vida, me lembra que depois vem isso. Essa coisa ruim. E piorada. Então nem subo pra não descer. Fico aqui, na minha catatonia de tristeza. Porque a tristeza, pra me desesperar mais ainda, não tem desespero. Ela é o que é. E as coisas sem desespero é que são verdadeiramente tristes.
Ser normal é isso. Madura. Mulher. É combinar com o marceneiro a largura da prateleira querendo morrer. É dar seta e virar a direita querendo morrer. É levar a nota fiscal querendo morrer. É passar as notícias do jornal fazendo xixi e querendo morrer. E não morrer. É sentir a maior loucura do mundo dentro de si, a maior dor do mundo dentro de si, a maior preguiça do universo dentro de si, e simplesmente apertar o andar do apartamento no elevador marcando dez da noite, comer um quiche, combinar o ano novo, deixar uma frestinha aberta, trocar a sandália, alinhar os livros.
Odeio o mundo estragado em que vivo. A yoga não me dá nenhuma paz, os amigos não tiram essa bola de pêlo cortante da minha goela, reuniões de trabalho ou de comemorações são sempre intermináveis e com pessoas que parecem mais vivas e felizes do que eu, ou exatamente o contrário, dormir é acordar de meia em meia hora e repensar de novo e de novo e de novo. Odeio morar dentro de mim, esse ser que sou eu e que não me faz feliz e nem me deixa dormir. Esse ser que está sempre em outro lugar, no lugar de sentir todas essas coisas. No único lugar de sempre, esperando, esperando, doendo, doendo, cheio de si nos dois sentidos. Mas é a arrogância de novo. Querendo odiar. Querendo entender. Querendo doer mais que todo mundo, querendo não ser. Mas não é ódio e nem nada. É tristeza. Muita. E uma vontade enorme de sair daqui. Uma vontade minúscula perto do tamanho da minha tristeza. Eu que sempre vou embora de todos os lugares, acabo sempre chegando a conclusão que a tristeza é o único lugar do qual jamais se vai embora.
Quero fazer alguma coisa. Botar uma música, racionalizar, me dopar, me agarrar em outras coisas, exorcizar tudo. Nada, nada. A tristeza fica lá, sentada no meu peito, imperial, enorme, antiga, centenária, senhora do mundo, gigantesca, verdadeira, absurdamente verdadeira. Dizendo que não tem jeito não. É isso ou ser arrogante demais pra não existir. Então, é só a tristeza. Como se isso fosse alguma coisa pouca, ainda que seja absurdamente só.

Mulheres são chatas

Certa vez um diretor de teatro cismou comigo. Ah, seus textos isso, seus textos aquilo. Sua foto isso. Você, Tati. Ah, que mulher. E durante quatro meses ele me mandou e-mails quase diários a respeito dessa adoração.
Aí ele finalmente veio estrear sua peça em São Paulo. E quero te ver daqui, preciso te conhecer dali. Você, Tati. Ah, que mulher.
E o cara me mandava e-mails nos intervalos da peça, pouquinho antes de começar, pouquinho depois de terminar. Durante os ensaios. Uma obsessão que nunca vi. E me mandava senhas de ingressos com cadeiras na primeira fileira. E traga quem você quiser, mas melhor que venha só. Preciso te conhecer, preciso. Você, que mulher.
E eu fui. Ah, eu fui. Quatro meses no meu pé, tamanha obsessão. Eu fui. E achei ele gato e interessante. E confesso que ele foi, nessa minha vida bem aproveitada, o melhor beijo na boca que já dei.
E a coisa crescia. Seu cheiro, seu cabelo, seu sorriso, sua cintura. O cara, se pudesse, me enquadrava e me colocava na sala. Se pudesse, me fazia virar uma estátua na entrada do apartamento. Nunca ninguém ficou tão encantado por mim. Ele chegou ao ponto de, no último dia da peça em cartaz em São Paulo, agradecer a Deus olhando pra mim, que estava que nem besta, de novo, na primeira fileira. Tipo: eu era Deus!
E então, transamos, e a coisa só piorou. Porque seus olhos fechados, porque você dormindo, porque você acordando, porque tomar banho com você, porque eu sei, mulher da minha vida, primor intelectual, sensibilidade absurda, humor genial, maldade charmosa, que mulher, que mulher, que mulher, eu nunca mais viverei sem você, não agüento ficar longe, você pode tudo, é você, é você. E me apresentava pros amigos “se preparem pra amar essa mulher pra sempre, porque é o que eu vou fazer”. E não existia quarta, nem quinta e nem terça. Todo dia era sábado. Todo dia era dia de namorar e ouvir aquelas coisas todas. E ele me mostrava sua foto criança “olha a cara do seu filho”. E ai de mim se topasse sair com alguma amiga ao invés de ir naquele flat onde ele quase me embalsamava de tanto amor e sexo e planos.
E eu quieta, vendo aquilo tudo. Querendo acreditar aos poucos mas acreditando rápido porque, afinal, a vida é um saco e eu deveria mesmo merecer tudo aquilo. Por que não? Sim, sim, eu merecia! Claro.
E então, numa tarde, depois de tantos elogios e melhores beijos do mundo e carinhos na nuca para eu dormir mais rápido e um anel de ouro branco que ele mandou fazer escrito “I Love you” na parte de dentro, eu resolvi que gostava do cara. É, acho que eu curto esse cara. Olha, tô achando que eu amo esse cara.
E porque resolvi que então eu estava naquela relação e qualquer mulher que resolve isso precisa de algumas garantias e conversas que vão além da ostentação teatral e da euforia sexual, achei que não teria problema nenhum em dizer pra ele, o quanto eu estava sofrendo com o final da peça, se ele ia mesmo vir pra São Paulo me ver toda semana, se ele ia se comportar no Rio, longe de mim, com aquelas vadias bundudas querendo uma chance na TV. Se ele me amava mesmo. Como seria com ele longe. Se ele achava que aquilo tinha futuro mesmo. Aquela ladainha normal de qualquer mulher que se sente à vontade pra ser chata depois do cara ter ganho o cartão “sou insuportavelmente louco, apaixonado e obcecado por você, fucking woman of my life”.
E ele coçou a batata da perna. Espreguiçou. Fungou fundo a respiração. Foi tomar banho sem falar nada. Ficou dois longos dias sem me ligar. E depois, porque eu fiquei sem entender nada e fui pro Rio, desesperada, ver o que estava acontecendo, ele me disse, com uma frieza e um distanciamento que até hoje me dilaceram e me fazem temer a vida: “ah, Tati, você é chata”.
É, mulheres são chatas mesmo. O que é melhor, muito melhor, infinitamente melhor, do que ser você.

