Quando o Ricardo me conheceu numa dessas micaretas de faculdade, há trezentos anos, ele exclamou que tinha certeza que eu era muito mais alta. Ele tinha lido alguma coisa que escrevi num desses fanzines toscos de diretório acadêmico e tinha me imaginado maior. Depois, quando ele já não imaginava mais nada mas resolveu se meter no que eu imaginava, reclamou que eu escrevia muitas futilidades. Ele era médico e não entendia meu mundo. O mundo dele, de urologista, era muito mais interessante. Terminei com ele não sem antes concordar: passar o dia pegando em vários pintos é mesmo mais interessante do que escrever sobre um ou dois. Ainda mais pra ele.
Quando o André, meu roteirista preferido, resolveu que queria me conhecer mesmo não tendo aprovado sequer um roteiro meu, eu fiquei sem entender nada. Seus textos, Tati. Seus textos. Sempre eles. Não serviam para aprovar, não serviam para humor, não serviam para a boca do personagem de rugas corrigidas pelo computador. Mas tinham acabado com a semana dele. Sem dormir. Seus textos. Quero te conhecer. Tô indo pro Brasil. Quero te conhecer. Ele era meu roteirista preferido. Eu não podia dizer não. Toquei a campainha as duas da manhã e avisei que ficaria só meia hora. Eu só sei viver em meias horas. Ele disse que viver pouco combinava com o meu tamanho. Mas só com ele. E por lá fiquei dezenas de meias horas, ouvindo em todas elas como não fazia o menor sentido o meu tamanho. Depois, quando ele já não sabia mais o que fazer com meus meio metros e meias horas, disse que, talvez, eu devesse falar menos de tristeza. Eu não perguntei nada, mas ele quis dizer. Você escreve tão bem mas sofrer é chaaaato. No exato instante em que ele perdeu a graça, lembrei que os saltos estavam me matando e fui embora.
Quando a Amália me chamou pra ser sua madrinha de casamento, avisou que tinha insistido muito com o marido que, segundo ela, tinha medo de mim. O Beto não gosta muito de você, sabe, Tati? Ele não gosta não. Mas por quê? Ele nunca me viu na vida! Ahhhh, quer saber? No fundo, o Beto não gostar muito de mim é quase um elogio. É como se meu amigo Nelson Rodrigues me dissesse “esse Beto é mesmo um pulha, querida Tati”. Foda-se o Beto.
Depois, na hora de abraçar os padrinhos e madrinhas, nunca vou esquecer, o Beto me falou, ao pé do ouvido, na frente de um anjo que quase caia: “até que pra uma baixinha você é bem bonita”.
Recentemente estive em Porto Alegre e uma leitora me disse que sempre me imaginou trintona. Eu disse, me achando a mais bem cuidada “mas eu sou trintona, sei que não parece…mas faltam poucos meses e...”. E ela disse “não, guria, tri altona”. Sim, claro. É, desculpa, mas eu sou média mesmo. E ela riu. Achou engraçadíssimo eu ser média, mesmo.
Tem sempre alguém achando um absurdo eu escrever sem usar os “lhes” e “los” e outras firulas. Meu português simples e direto e sem os mares assoviados que planam na planagem dos assovios que se perdem no trilho do trem assolado. Tem sempre alguém achando um absurdo eu não saber o que disse aquele filósofo ou poeta ou colunista de revista gringa. Tem sempre alguém me comparando com as histéricas “dadeiras”, com as discípulas dos beatniks que vivem “pra caralho, meu”, as doidinhas que largaram tudo pra “super viver a vida, cara”, as blogueiras que contam do dia com fotinhos para ilustrar, as traças que vivem de livros e drogas pra descobrir o que pensar da vida ou sei lá mais o quê de desgraça se pode encontrar por esses bares de gente que faz sarau ou simplesmente faz mais melhores amigos.
E achando um absurdo erros de português. E imperdoável eu não falar outras línguas. E que eu deveria conhecer mais o mundo. E que eu deveria falar dos outros. E que eu deveria falar menos de mim. E que eu deveria, deveria, deveria. Tem sempre alguém reclamando de ter virado personagem. E reclamando de nunca ter virado nada. Tem sempre alguém reclamando que é muito triste, que é muito pesado, que é muito bobinho, que é muito zorra total, que é escatológico, que é muito adolescente, que é muito puro, que tem muita putaria, que é velho demais pra minha idade, que sempre fala a mesma coisa, que não diz coisa com coisa, que incomoda, que não causa nada, que me expõe demais, que me protege, que diz tudo sobre mim, que não diz nada. Tem sempre alguém chegando e indo embora por causa deles. Atraído, espantado, enojado, louco, excitado.
De Jucymaras do sertão a advogados do presidente. Todos os dias chegam e-mails. Daqui e de todos os cantos. De surfistas prateados a neurocirurgiões amarelados. Todos os dias chegam e-mails. De garotinhas ginasiais que não entendem tudo a suas avós que entendem além, mas isso passa. De amigos e gente que torce pra ser um texto triste. Tantos e-mails lindos. Todos os dias tem um. De garotos para uma manhã a amores infinitos.
Ah, se você lesse mais. Ah, se você soubesse menos. Ah, se você. Se você. Se você. Me achando uma arrogante egocêntrica máster sete cruzes ou simplesmente alguém pedindo socorro antes das bolinhas de gude correrem para as valetas do mundo. Querendo me ver pequena pra calar a curiosidade crescente. Querendo me afogar pro mar ficar menos gelado. Querendo me dizer que sou isso ou aquilo, tenho isso ou aquilo. Classificar tantas formas de sentir além de deixar o mundo mais controlável ainda dá dinheiro. Querendo me matar, me comer, me bater, me amar, me dizer que assim eu estrago tudo, me ligar de longe, me maltratar bem de perto.
Mas até hoje não teve uma só pessoa que não me imaginasse enorme por causa deles. Enormes. Os textos. Sempre eles.
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