Nos conhecemos no Festival de Cinema de Cannes na década de 80 (mentira, foi no festival de publicidade há três anos, mas achei tão chique começar o texto assim).
Eu estava numa festa, no bar do Martinez, (um hotel metido cheio de velho careca e gordinhas a fim de descolar um velho careca) pedindo uma água com gás e ele me encoxou sem mais nem menos. E digamos que, na encoxada, eu senti mais coisa do que menos.
Eu quis xingar, matar, esquartejar, mas só sorri e comecei a suar frio. Ele sorriu e sumiu na multidão. Assim. Da forma mais cretina, nojenta e cafajeste do mundo. Ele violentou minha existência, arrancou de mim um sorriso cúmplice apesar da grosseria terrível e ainda foi embora. Me fez gostar e aceitar aquela indecência e, como se eu já não estivesse assustada e sozinha o suficiente por sentir isso, me abandonou. Você gostou da merda? Então agora se culpe bastante, criança. Eu te soquei, você podia ter revidado, mas você me abençoou. E eu? O que fiz? Te elevei? Te achei especial? Não, só caguei pra você.
Fiquei tão nervosa e estranha e esburacada que voltei pro meu hotel. Eu ia ligar pra minha mãe, tomar um banho quente, meio Rivotril, chorar um pouco, rezar, fazer massagem nos meus pés, colocar um par de meias e dormir. Qual não foi a minha surpresa quando vi que ele estava me esperando na recepção. Fumando como naqueles filmes de homens que fumam. Sentado como naqueles filmes de homens que esperam. Ensebado e olhando tudo com um sorriso demorado que dura pouco. Querendo de um jeito que eu nem sabia lidar mas que, pra ele, era só um desejo de fim de noite. Sujo, errado e precoce. E tudo isso, a mocinha sabe, é tão inevitável. E quem assiste. E quem roteiriza e dirige e o mundo inteiro sabe. Era o homem inevitável. E em mil anos de vidas, nunca senti uma coisa tão absurda. Não era tesão, ódio, simpatia, alegria, pavor, surpresa, susto, medo, nada disso, não tinha nome. Não tinha dicionário. Era um misto de nojo com apetite. Uma vontade de botar a língua pra fora pra vomitar mas aproveitar a queda pra lamber os pés dele. Eu queria enfiar a cabeça dele na privada e dar descarga. Ao mesmo tempo que eu queria a liberdade de nadar naquela água suja. Lembrei agora do Milan Kundera dizendo que o que excita a alma é ser traída pelo corpo. Eu que tanto sinto e tanto digo, naquele instante, senti algo que nem se sente e nem se diz. Era algo só de corpo mas nem por isso físico ou simples. Também não era de corpo. Eu não sabia e era justamente essa a sensação. A de não ter a menor ideia. Não poder recorrer à memória dos sentidos. Ah, isso é tal coisa. Ah, isso é igual quando eu, no dia tal. Ah, isso é novo, mas eu sei que é tal e tal. Nada disso. Era a liberdade sem fim, mas sem força do mesmo tamanho para ir. O que era?
Eu disse não. Mandei ele ir embora. E ria, trincava os dentes, estalava os dedos, mudava a voz o tempo todo, que voz quero usar, o que quero ser, que coisa é essa que tenho que tirar de mim se não sei nem de onde tiro e nem pra onde vai depois. Quase ajoelhei pra pedir que ele saísse da minha frente. Aquela força toda, aquele homem todo e eu dizendo não, me deu uma pena de mim. Eu não dizia não porque não queria ou porque queria. Eu dizia não porque, nossa, tem mesmo certeza que você está esperando por mim? Eu vi, você viu, tinha tanta mulher lá, não tinha? Eu tô de calça de moletom vermelha com sapato de bolinha. E minha perna direita é um pouco maior que a esquerda, então essa barra da calça sujou mais, tá vendo? E eu, hoje, olha que caipira, fiquei nervosa porque tinha tanta coisa no café da manhã, e fiquei com medo de não aproveitar, sabe? E aí me deu ansiedade, sabe? E eu não comi. Porque eu tenho medo. To aqui e todo mundo fala línguas e cifras e roupas e coisas. E eu, ah, o que você está fazendo aqui?
E ele segurou meu braço. Ficou me olhando, olhando, olhando. Como se dissesse, você nem pensa nada disso na verdade. Como se dissesse, não valorize demais, nem a mim, nem a você. Porque era o que na verdade, no fundo, eu estava fazendo, me valorizando demais. Eternamente intocável no meu personagem que nunca merece. Seus olhos tinham um estampado de vamos acabar logo com isso. Como se fosse uma doença o que pegamos no outro hotel, no bar. E agora, inevitavelmente, assim como ele, que combinássemos de nos curar juntos.
E eu disse não. Eu disse não para ele e seus mil anos e mil sexos e mil cigarros e mil bebidas e mil homens e mil mulheres e mil tranquilidades e mil mundos e mil encoxadas. Eu era uma dizendo não para mil. Eu estava dizendo não para o homem inevitável. A única espécie de ser que jamais pode ouvir não.
E eu, que pena, disse não porque se dissesse sim não teria a menor ideia do que fazer com aquilo tudo. Com tudo o que ele representava. A festa, no bar, do outro hotel, era pra ele. Gente do mundo inteiro. Mulheres do mundo inteiro. Pierre Cardin, eu vi, eu vi, ele te queria também. Então, como assim, você sai da festa atrás da menina de camiseta preta da Hering, com um furo no sovaco. Heim, desgraça de ser? Como? Minhas roupas limpas acabaram e não me depilo tem aí umas semanas.
O que fazer com isso? E mandei o homem embora. Eu não saberia o que fazer, onde tocar, por onde começar, até onde ir, como parar, nada. Eu tive medo. De não ficar em pé. Ereta. Dura. Durar. E tive medo de jamais conseguir. E só depois, só dias depois, talvez anos, talvez hoje, quando o encontrei de novo, agora de cabelos curtos e trabalhando. Enterrado num laptop tão escuro e voltado para si quanto o dono. Ele nem me viu. Eu estava na sala ao lado. Ele não me viu. Só hoje, eu pensei, mas era só abrir as pernas. Da onde tirei, no dia, que eu não saberia o que fazer? De onde? Aquela coisa maravilhosa e sem nome que senti. Agora eu sei. E tem nome sim. Eu me senti um homem. O que sempre quis experimentar e ser. Eu fui um homem naquela noite. Ele me fez sentir um homem. Quando ele me encoxou e tal. E depois, ele ali, me esperando. Indo atrás de mim de forma tão surreal que me fizesse achar que era eu atrás dele. Eu chegando depois onde ele tinha ido para chegar atrás. Não foi coração ou útero. Foi pau. Aquilo que senti. A fome enojada. O eterno precoce. A necessidade de ter voz ou extrair durezas que sustentassem.
Naquela noite eu finalmente senti meu pau. Só que ele brochou. Viadinha.
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