Se você quisesse saber

Eu tenho vontade de te contar tantas coisas. Mas você não sabe como dói e como é solitário ser gente. Gente tem mais é que guardar esses absurdos. Ontem, por exemplo, eu estava no avião, indo pra tal da palestra que eu te contei que tinha em Porto Alegre, e o medo voltou. Sabe o que eu fiz? Peguei um caderninho que sempre levo comigo e anotei tudo o que o medo queria me dizer. Fiquei besta de ver que se ele queria me dizer alguma coisa, ele não era exatamente eu. Era só o medo. Olhei o Rivotril que minha mãe colocou na minha bolsa e aquilo não me pareceu nenhuma solução. Eram apenas duas coisinhas brancas e pequenas num recortinho de embalagem. Duas coisinhas que jamais terão o tamanho de tudo isso que tem aqui dentro. Eu senti meus pés tão fortes e meu rosto tão corado. Eu gostei de mim e da vida como não gostava há muito tempo. A vida soprou no meu ouvido para eu parar com essa coisa de não me dar comida e não me dar confiança. E isso é idiota mas quis muito que você fosse o único a saber.
Queria te contar, também, que na hora da palestra me deu tanto medo de desmaiar no meio da fala que tomei dois copos inteiros de guaraná. Mas na hora mesmo, de falar, eu lembrei de você me dizendo que ansiar ou sentir assim a vida pode fazer as palavras assumirem um poder mais mágico e, acho que porque gostei do que você falou ou simplesmente porque gosto de você, consegui não tremer o microfone e até fiz algumas pessoas rirem de alguma piada. Foi bom. Gostei da vida de novo. E de mim. E nossa. Só Deus, aquele que você não acredita que existe, sabe o quanto eu quis te contar tudo isso.
Você não imagina como dói e como é solitário ser gente. Você nem sonha. Gente não pode ligar pro moço que conhece há dias e perguntar que raio ele ta fazendo que não liga, não pergunta, não continua apertando o play. Gente não pode fazer isso. Mas então que merda eu sou se gente não pode fazer isso? Sou menos ou mais que gente? Eu só queria que você soubesse que hoje ouvi a tal da música da Nina Simone que diz que o baby Just cares for me e fiquei rindo que nem besta. Uma senhora achou graça. Um homem bocejou. Uma criança cabeçuda além da conta se escondeu. O mundo sabe do que é essa minha cara, mas nem por isso está preocupado em me dar os pêsames ou os parabéns. Gostar de alguém, de novo, deveria ser algo como um enterro ou um nascimento. Mas gente acha só que é mais uma perda de tempo. E eu, que sei lá que merda sou, queria muito que não fosse.
Queria te contar que descobri porque te tratei mal da última vez. É que o raio da blusa cinza furada te deixa tão bonito e eu tenho mania de chorar quando acho alguma coisa muito bonita. E pra não chorar eu trato mal. A vida me emociona o tempo todo mas se eu ficasse chorando, quem ia pagar minhas contas e quem ia me querer cheia de olheiras? Então eu corro. Me dá de novo a vontade de ir embora. Eu to sempre indo embora mas aí vai um super clichê...: é de tanto que eu só queria ficar. E queria que você não achasse que sou sempre louca, ainda que eu seja.
Queria te dizer que foi mesmo ridículo quando você disse que gostava da sua aula de francês porque era mais divertida do que qualquer outra coisa e eu comparei isso com minha aula de personal de musculação. Agora me diz como eu posso falar tanta besteira só por causa de uma blusa cinza? Isso não é engraçado? Seria engraçado, se ser gente não fosse tão trágico e dizer essas coisas tão absurdo. Ser gente é um saco, um porre, uma coisa entravada no peito. Mas o que eu queria mesmo te dizer é que, só porque talvez você queira saber, nem gente mais eu ando conseguindo ser.

