Ando de um lado para o outro do carpete manchado. Tenho horror a quarto de hotel, por mais estrelas que tenha. Sempre esse carpete que ataca a minha rinite. E as manchas. Tenho horror a manchas. Porra, sangue, cuspe, vômito. Nunca sei o que elas são. As pessoas que já passaram por ali. E agora eu, limpinha, tenho que sentar na vida, sentar no mundo. E virar parte desse mistério e desse passado e de possíveis sujeiras. E lembrar que é tudo a mesma merda. Eu e todo o resto. Não é minha casa, é só uma vidinha emprestada. O foda é dormir em paz em vidinhas emprestadas.
Ando de um lado para o outro, repensando se devo ou não. É tão simples. Ligo lá pra baixo, peço um táxi, o táxi chega, informo a rua, chego no bar, sou engraçada por quarenta minutos, pego carona com ele pra voltar pro hotel, faço charme quando ele me pede pra subir, acabo deixando, falo pra ele do meu nojo de manchas, ele tira barato da minha cara, pergunta se eu quero deixar a minha mancha, eu digo que pode ser, ele me agarra, eu fecho os olhos e sou absolutamente feliz e me sinto absolutamente viva, a gente dorme junto morrendo de ressaca. No dia seguinte ele me dá um selinho e pede que eu me cuide (homem sempre diz essa merda). Eu choro no avião de vontade de amar e ser amada. Depois dou risada porque acabo sempre preferindo essa vidinha emprestada cheia de manchas. Amar é para os grandes, eu sou essa coisinha mesmo.
Ando de um lado para o outro. Vou ou não? A gente troca e-mails há mais de cinco anos. Ele já acompanhou todos os meus começos e términos de namoro mais significantes. Ele sabe de todos os meus medos e sonhos estranhos. E porque ele está no terceiro ano de medicina e tem aulas de psicologia, ele me conta todos os segredos que eu não entendo e nem nunca vou usar. Ele tem 56 teorias para o meu pânico de vomitar. Eu acredito em todas elas. Ele é a cara do Kurt Cobain, pelo menos é o que parece nas fotos meio esfumaçadas e mal tiradas que ele me manda.
Ele tem uma pastinha no computador dele, com as minhas melhores seis fotos de todos os tempos. Ele me acha a cara da Débora Secco. Que bela dupla de idiotas nós somos. Mas é bom ser idiota.
Passo meses deletando ele de todos os possíveis meios de comunicação. Pra que quero ficar alimentando esse papo furado com um garoto mais novo e de outra cidade? Pra quê? Depois, num desses dias desiludidos e chatíssimos, o resgato. A gente se fala os maiores absurdos. Os maiores. Temos a teoria, por exemplo, do filho virtual que fizemos em algum universo paralelo. De tanta sacanagem que falamos.
Eu sou a Débora Secco versão escritora famosa de São Paulo. Na ilusão dele. Ele é o Kurt Cobain com inteligência de doctor House e abdômen de ator pornô. Na minha ilusão. Ele namora há 456 anos com uma garota que parece um traveco, de tão bonita. Eu namoro 456 rapazes e nenhum deles completa um ano na minha vida. Eu digo que é porque sou insuportável. Ele diz que é porque sou uma devoradora de guris. Adoro a versão dele.
Ando de um lado para o outro. Não posso. Não posso me levar até aquele bar e estragar tudo. Eu adoro ser a Débora Secco versão escritora famosa de São Paulo. Pelo menos em algum lugar do mundo eu sou incrível. Pelo menos naquela cidadezinha esquecida do Sul, eu sou uma escritora famosa e linda de doer. E impossível. E inalcançável. E eterna. E jamais louca, jamais ao lado da cama até perder a graça. Jamais cansativa. Para o Kurt eu jamais vou apodrecer, perder o doce. Eu estou além da vida e da rotina. E controlo o tempo do sucesso e da paixão. Ele não me vê com fome, dor de barriga ou vontade de chorar. Eu simplesmente não posso me levar até aquele bar e estragar tudo.
Chega uma mensagem dele. Ele já está lá. Me esperando. Há meia hora. O Kurt com sua barriga tanquinho e seu charme de doctor House está lá. E ainda com sotaque gaúcho. Promete ser o sexo da minha vida. Promete ser a noite da minha vida. Vou amar esse homem como nunca amei nada na vida. Penso isso e quase ligo lá pra baixo e peço um táxi. Mas não posso fazer isso com o Kurt. Não posso transformá-lo em mais um garoto gemendo, roncando, sorrindo amarelo e indo embora. Não posso transformar o homem mais incrível do mundo em mais uma mancha de vidinhas emprestadas de quartos de hotel. Não agüento mais que absolutamente tudo seja sempre a mesma merda de sempre.
Durmo sozinha comendo um lanche nojento da cozinha do hotel. O edredom tem uma mancha asquerosa. Mas em algum lugar do mundo eu sou a pessoa mais incrível do mundo. E olha que quem pensa isso é o melhor homem do mundo.
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