sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Desamor revisitado

Ele chega com uma de suas novas jaquetas chiques e de longe eu vejo aquele cabelinho de banda suja londrina que eu tanto amei, aquela carinha infantil de “olha, cheguei” que eu tanto amei, aquele olhar de timidez tarada que eu tanto amei… e me pergunto: por que amei tanto e não amo mais?
Ele me aperta como sempre, até que algum ossinho da minha coluna estale, e me diz, como sempre também: “Que é que você tem que eu sempre largo tudo e venho te ver?”
Espreguiço para sugerir desinteresse mas meu coração bagunça tanto que tenho um ataque de tosse. Entramos de mãos dadas no cinema, felizes como se tivéssemos acabado de nos conhecer. Ele me olha sem parar, suspira, a cada movimento que eu faço, cada semblante, cada segundo de raciocínio, ele está lá me observando encantado. Faço um esforço pra tentar me lembrar: por que foi mesmo que eu deixei de amar esse homem? Não faço a menor idéia.
O filme é um lixo, master clichê, mas era o único que tinha e tudo bem: ao lado dele tudo fica divertido. A gente brinca de adivinhar as próximas cenas, adivinhamos o filme todo ao som de “shius” que os humanos limitados fazem, inconformados com aquele casal que tenta boicotar um filme tão supimpa.
Sobra pipoca no dente, colamos pipoca na testa, entra pipoca no sutiã. Cada vez que nossas mãos se encontram salgadas, dentro do saco, a gente brinca de se roçar com os dedos como pernas desesperadas.

Antes da gente chegar ao elevador do seu prédio, ele me oferece as costas e eu subo, o porteiro não entende nada, eu berro de longe: “Sou sobrinha dele.” Adoro essa brincadeira e mais uma vez me pergunto: onde eu estava com a cabeça pra deixar de amar esse homem?

Um banheiro é pra escovar o dente, outro é pra tomar banho e o outro é pra fazer cocô, ele explica. Sinto pena dele sozinho naquele apartamento gigante, quase quero ficar ali pra sempre. Ele mostra que tem todas as minhas músicas prediletas (que eu ensinei a ele) no seu iPod última versão, anda esbarrando pela casa em seus milhares de brinquedinhos e insiste para que eu assista a alguns dos seus vídeos caseiros cheios de bobagens. Ele é um super-homem quando a gente precisa e uma criancinha fofa quando a gente também precisa. Meu Deus, agora faço o maior dos esforços do ano: por que cacete deixei de gostar desse cara?

Chocolatinhos, vinho, som ambiente, escurinhos. Ele pára o mundo todo, se ajoelha no sofá deixando as mãos no meu colo: “Você não sabe a saudade que eu senti todo esse tempo.”

Seus olhos se enchem de lágrima, a música se torna instrumental matando qualquer outra palavra, a cidade não respira, o tempo não existe, a solidão é coisa de gente que mora muito longe dali, minha mente aquieta todos os monstros, as mulheres lindas nas capas das revistas são empilhadas descartavelmente e viram nada, a poluição vira oxigênio puro e cor-de-rosa, o outro homem que é dono sem merecer do meu corpo magoado explode no ar deixando apenas estrelas para iluminar meu recomeço, as dúvidas todas do que fazer pelos próximos mil anos se simplificam porque eu só desejo viver aquele momento, sim, sim, sim, eu quero zerar tudo de antes e de depois e amar esse homem agora, como antes, como nunca. Por que não?
Deitada sem forças e coragem para existir, eu quero tomar o banho mais urgente e demorado do mundo.

Ele agora está na sacada, olhando a cidade e coçando o saco, tentando pegar algum recado no celular, querendo marcar alguma coisa com algum amigo, fala alto, os carros buzinam e se xingam lá embaixo, talvez ele deseje mais do que tudo se virar e não me ver mais ali. A vida idiota voltou e me fez lembrar novamente que continuo uma idiota.

Sua enorme sala inteira chora, todas as plantas, todas as luzes apagadas, todos os CDs empilhados, o carpete caro e fofo, os cantos, o teto, o chão, o ar. Os feixes de luz da cidade entram como espada pela janela e guilhotinam qualquer razão, todo mundo está deitado e decapitado comigo. Todos estão sujos, todos estão ultrapassados e velhos, todos choram a intenção de amor que nunca dura.

A exploração do meu corpo me dá uma sensação mundana de morte pobre e simples, nada de espiritual e eterno ronda minha alma neste momento. Seus restos grudam em mim como tudo de ruim que gruda na nossa memória e nos faz viver cheios de medos e traumas.

Ele me observa frio e concluído da sacada, não se preocupa com o meu frio, com o vazio gigante que me toma novamente e me deixa assim, palidamente assustada e infantil. Ele até tem pena, mas me considera demais para ter pena de mim.

Ele anda mais completo, mais solitariamente feliz, mais homem, mais ereto, mais macho. Eu, corcunda, me enrolo na manta, corro para o banheiro como um bicho cagado, me ajoelho no chão do boxe e deixo a água quente me dizer que tudo bem: não é a primeira vez que você se sente tão perdida, usada, burra e sozinha.
Uso o banheiro do cocô para tomar banho, o banheiro do banho para vestir minha roupa que era feliz até duas horas atrás e agora parece escolhida para velar o defunto, e finalmente, o banheiro de escovar os dentes para mirar meus olhos traídos e esquecidos. Peço desculpas não aceitas a mim.

Antes de chegar à minha casa vejo que ele deixou dois chocolatinhos na minha bolsa, arremesso um deles com ódio na valeta da rua, o outro eu como, afinal, é sempre com a metade de tudo que eu fico porque ninguém nessa merda de vida consegue se dar e ser por inteiro.

Agora me lembro porque deixei de amar você, lembro exatamente porque deixei de amar todo mundo. Lembro que mais uma vez deixei de me amar.

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