Come as you are

Ando de um lado para o outro do carpete manchado. Tenho horror a quarto de hotel, por mais estrelas que tenha. Sempre esse carpete que ataca a minha rinite. E as manchas. Tenho horror a manchas. Porra, sangue, cuspe, vômito. Nunca sei o que elas são. As pessoas que já passaram por ali. E agora eu, limpinha, tenho que sentar na vida, sentar no mundo. E virar parte desse mistério e desse passado e de possíveis sujeiras. E lembrar que é tudo a mesma merda. Eu e todo o resto. Não é minha casa, é só uma vidinha emprestada. O foda é dormir em paz em vidinhas emprestadas.
Ando de um lado para o outro, repensando se devo ou não. É tão simples. Ligo lá pra baixo, peço um táxi, o táxi chega, informo a rua, chego no bar, sou engraçada por quarenta minutos, pego carona com ele pra voltar pro hotel, faço charme quando ele me pede pra subir, acabo deixando, falo pra ele do meu nojo de manchas, ele tira barato da minha cara, pergunta se eu quero deixar a minha mancha, eu digo que pode ser, ele me agarra, eu fecho os olhos e sou absolutamente feliz e me sinto absolutamente viva, a gente dorme junto morrendo de ressaca. No dia seguinte ele me dá um selinho e pede que eu me cuide (homem sempre diz essa merda). Eu choro no avião de vontade de amar e ser amada. Depois dou risada porque acabo sempre preferindo essa vidinha emprestada cheia de manchas. Amar é para os grandes, eu sou essa coisinha mesmo.
Ando de um lado para o outro. Vou ou não? A gente troca e-mails há mais de cinco anos. Ele já acompanhou todos os meus começos e términos de namoro mais significantes. Ele sabe de todos os meus medos e sonhos estranhos. E porque ele está no terceiro ano de medicina e tem aulas de psicologia, ele me conta todos os segredos que eu não entendo e nem nunca vou usar. Ele tem 56 teorias para o meu pânico de vomitar. Eu acredito em todas elas. Ele é a cara do Kurt Cobain, pelo menos é o que parece nas fotos meio esfumaçadas e mal tiradas que ele me manda.
Ele tem uma pastinha no computador dele, com as minhas melhores seis fotos de todos os tempos. Ele me acha a cara da Débora Secco. Que bela dupla de idiotas nós somos. Mas é bom ser idiota.
Passo meses deletando ele de todos os possíveis meios de comunicação. Pra que quero ficar alimentando esse papo furado com um garoto mais novo e de outra cidade? Pra quê? Depois, num desses dias desiludidos e chatíssimos, o resgato. A gente se fala os maiores absurdos. Os maiores. Temos a teoria, por exemplo, do filho virtual que fizemos em algum universo paralelo. De tanta sacanagem que falamos.
Eu sou a Débora Secco versão escritora famosa de São Paulo. Na ilusão dele. Ele é o Kurt Cobain com inteligência de doctor House e abdômen de ator pornô. Na minha ilusão. Ele namora há 456 anos com uma garota que parece um traveco, de tão bonita. Eu namoro 456 rapazes e nenhum deles completa um ano na minha vida. Eu digo que é porque sou insuportável. Ele diz que é porque sou uma devoradora de guris. Adoro a versão dele.
Ando de um lado para o outro. Não posso. Não posso me levar até aquele bar e estragar tudo. Eu adoro ser a Débora Secco versão escritora famosa de São Paulo. Pelo menos em algum lugar do mundo eu sou incrível. Pelo menos naquela cidadezinha esquecida do Sul, eu sou uma escritora famosa e linda de doer. E impossível. E inalcançável. E eterna. E jamais louca, jamais ao lado da cama até perder a graça. Jamais cansativa. Para o Kurt eu jamais vou apodrecer, perder o doce. Eu estou além da vida e da rotina. E controlo o tempo do sucesso e da paixão. Ele não me vê com fome, dor de barriga ou vontade de chorar. Eu simplesmente não posso me levar até aquele bar e estragar tudo.
Chega uma mensagem dele. Ele já está lá. Me esperando. Há meia hora. O Kurt com sua barriga tanquinho e seu charme de doctor House está lá. E ainda com sotaque gaúcho. Promete ser o sexo da minha vida. Promete ser a noite da minha vida. Vou amar esse homem como nunca amei nada na vida. Penso isso e quase ligo lá pra baixo e peço um táxi. Mas não posso fazer isso com o Kurt. Não posso transformá-lo em mais um garoto gemendo, roncando, sorrindo amarelo e indo embora. Não posso transformar o homem mais incrível do mundo em mais uma mancha de vidinhas emprestadas de quartos de hotel. Não agüento mais que absolutamente tudo seja sempre a mesma merda de sempre.
Durmo sozinha comendo um lanche nojento da cozinha do hotel. O edredom tem uma mancha asquerosa. Mas em algum lugar do mundo eu sou a pessoa mais incrível do mundo. E olha que quem pensa isso é o melhor homem do mundo.

