Lá estava o demônio que não me deixa em paz, ele berrava que eu sou dura, estranha, sem charme. Não poderia faltar também a velha cansada que adora falar mal do mundo e dormir cedo, ela teve que ir amarrada, amordaçada e equipada com desfibrilador. A criança até gostou da idéia, mas a velha não parava um minuto: “Isso é hora de você estar na rua?”
A intelectualóide chata consegue ser ainda pior que todo o resto junto, começou seus julgamentos da porta e assim permaneceu por muito tempo. Ela odeia barbies, marombados, bregas, burros, espaçosos e passou praticamente a noite toda prestando atenção neles e não conseguindo se divertir. A mulher absurdamente sexy e confiante, morta há algum tempo, renasceu das cinzas, colocou sua melhor roupa e enfiou todo o resto de loucos dentro do carro com a seguinte ameaça: “Se vocês não se comportarem, dou pro primeiro que aparecer.”
Não importa, nada importa. Se eu ficar dentro de casa esperando ser feliz para ser feliz, eu não vou ser feliz nunca. Se eu ficar dentro de casa esperando que uma perfeita unidade nasça de dentro dessa confusão de mil personagens que é minha alma, eu não vou sair de casa nunca mais.
A vida dói mesmo, é fato, sempre doeu, não é novidade. Viver aqui dentro, com tanta gente brigando pra saber qual dos “eus” é mais eu, não é fácil. Mas foda-se, no meio disso tudo dá pra se divertir, dançar e gozar de vez em quando. Então vamos em frente, todos.
Mesmo tendo um demônio horroroso de mil cabeças dentro do meu ouvido mandando eu odiar o mundo para me defender e não ser odiada, mesmo tendo uma velha de mil anos na minha carcaça mandando eu ler um bom livrinho sem forçar muito a vista e não esquecer das meias de lã, mesmo tendo que conviver diariamente com essa criança mimada que nunca se satisfaz com nada e vive me jogando na cara que eu sou incapaz de fazê-la feliz, mesmo ouvindo o dia todo os gemidos da mulher fatal que não agüenta mais o cheiro de mofo do meu corpo, um pouco inutilizado em nome de um enfoque maior no espírito, e, finalmente, mesmo tendo que apanhar o tempo todo da insuportável garota cult que vive me reprimindo de ser feliz com a simplicidade, eu consegui reunir todo mundo, botar dentro do meu Peugeot 206 todo amassado, porque a adolescente rebelde anda barbeira pra cacete ultimamente, e ir para o primeiro lugar escuro com música que aparecesse.
Foi difícil pra criança inaugurar a pista, ela só faz o que os outros fazem, apesar de gostar bastante de aparecer. Mais difícil ainda foi botar a garota-neurônios pra imitar a Madonna em “Like a Virgin”. Claro, foi quase impossível subir em cima da mesa e rebolar, afinal, eu tenho setenta anos. O diabo odiou ver que eu estava feliz, muito feliz, feliz pra diabo. A mulher fatal queria ter tirado toda a roupa, mas vamos com calma, né? Esqueci do homem machista que também mora por estas redondezas, não tão redondas assim, afinal, a garota academia também estava lá e andou caprichando nos últimos meses.
Sabe quem mais apareceu? A rejeitada, aquela idiota que passou quase que uma vida chorando e não se sentindo amada. Foi ela quem mais dançou, pulou e se acabou naquela noite. Quando todo mundo viu a mais fraca de todos se divertindo, tudo ficou muito mais fácil. Afinal, se ela consegue, qualquer um consegue. Foi então que exorcizei meu diabo, coloquei minha criança para dormir, matei minha velha, desliguei minha inteligência, amei minha puta e dei para meu homem.
A noite estava completa porque eu também estava.
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