Blog feito para compartilhar todos os textos da escritora Tati Bernardi, que excluira alguns de seu site. Todos os textos postados aqui são de autoria dela, então, por favor, se for colar em algum lugar, dê seus devidos créditos. Não estou aqui para plagiar ninguém.
sábado, 2 de outubro de 2010
Que é isso de ser mulher?
É brinco vermelho grande? Vou lá e compro. E já deixou de ser. Coça, arde, arregaça o buraco da orelha. Não é isso não. É botinha bico fino? É isso ser mulher? Vou lá e compro, e espreme meu pé pequeno com dedão grande. Pé estranho de menina. Com um pé desses, dá pra ser mulher? Mesmo com essas unhas pintadas de vermelho paixão? São pés de menina? Quase de menino. Sou quase um menino. Essa cabelo curtinho, as roupinhas de moletom que uso, porque tenho medo, já que sou mulher. O porteiro, o taxista, o cara da padaria, o faxineiro, o lindo rapaz e suas boas intenções. Todo mundo. Esse mundo é cruel com as mulheres. E com os meninos? Então lá vou eu, só falta um boné. Mas às vezes, quase sempre, fico numa taradice e preciso de pinto. Já que pinto, vejam só, não tenho. É isso ser mulher? Precisar de pau? E então me visto como uma puta, já que é pra ir direto ao assunto que saio de casa, já que odeio sair de casa. É isso ser mulher? Ter desespero? E vou, e fico mesmo tão bonita. Quando quero, não tem, não tem não. Eu vou mesmo e pego o que melhor me parecer. E como. Olha lá. Eu como. Porque a puta, meu amor, essas roupas que de vez em quando me invento, essas roupas, a puta, meu amor. Você não sabe? É puro pinto. É puro poder. E isso então, caramba, é ser mulher? Nada em mim é passivo. Tudo em mim fura, arrebenta, endurece, estoura na cara dos outros. Isso é ser mulher? Me diz! Por que no auge do meu buraco eu tenho mesmo é uma faca? Por que vou do menino com boné, e seu pinto, para a puta que tudo pode, com seu pinto? Onde está o caralho da mulher? E tudo isso, vejam só, porque pinto não tenho. O que é ser mulher? A minha loucura de mulher não me permite calar muito tempo, seria coisa de quê? De homem bobo? Homem bobo é que cala, pode reparar. Ou mulher de homem bobo. Quem cala? Mas se saio assim, me jorrando pro mundo, logo vem, o cansaço de não mais me sentir mulher. E a necessidade de me calar pra tentar ser. O que é então essa porra de ser mulher? Que é? É meu sonho, eu com medo do mar gelado e fundo e escuro e então, eu quero ajuda, eu quero pedir, alguém mais forte que me socorra, mas não posso perder e então, o que eu faço? Eu como o forte, para o forte ter. Eu como o pinto, para o pinto ter. Querer tanto ter, é coisa de mulher? Guardar no meu ventre a vida é mulher? Esparramar pro mundo é ser mulher? Tentar não vomitar o resto de tudo que ainda não encaixa aqui? O que é ser mulher? E o depois, esse estado deplorável que fico, arrasada, destruída, usada, podre. Que é isso? A ressaca de querer devorar o mundo e o dia seguinte totalmente cuspida por ele. O que é? É coisa de menina, sempre tem cara de menina. Também não é mulher. Daí, quando canso então, da puta homem, da menina assustada da puta homem. Quem vem? Vem a velha. A velha cansada de tudo isso, querendo dormir e tomar banho desses que esfrega pro tempo passar mais rápido e levar embora alguma coisa minha que dá essa liga insuportável com o mundo. A velha, a venha é ser mulher? O que é ser mulher. Hein? Quando eu vou com meu tênis e minha gola alta, ver um filme, só um filme, e nenhum batom na boca. É só porque tenho preguiça e nojo de mulheres que a tudo seduzem. E o tempo todo. O buraco aberto como um banheiro público. Eu sei meu papel e nele me encaixo, ó mundo sedento de minha