Drogadita do amor

Alto, alto, alto. Subir, subir, subir. Ele disse uma frase certa, eu subo. Ele me olha do jeito certo, eu subo. Ele faz tudo errado e do jeito dele, eu subo também. Já não vejo mais o que ele diz e nem como ele faz, imagino, ele, assim, passível da minha imaginação. E eu subo, subo, subo. Não me deixe cair. Continue aí, não se mexa, repita aquela frase, com sua voz, perto do meu ouvido. Continue aparecendo nos mesmos horários e apenas some horas, jamais as tire de mim. Continue me amando como no primeiro minuto e ame mais e mais, jamais me tire amor. Mais, quero cheirar mais, aspirar mais. Não me deixe cair. Continue aí, não se mexa. Mais, mais, eu quero mais. Alto, alto, alto, só sei viver aqui. O resto dos dias e dos meses e de tudo, é espera. Espera para subir. Eu só sei viver aqui. Uma frase que leio e então eu subo. Um filme que vejo e então subo. Uma música. Um ódio também. Uma possibilidade de ser bicho e sentir as coisas assim desenfreadas e naturais e descabidas e violentas. E então eu subo. Vejo que a vida está prestes a ficar mais uma e então eu causo. Eu lambo as pessoas. Eu ofendo as pessoas. Eu desapareço. Eu apareço sem avisar. Me desculpem, mas é assim que a vida volta. É assim que sinto a vida e não apenas as paredes da minha prisão nesse corpinho que eu nem sei se escolhi. É assim que volta a doer tudo, as tripas e seus nós, os fígados e seus medos, os corações e seus tamanhos além do espaço que deram pra gente. Eu tenho medo do chato, da hora de ir embora, eu tenho medo dos minutos do dia que não poderiam estar nesse filme que congela a respiração num susto longo, eu tenho medo dos casais que andam comportados e podados e agendados e controlados e casados. Não me deixe cair. Continue me dando vida, vida. Não quero, não sei viver, assim, em dias que se arrastam com suas burocracias de papéis cortantes, delicadezas vazias, obrigações sem talento e esforços sobrenaturais para não doer os outros. Uma vontade horrorosa de não existir mais. Não morro. Insisto. Daqui a pouco subo de novo. Um novo moço, um novo filme, uma nova história, ele de novo, como eu queria, ele de novo, e de novo e de novo, eu só queria ele de novo e de novo e de novo e de novo e de novo e qualquer coisa que me tire da espera e me leve pra onde não agüento. Minha vida é estar entre a espera e o lugar alto do qual tenho vertigem. Não sei viver em lugar nenhum. Mas a vertigem, a vertigem, que maravilhoso que é quase morrer de tanto que se está vivo. Que maravilhoso que é poder se estatelar de vida e não de tédio. Sou uma drogada. Sou uma viciada. Preciso de ajuda, de médico, de remédio. Porque sou tão viciada em sentir esse torpor que todo o resto dos dias não passam de uma merda completa e uma espera insuportável. E a maneira dele falar, me olhar, e as coisas que ele vai saber e dizer. E então eu subo. E como ele se movimenta e então eu subo. E como ele diz que quer fazer e faz e eu subo. Não me tire daqui, não sei viver, sim, é infantil, mas decidi ser infantil, armei toda a minha vida em volta do meu maior desejo que é ser infantil. E de novo, de novo, de novo, igual pedem as crianças. Quem não quiser brincar, apertar o play, jogar o jogo, apertar de novo o último andar, que morra estatelado do alto da minha vontade de sentir a vida. De novo eu quero girar. De novo eu quero ser virada de ponta-cabeça. De novo empurra forte a balança, o carrinho, tudo. De novo, de novo, de novo. E mais e sem fim e insuportavelmente muito. De novo. Mais brinquedo, mais amor, mais desespero. Eu quero sentir desespero. Eu quero cheirar mais, aspirar. Não me deixe cair, eu só sei viver aqui em cima. É frio, solitário, me dá sopro no coração, vontade de vomitar, sensação de morte, não como, não durmo, não sei, mas é aqui que sei viver. E de onde tudo fica valendo a pena. Me deixe ficar aqui em cima, mais e mais e mais. Eu sei, ninguém agüenta, todo dia, toda hora, eles querem subir, e me dão suas mãos calejadas, me leve com você, e eu levo, e eu levo eles comigo, lá pra cima, onde tudo dói tanto e ao mesmo tempo alegra além da vida. Mas eles pedem pra descer. Homens precisam estar no controle e precisam trabalhar e precisam sentir a vida rasteira e gostar dela, pra se libertar dessa vida fugaz e maravilhosa e terrível que sentem comigo, precisam raspar a sujeira de bosta dos sapatos no chão áspero. E eles pedem pra descer. E eu preciso estar no alto, congelada de frio e sozinha e filha da “putamente” congelada de frio e sozinha de novo. E então abro as mãos. Caiam. Vocês, meus amores, todos vocês, tão amados, todos vocês, que já viram esse descontrole meu, essa dor minha, esse desejo, vocês, queridos, meros traficantes, meros entregadores, meros fornecedores da minha droga. Apenas isso. Daqui a pouco vem outro e outro e outro. E nenhum fica. E sim é culpa deles. E minha. E da vida. Não existe culpa, existe apenas meu tempo e meu espaço que de tão corridos e altos não cruzam ninguém muito tempo, apenas dão uma ou outra breve carona no meu carrinho da montanha russa. Empresto vida demais pra quem me empresta um pouco sequer de vida. Preciso do disparo, de uma única bala e então acordo e saio chacinando tudo. Morra chatice de vida que vou levando ao lado dos que vão levando. E subo. Só sei viver d aqui. Desse lugar irreal e infantil e ridículo e absurdo. Esse lugar que defendo tanto com meus enormes dentes e unhas da cor pink. Como é triste e absurdo e solitário defender um lugar que não existe e que eu própria não tenho músculos e nem fé para suportar. Eu defendo o lugar do qual não pertenço, mas pra onde eu tenho eterna passagem comprada e cancelada e comprada e cancelada. A espera de alguém que não vá embora, que aguente, que divida meu desespero ou apenas o suporte. A espera da pessoa que suba comigo e fique comigo lá em cima, me ensinando a viver lá de cima. A espera da pessoa que faça aqui embaixo ser algo tão bom que eu não precise mais brincar de assassina de tudo e de mim mesma. A espera da pessoa que não morra quando jogada da minha janela altíssima. E suba de novo. Ou não caia. Entenda que minha porrada não era para jogá-la do alto mas apenas porque estar no alto é se debater em tudo. E volte. E fique. E me deixe aqui embaixo. E me deixe aqui em cima. A espera eterna de mim mesma na versão que faz dar certo. Subir, subir, subir. Venham fornecedores, venham. Meros e caríssimos fornecedores. Minhas gasolinas do parque de diversões. Meus amores. Meu amor. De novo, meu amor. De novo. De novo. Subir. Subir. Subir. Me traga a minha droga antes que eu cheire coisas mais burras e mais feias e mais baratas e mais sem graças e mais menos qualquer coisa e sinta a pior ressaca do mundo que é a ressaca da droga fraca. Me traga, vamos girar forte, subir muito alto, olhar todo mundo lá de cima e o medo de cair, o medo de despencar, as coxas flácidas, os olhos esbugalhados, caveiras cheias de uma vida que de tão louca nem existe nesse mundo. Subir, subir, subir. De novo, de novo, de novo. E cair. E cair gostoso. No fundo, eu gosto é de cair gostoso. Gostoso. Porque cair é subir de novo, estar lá em cima, alto demais, é apenas gritar, alto demais, e não ter ninguém pra ouvir. Socorro. Socorro. Socorro.

Que bicho me mordeu?

