segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A dor debaixo do tapete voador

O ponteiro marca quinze para alguma coisa, a banca de jornal chique vende ursinhos de pelúcia vagabundos bem ao lado do jornal italiano. Uma mulher entra falando alto e tropeça sozinha em sua própria altura falsa. Uma criança não muito bonita observa o mundo todo em um segundo de maturidade.
De repente sinto o murro na boca do estômago, a chicoteada na carne, o chute nos joelhos, a implosão de vazio no coração, o desprendimento do planeta na cabeça, a queda livre de água nos olhos. Tento não embarcar dessa vez, canto uma música baixinho e faço carinho no meu braço, prendo os cabelos para arejar a nuca, estalo os ossos, sorrio para a criança bonita que voltou a ser criança, mudo de jornal, vejo a mulher que não se aceita indo embora, já são dezesseis para alguma coisa.
Respiro fundo e sigo a vida, pelo menos agora posso ser como aquelas pessoas que seguem a vida e isso me torna mais mulher.
A blusa vermelha carrega um broche brega de um lado e um ombro cheio de pintinhas do outro, eu acho a mulher linda, mas só as pessoas interessantes podem reparar nela enquanto na mesa ao lado três ou quatro patas de beleza comum conversam e se chacoalham. A falta de magia do mundo, a mesmice do mundo, tudo isso em meio a velas e talheres dançando respeitosos.
O mundo que é por uma esquina, por um ombro, por um quase silêncio, por um quase berro, o mundo que quase é me lembra você. Você quase é. Me agarro à taça maior que minhas mãos, me agarro à carne maior que meu estômago, me agarro à certeza de que hoje nada é, preciso de certezas óbvias para não sucumbir
novamente no quase. Os restos da noite entre carnes frias, velas gastas, louças sujas e mulheres igualmente suadas me devolvem a simplicidade estúpida que eu preciso para permitir que mais um dia termine sem respostas e sem grandes momentos.
A chave faz morrer o motor que me embalava a ir carregada por mim mesma. A música pára na hora, as luzes apagam na hora, é hora de sair, trancar o carro, apertar o elevador, olhar para o espelho e dizer para mim pela bilionésima vez que meu cabelo é estranho, minha bunda é estranha mas eu sou legal e sensível. Entrar em casa, brincar com a Lolita, beijar a testa da minha mãe sempre ensebada por cremes, olhar na geladeira só por mania de olhar na geladeira, olhar atrás da porta do meu banheiro só por mania de olhar atrás da porta do meu banheiro, não me sentir em casa porque não posso simplesmente me esquecer em um canto sem ser simpática.
Mesmo a vida sendo um saco, eu não quero morrer. Isso me lembra que mesmo você sendo um saco, tudo o que eu queria era que você estivesse aqui. A chatice da vida, o sufoco, a irritação, o ar pesado, poluído, parado, igual, os mesmos cantos deformados, a mesma poeira escondida, os defeitos atrás de móveis bonitos, objetos falsificados, os antigos gostos que não servem mais para nada, a parte inacabada e sem dinheiro de um cômodo que ganhou inutilidades, a tinta descascada, o cheiro azedo da Maria, a roupa que devia cheirar Comfort mas secou sem sol, o jornal cheio de cocô, a TV alta demais, a TV baixa demais, a mancha preta em cima do chuveiro, o pijama rasgado no meio das pernas, o barzinho no lugar do home theater, o buraco no sofá. Tudo isso me lembra que minha casa e minha vida não são perfeitas, e quase me lembra que você é minha casa e minha vida. Mas eu me agarro a tempo ao tapete que esconde meu amor sujo e envergonhado e peço para que ao menos isso tenha alguma magia. Saio voando novamente, quem sabe fugindo da dor eu não encontre você?

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