Tudo o que guardei são flashes, sensações, segundos, milímetros, frames. Não me lembro de nomes de ruas, não me lembro de preços de entradas tampouco de sobremesas e nem dos melhores restaurantes, não quero pesquisar sobre a exposição do momento no museu do momento. Quero apenas respirar fundo, fechar os olhos e lembrar da primeira vez que pisei na Europa. Lá vou eu.
Perguntei ao taxista porque todas as janelas tinham cortinas verde. Perguntei sorrindo, tipo criança boba que de tão feliz vê magia em banalidades. Ele fechou a cara e respondeu que Torino era o melhor lugar do mundo. Eu vi que ele usava suspensório, boina, piteira e continuei sorrindo. Típico de uma turista mezzo loira, mezzo atrapalhada, dei 100 euros pra ele achando que eram 10 e ele me perseguiu 3 quadras pra devolver o dinheiro. Saiu me xingando. Eu continuei sorrindo.
Ia ter um show na pracinha próxima ao meu hotel. Estava uma noite quente e rapazes vestidos com uma moda que misturava a máfia italiana com a última tendência em Berlim passaram por mim falando de forma tão viva que foi como se me enfeitiçassem. Tudo era estranho demais e ao mesmo tempo quase familiar, como um filme do Fellini.
As ruas estavam povoadas de força motriz: gente das faculdades, das indústrias promissoras, das indústrias lutando para sobreviver. Gente boa. Eu só caminhei como uma ovelhinha feliz em pertencer aquele mundo. Eu esperava algo parecido com uma quermesse mas tratava-se de um show do New Order. Assim, de graça, sem trânsito, sem fila, sem neura, um show do New Order numa pracinha perto de casa. Eu até queria cutucar as pessoas e dizer “dá para acreditar?”. Mas pela cara blasé da maioria, dava fácil pra acreditar.
Era um tumulto de senhorinhas fervorosas comprando santinhos, medalhinhas e lembrancinhas de todos os tipos. O Santo Sudário passível de foto é apenas uma réplica, o outro fica guardado. Mas juntando toda aquela fé com todas aquelas idades e com todas aquelas senhorinhas, dava fácil pra sentir uma espécie de momento milagroso.
Naquele mesmo dia, só que a noite, me sentei num banco solitário bem no centro do Quadrilátero Romano, lugar onde se concentram restaurantes, bares, lambretas, casais de namorados, tipos bizarros com botas verdes por cima de calças roxas e algumas casas de show. Falei mal de todo mundo que passava mas, acho que pela primeira vez na vida, porque eu não tinha maldade nenhuma no coração.
Era a quinta vez que eu ia ao restaurante sem nome. Apenas um desenho de um gato negro na porta. Eu não agüento mais comer! Dizia em vão. E lá vinha o “nonno” com alguma degustação de pasta, de vino, de profiterole, de sei lá mais o quê. É de graça minha filha! Manja que ta fa bene! Lembrava da minha infância. Eu magrinha, por natureza, e minha família italiana me entuchando comida até não poder mais. Inconformados. Por isso escolhia o restaurante do gato negro nas noites mais solitárias. Família é algo que muitas vezes enche o saco, mas sem ela ficamos, muitas vezes, sentindo um baita vazio. O restaurante quase nunca tinha gente, mas sua esposa, quando não trazia mais comida, me trazia a foto de algum filho, neto ou sobrinho. Me senti na casa de parentes queridos que eu nunca mais veria.
Um dia acordei cedinho e fui para a estação de trem. Me deu uma espécie de bobeira e comecei a achar que cada centímetro daquela estação renderia uma foto inesquecível. Tirei foto de pássaros tranqüilos sobre trilhos, de turistas cansados sobre malas coloridas demais, de guardinhas cínicos e debochados sobre tantas dúvidas que eu trazia a cada instante. Então tem que validar o bilhete? Mas como é? Onde é? Eita que picotaram meu bilhete! Ele vale mesmo assim? Ei moço! E eles riam. E eu queria ter raiva mas sei lá porque é impossível sentir coisas mesquinhas na estação de trem de Turim. Desci em Milão e por lá fiquei algumas poucas horas. Eu não estava nem aí para o shopping Armani. Eu queria era voltar para os meus vovôs de suspensório.
Caminhei da praça dos cafés suntuosos até o parque que recria um vilarejo medieval com direito a castelo e tudo. Nas grades, milhares de declarações de amor na língua mais bonita do mundo. Em uma única tarde, as arquiteturas misturadas (e nem por isso não orgânicas) me fizeram caminhar com um pé em cada sensação. O poder monárquico e o industrial, o barroco e o futurismo, o contemplativo solitário e a força da agilidade, o museu das histórias contadas em papiros e o museu das histórias contadas em película.
Em fins de tarde, o que eu mais gostava era de caminhar pelas vias largas, com arcadas sombreando tudo e nem por isso escurecendo as vistas. Suntuosas, altas, próximas, decadentes, antigas, de primeiro mundo, de um mundo acontecendo, de um mundo esquecido. Via Roma. Uma atmosfera de revolução industrial novinha em folha com certo charme do século XIX. Grifes importadas, sapatos bregas e baratos, a agência de viagem que avisava “só avião, não ensinamos a pegar trem”, cafés perfeitos para tomar vinho , primeiro prato, segundo prato e mais milhares de comidas sendo servidas em meio a homens de um charme avassalador, garotas que se despediam cantando e crianças coradas e redondinhas.
Turim é formada da educação dos Alpes, do esbanjamento de Milão, da melancolia orgulhosa de quem já foi capital, da simplicidade em voz alta dos trabalhadores mais pobres que vêm da região sul, dos estudantes cheios de sonhos, da fé no catolicismo e no Juventus.
Tudo isso é muito perto de ser Turim e ao mesmo tempo Turim não é nada disso. Turim, pra mim, é o lugar que consegue fazer nhoque bom mesmo sem requinte. É o lugar que consegue fazer taxista simpático mesmo sem sorriso. É o lugar das cortinas verdes e fim de papo.
Isso foi o que ficou. Talvez tenha mais coisa, mas agora já abri os olhos.
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