Não sei quem mora aqui. Não tenho idéia do tamanho. Só tenho medo. Muito medo. Medo de de repente, assim, num fim de tarde qualquer, eu morder alguma canela ou sair correndo de quatro. Não sei.
Medo de comer demais, dormir demais, cagar no meio da rua, latir. Morrer de repente. Do corpo não agüentar o tamanho da minha alma. Medo de alimentar demais o bicho, perder forças pra ele. Deixar que ele ganhe de mim, arrebente a coleira.
Não sei que bicho é. Não sei se é manso. Não sei. Só sei que evito tudo. Beber, fumar, amar, me drogar, sonhar, viajar, passar muito tempo longe de casa, perder o controle, vomitar, virar do avesso, olhar pra ele. Eu não posso perder o controle, entende? Não posso pois não sei o tamanho do meu bicho.
É tanta raiva, eu sei. Meu bicho perdeu a data da vacina. Um corpo 48, um pé 33 e uma mão menor que a do meu primo de dez anos. Isso é tudo o que eu tenho contra ele. Esse é o tamanho da jaula que arrumaram pra fera. Mas ele quase quebra, quase quebra a jaula o tempo todo. Ele quase bate nas pessoas, atropela os folgados, cospe nos sujos, arranha os safados, vomita nos podres, escalda os enganadores, afoga os que partiram sem que eu deixasse, dilacera os que deixaram de me amar, arregaça os posudos. Quase. É uma luta sobrenatural pra ser humana. Tão forte que quase não consigo. Quase não sou humana.
Como pouco, sinto pouco, nado raso, amo o superficial, bebo só as beiradas, belisco a vida. Tudo para me manter imaculada. Tudo para sentir o mínimo possível o mundano das coisas. Tudo para ser quase desumana de tanto negar a vida. Para negar minhas vontades de bicho. Para jamais me lembrar dele. Eu sempre fico com fome, eu sempre acordo antes do sono acabar, eu sempre paro antes do peito arrebentar, eu sempre sento antes da pressão cair, eu sempre tenho prazer antes de sentir prazer. Eu sempre vou até onde é seguro. Eu tenho medo do meu abismo e da soltura do meu bicho. O que ele pode fazer comigo? O que ele pode fazer com você?
Tenho medo do meu bicho. Medo de ir seja onde for. De nunca mais voltar. De esquecer quem eu sou. Medo de gritar bem alto no meio do restaurante. Chutar carros. Rasgar contratos. Uivar para a lua. Dar o bote. Matar ou morrer por uma questão de sobrevivência. Ranger os dentes. Babar. Enfurecer os olhos. E ligar para aquela amiga falsa e mandar ela a merda. Ela e sua pose de merda. E encontrar o branquelo do outro lado da rua e mugir. E encontrar o garoto sorriso e picar de verdade o seu peito. Fazer ninho em seu coração. Até sangrar. Até que eu possa cantar ali dentro. Para ensurdecer o seu peito de merda. Quero ver quem ganha a briga sem educações e civilidades.
Eu tenho medo do tanto que ele rumina. O tanto que ele jamais perdoa e guarda um mundo de rancor em seu corpo pronto para atacar. O tempo todo. Meu touro pronto a sair chifrando o mundo. Morrendo na frente de gente que torce contra e a favor. Morrendo em praça pública. Tenho medo que meu bicho seja frágil e morra. E de só me restar uma casca, um plástico, uma vida oca.
Talvez eu seja injusta. Talvez ele seja apenas um cão de guarda me guiando cega pelo mundo. Talvez um pássaro louco pra sair voando. Mas tenho medo. Não quero ver a cara dele. Tenho medo dele esquecer que tenho amigos, empregos e gente me julgando o tempo todo. E me fazer bicho. Me fazer implorar carinho, comida, colo. Medo dele andar com o cu por aí, sem roupa, mostrando meu lado sujo pra quem quiser olhar pra baixo. Medo dele avançar, atacar, assustar. Medo dele me comer por dentro e eu sucumbir a essa vida que tanto julga nosso lado animal.
Medo de eu me descontrolar. Calma, monga! Calma! E virar a mulher gorila. E quebrar a jaula e afugentar todo mundo. A Tati é louca. A Tati é estranha. Que medo de ser louca. Que medo de ser estranha. Ela brigou com o namorado, a amiga, a mãe, o dupla, a empregada, a atendente da NET. Ela foi embora antes da hora, ela disse o que sentia, ela fez cara de que estava tudo uma grande merda. Calma, monga. Calma! E quem não briga, quem não é verdadeiro, ao invés de bicho tem o quê? Câncer. Ninguém escapa dessa vida. Nem quem medita. Nem quem compra a maior e a melhor coleira do universo. Ninguém escapa. Nascemos bicho, morremos bicho e passamos a vida com medo de saber que bicho é.
Eu tenho medo dele ser mais forte do que eu. Tenho mais medo ainda dele ser mais fraco. Mas pavor mesmo eu tenho quando é ele quem está com medo. O famoso medo de ter medo. Medo dele entrar em parafuso e eu parecer uma aberração. Solta por aí. Se mijando, se cagando, se vomitando, dizendo que ama, que odeia, sentindo coisas que não parecem muito humanas e ao mesmo tempo são as que nos dão alguma humanidade. Pedindo abrigo, comida, latindo, mugindo, miando, relinchando, coaxando, urgindo, vendo o mundo de quatro, arregaçada no chão, com as tetas inchadas, a barriga pra cima, por um pouco de segurança. Um pouquinho só.
E ele com medo é lama na certa. Ele me maltrata, pula em mim, rouba minha fome, me martela o cérebro latindo mais alto que tudo, arranha meu peito, caga no meu caminho, mija nas minhas certezas … só sossega quando eu volto pra casa, pro equilíbrio, pro centro, pro seguro. Até que eu seja eu novamente. Até que ele possa me soltar para que eu esqueça dele aqui dentro e dos outros lá fora. E siga a dura vida dos bípedes com dores nas costas e dentes grandes.

