Essa noite sonhei que usava uma camisa de força mal lavada e era prisioneira de um manicômio de pobre. Eu e meu medo de ficar pobre e de ficar suja e de ficar louca e de ficar presa. E entendi tudo.
E então um homem com cara de sábio veio com uma injeção azul clara e eu sentia dor, muita dor, tanta dor. E ele disse: deixa. Deixa que passa tudo. Deixa eu te dar a injeção que passa tudo. E eu perguntei se toda essa angustia e esse medo de vomitar até morrer, até secar, até assustar, iam passar. E eu perguntei se eu nunca mais morreria de amor como de fato já não morro há anos e está maravilhoso assim.
E eu perguntei se nunca mais eu teria que ir pra onde não quero e morar onde não quero e ficar perto de gente que não quero e trabalhar pra gente que não quero. Porque não querer pra mim tem a força de mil mundos e mal estar pra mim tem a dor de mil mundos e não ir com a cara de alguém, pra mim, tem a ojeriza de mil vidas. E por isso eu tomo chá vendo a novela, pra ver se aquieto meu peito que já nasceu com potencial de explodir sozinho, ainda mais quando tem gente querendo apertar o botão.
Eu só quero descansar, porque meu trabalho é sentir tanto tudo e ninguém entende e fica achando que não trabalho. Eu aqui, sentada, sentindo assim tão absurdamente tudo. Eu só quero descansar. Eu só quero que passe a dor na nuca, na boca do estômago, nos ombros. A dor de olhar tudo com tanta clareza como eu olho. Sabendo tudo de uma maneira tão grande que me curvo e tenho medo de não agüentar. Se ia passar essa descompensação da minha alma ser infinitamente mais que meu corpinho. E eu viver torta e descompensada.
E ele me sorriu discretamente como parecem sorrir os mortos que morrem em paz na nossa imaginação e me disse que sim. Era o fim de tudo isso. A injeção azul era o fim de tudo isso. E então, eu entendi. Mais uma vez com a minha inocência e quase estupidez que me dão essa clareza absurda e que me fazem entender tudo muito mais do que os espertos e descolados. E eu entendi que era uma injeção letal e que eu pararia de sentir simplesmente porque deixaria de existir. E então eu corri. Corri e voltei a voar. Há muito tempo eu não voava em meus sonhos e eu voei muito rápido. Tanto que me doeu a sinusite do rosto e o coração recebeu aquela onda de ar gelado que a gente só sente quando é criança e corre feliz demais mesmo sabendo que se pega gripe correndo assim de boca gigantescamente aberta para sentir o mundo.
Que se danem as gripes, eu pensei. Que se danem as injeções azuis do mundo querendo me deixar com aquele cinza plástico indecente das pessoas anti-depressivas. Elefantes murchos.
E voei, voei. Eu e minha loucura e minha vontade de vomitar tanto até secar por dentro. Eu e o meu medo de me magoar de novo com todo mundo e precisar de novo odiar tanto e me proteger tanto que fico demasiadamente má e me sinto má e começo a fazer maldades comigo.
Eu prefiro esse peito todo errado do que outro peito. Eu gritava. Eu prefiro mil vezes me assumir do que assumir o mundo mil vezes errado. Eu gritei.
E então, tudo continuava ali, prestes a dar muito errado, a falir, a cair no chão e fazer meu próprio buraco. Tudo estava ali. Todo o meu potencial gigantesco pra fazer da minha vida um inferno imenso. E eu assumi meu peso, eu assumi meu medos, eu assumi toda a merda. E assim, voei ainda mais alto, como se flutuasse. Eu peguei pra mim tudo o que soltava por aí e, surpreendentemente, fiquei mais leve.
Se dava pra ir de pesadelo pra sonho deitada, imagina o que eu não poderia fazer da minha vida a hora que ficasse em pé.
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