vagina! Preguiça desse papel. Não quero. Seduzo quando estiver a fim, pode ser? Mas eles não deixam. Eu vejo os olhares. O homem da banca de jornal. O homem na fila do cinema. O olhar de você podia, mulher. Ser mulher. Tem uma mulher aí. Então, por quê? Hein? Por que não querer dar ao mundo isso que você tem, esse castigo e esse mérito. Esse de joelhos e esse chute no saco? Porque se “enfear”, menino, só pra me irritar? Ser mulher. Por quê? Porque tenho preguiça. E medo. Cansa ser toda uma espera. Mulher é dos pés à cabeça uma longa espera. Do elogio, do amor, do acolhimento, do nascimento, do se tornar. E eu, mundo, quero que você enfie esse seu charme da felicidade no cu. Enfia essa passarela no cu, mundo! Enfia mesmo. Eu só quero ver meu filme em paz. E não ter sexo. Ou, caso você venha querer que eu tenha mesmo algo, já que o tempo todo temos que nos definir pra não sermos definidos, então prefiro ter uma pica imensa, pra você nunca, nunca, nunca, ousar. Homem basta, percebe? Mulher ta sempre correndo atrás pra agradar. A passarela é nossa, e então, quem não quer, é o quê? Nunca, ouse. Chegar perto de roubar aquele meu riso nervoso e o medo do frio cortante. A coisa mais linda do mundo. Porque depois, depois dessa preliminar de menina, eu sou tão mulher. Tão mulher. Mas pra quê? Hein? Quem mesmo, até hoje, deu conta? Quem mesmo, até hoje, amou? Quem mesmo, até hoje, honrou? Quem mesmo, até hoje, me deixou ser mulher? Hein? Por isso, lá vou eu, meu tênis, o boné, os olhares. O que é ser mulher? Ser mulher é algo que simplesmente, embaixo de tudo isso. Você não vê? Eu trepo minha mulher pro mundo como um homem, enquanto não chega quem trepe minha mulher como um homem pra mim. Tanta força, mostrando pra todos esses pintos o quanto eles são moles sem isso que nem sei o que é. Mas que tenho. Sem nossa força, aquilo, aquilo é só uma massa sem direcionamento. É isso. Eu tremo quase de não terminar, precisava, é isso, escrever, ser a mulher que eu sou, não a mulher pra casar, não a mulher para um homem, não a mulher do namorado, não a mulher pra que digam “olha, uma mulher”. Mas isso, a mulher que sei ser e que, acreditem, é tão mais mulher que cabeças tolas a chacoalhar brincos grandes e rodar saias e seus babados e rebolar periquitas que jamais derrapam de amor no dia seguinte. E quem não vê, quem não enxerga, quem não ama, quem não sabe. Isso tudo, sabe, isso tudo não é o que vai me impedir, de não saber exatamente nem quando nem como ser mulher, mas acabar sendo tanto, tanto, tanto, que nem parece. Que nem dá pra ver. É isso. É ser obcecada pela própria natureza de já ser. É ser cega pro que invade de tão óbvio. Duvidar do que não tem se não. É o tempo todo querer ser mulher, ter medo de não ser, não saber ser. Ser mulher é a hipocrisia ao contrário. É a desgraça do avesso. É a simplicidade depois do choque. É tentar até o fim o que já nascemos sendo. É se tornar o que já se sabia mas dói tanto e se vai aos poucos. Um aos poucos todo esfolado por conta das aceleradas que é ser mulher. Ser mulher é um atropelamento em câmera lenta, que a cada frame é visto com a maior velocidade que sem tem notícias no mundo. Porque não é a saia, não é a cor. Também não é a loucura, a dor, o brinco, o casamento, o filho, o buraco, a roupa, o choro, a fragilidade, o grito. Não é nada disso. É o que passa despercebido pelo cara da fila, pelo nosso espelho. É o intervalo de todas as tentativas de ser e, principalmente, de não ser. Quando eu serei uma mulher? Ser mulher é esperar ser mulher até o fim. Ser mulher é somente morrer tentando.
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