Personal Dating

Ele pagava o jantar, me pegava em casa, me fazia rir a noite inteira, tinha olhos claros e um perfume que depois ficava uma semana dentro do meu nariz. As aulas eram sempre na prática. Ele abraçava calorosamente o restaurante inteiro e eu tinha apenas que sorrir superior. Simpática mas pouco interessada em que histórias ele tinha com aquelas pessoas.
Não derrape, Tati. Não derrape. E então a gente fazia de conta que namorava só para testar, naquele momento, meu comportamento. E passava uma loira de seis metros de altura e mil quilos de teta e ele a comia com os olhos. Eu apenas olhava pra baixo e cortava um pedacinho de carne com delicadeza. Ele comemorava. É assim que você deve agir quando estiver com um homem! Oi? E você é o que mesmo? Seu amigo. Ah, é.
Depois íamos a mais uma festa de mafiosos. Os velhos com sotaque mezzo italiano gostavam de mim. Ou simplesmente me olhavam com curiosidade. O que fazia uma franguinha em meio a galinhas tão curtidas? Todas as mulheres da festa exalavam sexo profissional. Eram enormes para todos os lados. Eu nem sabia que existiam bundas assim na vida real. E todas amavam meu professor. Afinal, ele conhecia todo mundo e elas estavam loucas por um bico em tal filme ou novela ou comercial ou sei lá o quê. Servia descolar um jantar de graça também. E essa franguinha com você, é caridade? Ela é escritora. Ahhhhhhh! Eu percebia nesse “ahhhhh” o equivalente a frase “ah, ela pertence a esse universo ultra prive pelo cérebro e não pela aparência”. Ficava na dúvida se era um elogio. Mas ele desfilava comigo. Pra cima e pra baixo. Aula prática, Tati. Você tem que olhar todas essas máquinas em forma de mulher e não perder o rebolado. Oi? Rebolado? Já perdi, amigo. Minha bunda entrou pelo cu. Pelo menos meu trauma de não ter bunda passou. É melhor não ter do que tentar competir com essas mulheres. E ele deixava claro: sem calcinha elas são ainda melhores. Eu sorria. Simpática. Sem me interessar …aquele papo todo da aula. E por dentro. Ah, por dentro. Era uma mistura de bile com fel com lubrificantes com nojo com lágrimas.
Na volta pra casa, no carro, ele me dizia que odiava essas putinhas de festa. Eu quase pulava em cima dele de alegria. Ele corrigia. E me contava em detalhes, já que éramos amigos, das sete mulheres que ele andava transando. Todas mais velhas, mais ricas e mais saradas do que eu. Ele deixava claro. “Gosto dessas tias poderosas, siliconadas e donas de alguma coisa. Você ainda chega lá, Tati.” Claro que chego. E ele me dizia como essas mulheres se comportavam sem derrapar. Mulheres de verdade. Jamais uma cena de ciúme ou carência de garotinha. Eu pensava que elas, no fundo, cagavam pra ele, se aproveitavam do seu corpo ou do seu pseudo dinheiro. Se elas gostassem mesmo dele, seriam meninas frágeis, mesmo sendo mulheres poderosas. Mas eu, como cagava também, apenas sorria, simpática, mas pouco interessada. E me perguntava: que tipo de ser humano é esse pouco interessado? E quase derrapava. Em plena aula número treze. Quase derrapava.
“Tati, você precisa abusar mais dos saltos”. Ele dizia. E lá ia eu com meu pezinho chato 33 nas alturas. E nesse caso, agora sem metáfora, quase derrapava mesmo, a noite inteira. Mas ele me carregava no colo. Uma vez chegamos a um show e éramos um casal muito bonito. Eu no colo, ele paquerando a hostess da porta. E eu, fina que sou ou que era, apenas sorria pra hostess que me achava uma cornuda imbecil. Aí não aguentava e falava uma verdadezinha só para variar. Olha, tudo bem que somos amigos e você só testa meu ciúme para que eu saiba me comportar como uma mulher de verdade quando, no caso, um dia, for um homem por quem estou interessada…mas eu preciso sempre pagar de idiota para as outras mulheres? E ele respondia “é você que está comigo e não ela. A idiota é ela”. Ficava com vontade de vomitar em cima dele. Arrogante filho da puta. Mas meu pé doía por causa da merda do salto alto e eu ia precisar me apoiar nele o resto da noite. Melhor não brigar. Até porque mulher que briga, derrapa gravemente. Era a lição vinte e seis. E eu já estava na lição número trinta e dois e não queria voltar as casas do jogo. Até porque já andava bem a fim de mandar o curso pra casa do caralho.
Um dia ele precisou viajar. Viagem longa de trabalho. Mas vai interromper as aulas assim? Sem me avisar quando vai e quando volta? Vai interromper as aulas assim? Sem me avisar com quem você vai? Vai interromper as aulas assim? Sem me contar tudo o que você vai ficar fazendo lá? E ele percebeu. Ele percebeu. Eu era uma péssima aluna. Um caso perdido. E ele ia comer gringas coroas saradas e ricas que não derrapavam. E abraçar calorosamente bundas gigantes de mocinhas que ficavam ainda melhores sem as calcinhas. Mas ia também, em algum lugar daquele peito cheio de regras e mau gosto, sentir saudade de uma certa menina com Melissinha barata e baixinha. Porque nem tudo está perdido nesse mundo solitário onde todos os loucos sabem viver melhor do que todos os loucos.

Todos os sonhos

Essa noite sonhei que usava uma camisa de força mal lavada e era prisioneira de um manicômio de pobre. Eu e meu medo de ficar pobre e de ficar suja e de ficar louca e de ficar presa. E entendi tudo.
E então um homem com cara de sábio veio com uma injeção azul clara e eu sentia dor, muita dor, tanta dor. E ele disse: deixa. Deixa que passa tudo. Deixa eu te dar a injeção que passa tudo. E eu perguntei se toda essa angustia e esse medo de vomitar até morrer, até secar, até assustar, iam passar. E eu perguntei se eu nunca mais morreria de amor como de fato já não morro há anos e está maravilhoso assim.
E eu perguntei se nunca mais eu teria que ir pra onde não quero e morar onde não quero e ficar perto de gente que não quero e trabalhar pra gente que não quero. Porque não querer pra mim tem a força de mil mundos e mal estar pra mim tem a dor de mil mundos e não ir com a cara de alguém, pra mim, tem a ojeriza de mil vidas. E por isso eu tomo chá vendo a novela, pra ver se aquieto meu peito que já nasceu com potencial de explodir sozinho, ainda mais quando tem gente querendo apertar o botão.
Eu só quero descansar, porque meu trabalho é sentir tanto tudo e ninguém entende e fica achando que não trabalho. Eu aqui, sentada, sentindo assim tão absurdamente tudo. Eu só quero descansar. Eu só quero que passe a dor na nuca, na boca do estômago, nos ombros. A dor de olhar tudo com tanta clareza como eu olho. Sabendo tudo de uma maneira tão grande que me curvo e tenho medo de não agüentar. Se ia passar essa descompensação da minha alma ser infinitamente mais que meu corpinho. E eu viver torta e descompensada.
E ele me sorriu discretamente como parecem sorrir os mortos que morrem em paz na nossa imaginação e me disse que sim. Era o fim de tudo isso. A injeção azul era o fim de tudo isso. E então, eu entendi. Mais uma vez com a minha inocência e quase estupidez que me dão essa clareza absurda e que me fazem entender tudo muito mais do que os espertos e descolados. E eu entendi que era uma injeção letal e que eu pararia de sentir simplesmente porque deixaria de existir. E então eu corri. Corri e voltei a voar. Há muito tempo eu não voava em meus sonhos e eu voei muito rápido. Tanto que me doeu a sinusite do rosto e o coração recebeu aquela onda de ar gelado que a gente só sente quando é criança e corre feliz demais mesmo sabendo que se pega gripe correndo assim de boca gigantescamente aberta para sentir o mundo.
Que se danem as gripes, eu pensei. Que se danem as injeções azuis do mundo querendo me deixar com aquele cinza plástico indecente das pessoas anti-depressivas. Elefantes murchos.
E voei, voei. Eu e minha loucura e minha vontade de vomitar tanto até secar por dentro. Eu e o meu medo de me magoar de novo com todo mundo e precisar de novo odiar tanto e me proteger tanto que fico demasiadamente má e me sinto má e começo a fazer maldades comigo.
Eu prefiro esse peito todo errado do que outro peito. Eu gritava. Eu prefiro mil vezes me assumir do que assumir o mundo mil vezes errado. Eu gritei.
E então, tudo continuava ali, prestes a dar muito errado, a falir, a cair no chão e fazer meu próprio buraco. Tudo estava ali. Todo o meu potencial gigantesco pra fazer da minha vida um inferno imenso. E eu assumi meu peso, eu assumi meu medos, eu assumi toda a merda. E assim, voei ainda mais alto, como se flutuasse. Eu peguei pra mim tudo o que soltava por aí e, surpreendentemente, fiquei mais leve.
Se dava pra ir de pesadelo pra sonho deitada, imagina o que eu não poderia fazer da minha vida a hora que ficasse em pé.

Vinte e nove

Todo mundo é um pouco torto, me falou um amigo quando viu que eu estava certa: meu umbigo deveria ser mesmo mais para a direita.
O que me incomoda agora, que eu vou fazer trinta anos, não é exatamente o fato de eu ser um pouco torta como todo mundo, mas o fato de eu ter descoberto que era tudo mentira. Era mentira que a vida se resolve aos trinta. Com vinte anos a gente acha que tudo vai se resolver aos trinta: nosso corpo, nossa auto-estima, nossa conta bancaria, nosso peito vazio, nossa vida amorosa.
Mas eu continuo torta e se bobear a coisa só piorou. Pior: minha ficha caiu e tenho certeza que não estarei menos torta aos quarenta. Não existe a grande e absoluta transformação. E aos trinta, em plena grande e absoluta transformação, você descobre isso.
Todo mundo é um pouco torto, penso enquanto tomo banho e decido não ir nem a pau até a Lapa. Ando mais do que meio torta, cheia de dor nos ombros e prefiro mais é curtir a novela esticada no meu sofá.
O que eu vou fazer lá? Me certificar pela milésima vez que odeio multidão e odeio esse clima de paquera “olá rapazes, vim até aqui para vocês compararem a minha bunda com aquela idiota marombada de dezenove e me dar nota quatro”. Tô fora. Não li esse monte de livros e não repensei zilhões de vezes a minha existência para ser reduzida a isso. Ser comparada à mulher melancia.
Aí uma voz chata pra cacete grita dentro de mim: você vai sim, sua velhota encalhada. Que ficar esparramada no sofá que nada. Novela? Enquanto o mundo faz sexo você vai assistir novela? Vou. Vou sim. Porque to me lixando pro mundo que faz sexo. 90% desse mundo têm ejaculação precoce e os outros 10% não vão te ligar no dia seguinte. Vou ver novela. Tá decidido. Uma preguiça em arrumar homem. Novela pelo menos avisa “é a última semana!”. Homem some no auge da primeira.
Aí eu saio do banho, super decidida a não ir à Lapa e...é, eu sofro em colocar um pijama em plenas oito horas da noite. Cedo, né? Como é que eu vou casar desse jeito? Não vou. Esse papo de que homem bom você conhece de dia. Sei não. Quem é que vai me abordar no supermercado e dizer “Chuchu? Que legal! Eu também adoro eles!”. Não rola. E no trabalho? Não rola. Na época que eu era publicitária passei o rodo mas agora, escritora, quem é que eu vou pegar se trabalho sozinha em casa? E tem outra também: passar o rodo combina com vinte anos. Com trinta você começa a chorar quando vê mulher grávida. Chorar em casamento. E, principalmente, chorar porque ainda não casou e nem está grávida.
Ok. Então eu vou. Vai que. Vai que hoje conheço alguém legal. Tudo bem que nos últimos quinze anos de balada (comecei com catorze) nunca conheci. E olha que na adolescência qualquer coisa não gorda e cheirosa tava valendo. Mas vai que. Não?
Não! Não, Tati. Pensa bem. Olha sua caminha lá. Te esperando. Seus livros. O creminho de fazer massagem nos pés. Pra que voltar fedendo cigarro? Pra que ver gente que se odeia fazendo uma coisa que só as pessoas que se amam muito deveriam fazer juntas: tentar ser feliz. Um bando de gente perdida, saindo pelas ruas feito baratas no calor. Em busca de alguma coisa. Mas que coisa, gente? Marido é que não é. Ou é?
O que mais me dói é lembrar que eu tinha certeza que já estaria fora dessa vida com trinta anos. Com trinta anos? Eu pensava. Já vou estar ao lado do amor da minha vida. Pintando o quarto de salmão, que acalma o bebê. Rica. Bem resolvida. Cozinhando. Sem medo que minha mãe morra. Com a voz firme. E a bunda também.
Com trinta anos eu vou ter um carrão. E uma casa fashion com vista para árvores. E vou ajudar crianças carentes. E vou ter cara, roupas e postura de mulher. Afinal, são trinta anos.
Nada disso. Nada. Eu ainda me pego, vez ou outra, fazendo a combinação bizarramente juvenil de blusinha decotada com jeans apertado. Eu não sei onde é a minha casa. Porque eu tenho um ap alugado em São Paulo, que é onde eu moro, eu tenho um ap alugado no Rio, que é onde eu trabalho e eu tenho um ap que não é alugado, mas é da minha mãe. Eu não sei ligar uma máquina de lavar sem ligar antes para a minha mãe. Eu não sei cozinhar kinua sem antes ligar para a minha mãe. E, pela quantidade de vezes que eu falei na minha mãe só nesse parágrafo, já deu pra perceber que ainda faço terapia de medo que ela morra. O que um ser com idade mental de doze anos vai fazer num mundo sem mãe?
Mas eu não vou à Lapa. Tá decidido. Eu não bebo, eu não fumo, eu não faço sexo com idiotas (decidi isso faz pouco tempo, depois de praticamente ter ganhado carteirinha do clube “eu dou para idiotas”) e eu tenho pavor de peles desconhecidas esbarrando em mim. Pavor. Eu não vou.
Bebida pra mim é vinho, bem acompanhada. Restaurante chique. Ar condicionado. Boa música. Nesse quesito pareço alguém que vai fazer trinta anos. Lapa é para quem tem vinte. Vinho a dois para quem tem trinta. Mas esse é justamente o problema. Entendem? Eu não tenho, nesse momento, ninguém para dividir comigo as maravilhas de se ter trinta. Então, acabo me perguntando: será que eu não deveria ir à Lapa?

As coisas mais ridículas do mundo

Outro dia eu tava pensando nas coisas mais ridículas do mundo. Mentira. Eu tava pensando nisso agora mesmo. Nesse segundo. É que começar textos com “outro dia eu tava pensando...” é uma mania preguiçosa e ridícula que eu tenho.
Eu acho ridículo meninas que não sabem andar em saltos altos e muito menos correr em saltos altos e muito menos comprar um salto alto de bom gosto mas desfilam, mesmo assim, com suas corridinhas ridículas e seus equilíbrios de pato (e patológicos) pelas ruas movimentadas, firmas e feias de São Paulo. Geralmente, são as mesmas meninas meio gordinhas (aquelas dos pés inchados, das canelas com vasinhos esverdeados, quase roxos e dos calcanhares secos e estriados) que usam calças sociais pretas “justérrimas” que dão para ver a calcinha três números a menos que suas bundas gordas mesmo com tanto corre-corre de saltinho ridículo. São essas que dizem “minha flor”, “queridinha”, “um beijo no seu coração” e têm um chulé tão azedo e chato quanto suas vidas. São elas.
Eu acho ridículo quando algum publicitário fala, emocionado (mas antes vamos combinar que o emocionado do publicitário é algo super blasé, voz meio nasalada, baixa, angustiada e gola do casaco atrapalhando a dicção), que vai ter show do “Pseudoxmz4” no “Rouspixmzy Mobile Festival”. Ah, esses artistas sensíveis que rimam Casas Bahia com “compra que ta barato, tia”.
E mais ridículo ainda é que eu fico putinha de não saber que cacete é o “pseudoxmz4ptyxz4aocubo” e corro pra baixar a bosta no meu I-pod fashion. Sou uma escrava das “tendências”, que é uma palavra tão ridícula quanto o fato de terem inventado um emprego pra quem é “tendências”. O que você faz da vida? Ah, eu sou paga pra saber o nome do substituto do baterista do dj gringo do momento. Ah, tá! Cool! Super hype. Aliás, falando em hype, tem coisa mais ridícula do que editorzinho firma de editora quatrocentona te pedindo uma matéria super “hypada”? Ah, mundo. Pra onde eu vou? Todo mundo é tão chato e eu sou tão super mainstream, cara. E essas palavrinhas chatas em inglês continuam deixando qualquer bosta de planejamento ou atendimento ou marketeiro ou enganador profissional parecendo um pastor das vendas. Povo chato. São todos parentes dos telemarketings e das aeromoças, gente paga pra sorrir, pra ser solícito, pra te cobrar o dízimo da peça da moda que você nunca vai usar justamente porque tá na moda mas que você precisa ter só pra abrir mão de usar. Gente com a alegria do Coringa. Por dentro um limbo onde cada célula grita “vai tomar no rabo seu bosta que eu só queria parar de sorrir pro seu dinheirinho de merda e queimar a bunda no sol de Trancoso”.
Acho ridículo esses seres mongolóides que vão até a sacada dos seus apartamentos classe média prime (ganhou mais de 3 paus e 590 você já não pega fila em banco! Ah, que vida chata!) com playground pink, seguranças beges e gesso fazendo desenhinhos rococó no teto e gritam “chupa porcoooooooooooo” ou qualquer xingamento estúpido referente a adversários de futebol. O cara faz questão de soltar seu grunhido suburbano, rouco, grosso e mongolóide enquanto todos dormem (ou dormiam) em silêncio porque dormir deveria ser a coisa mais respeitada do universo. É o único momento no qual você não pensa nem em suicídio nem em latrocínio. Dormir deveria ser respeitado, porra.
Morte aos mongos torcedores de predinhos neo-clássicos de bairros emergentes com zeladores que não podem te ajudar agora porque a passagem pra Buenos Aires tá barata! Pior que esses só os que passam buzinando, como se dissessem “to feliz galera! Acorda aê que eu to feliz e quero abraçar o mundo com meu sovaco amarelado de desodorante barato”. Por que não enfiam a buzina em seus próprios rabos e se auto-comemoram até implodir? Morte aos carrinhos populares com adesivo néon de santa, motor turbo sofrido em populares 1.0 com som de fórmula 1 de DVD pirada de videogame mainstream.
Acho ridículo quando você está fazendo qualquer coisa em algum lugar com uma pessoa e fala, totalmente querendo se livrar daquela pessoa “então, vamos marcar qualquer coisa em algum lugar”? Pô, ridículo, claro...mas vai tentar ser diferente. Vai falar pra aquela sua amiga que a peça de teatro dela é chata pra cacete e que nesse momento você não está a fim que ela venha na sua casa porque o namorado dela te deprime com aquele topete que deixam mais óbvias aquelas bochechas e o dedinho do pé dela, separado a milhões de quilômetros do resto do pé, te causa algo nunca superado na alma. Vai falar pra ver o que acontece. Não rola não. O que rola é falar pra pessoa que você ta vendo agora “por que a gente não se vê qualquer dia desses”. Isso sim rola, é bem aceito. Agora vai me dizer que o mundo não é ridículo?
Cartão Mais, senhora? Cartão Fidelidade, senhora? Cartão Super, senhora? O único cartão que eu tenho é o da drogaria Onofre. Adoro. Adoro farmácia. Já percebeu como as pessoas ficam intensas na farmácia? Quem tem que espirrar, se acaba. É um atrás do outro. Quem tá assado ou com coceira, nem acaba de comprar a pomada já sai raspando um cu no outro. Tudo é mais intenso. A pessoa fica até com dois cus na farmácia. Quem ta gordo, bufa arrasado, se pesa quase com fundo musical e se arrasta até o shake diet na prateleira alta demais pro bracinho gordo e pesado. Pega pra mim, moço? E pronto, mais um casalzinho formado pelo submundo dos renegados. A gorda baixinha que não trepa há anos e o auxiliar Claudyson que ta se achando o maior gato porque deixou crescer o bigode que tem um “Q” de loiro. Acho ridículo os casais formados porque “é o que temos”. Vai fazer um exercício, minha filha. Vai ler um livro, Jamylson. Bora fazer um mundo melhor sem melô de corno cantado por gente em terno e corrente e sem regime pra caber no vestido de noiva da Jamily’s noivas minha gente! Dá pra ser melhor! Acreditem! Eu já fui uma Jamiles e olha lá, até calcinha Calvin Klein eu tenho agora porque a-cre-di-tei! Tem coisa mais ridícula do que a-cre-di-tar? Tem coisa mais ridícula do que aquela vozinha lá no fundo, te dizendo, vai boba, aproveita. Aproveita! Vai lá! Eu tenho a vozinha. Eu sou ridícula. A vozinha da casa própria, do maridão e do casalzinho de crianças loiras. Já viu como pobre comemora um olho azul? Depois eu que sou ridícula.