sábado, 2 de outubro de 2010

Visão além do alcance

No Rio você vê o que está do outro lado da esquina e vê o que está do outro lado da outra esquina e vê a praia a sua esquerda e vê a lagoa a sua direita e vê que o dia está bonito acima de você e vê a montanha a sua frente.
No Rio você vê a bunda de todo mundo, e parte dos peitos, e as pernas de todo mundo. E vê artistas. E vê todo tipo de gente misturada a todo tipo de gente. E vê o sol e vê as horas e vê Deus. E sabe exatamente onde está, ainda que não conheça direito a cidade. E vê tudo isso numa única caminhada. E com uma claridade e uma amplitude absurda.
O Rio se escancara. O Rio, como já disse em outros textos, é pra fora. E tudo isso, assim, de repente, dói os olhos. É como fritar a retina em óculos de sol vagabundo. O Rio te dá uma sensação de que as imagens não vêm em layers, aos poucos, protegidas, em camadas, em tentativas. O Rio explode na sua frente. O Rio frita as suas sensações. O Rio não te protege, não conta aos poucos, não engana. O Rio é aquilo.
E por isso eu sofri tanto, odiei, tive síndrome do pânico, apnéia, caganeira, chorei horrores, e passei noites em claro, e coloquei tudo o que eu sabia em dúvida. Fiquei perdida, me senti com doze anos. Ou “douze”, como eles preferem dizer.
E resolvi escrever um monte de textos pra acabar com eles. Como fiz com todos os homens que mais amei na minha vida. Porque o Rio é uma trepada violenta que não espera você sentir prazer ou estar preparada pra tirar a roupa. Simplesmente ele te come. E no fundo, como toda mulher que gosta de um bom cafajeste, você gosta. Você reclama, toma banho, escreve um livro falando mal do Rio, mas gosta.
O Rio é como um primeiro dia na escola nova. Todo mundo zomba de você. Você vomita de madrugada. Jura vingança. Mas você sabe o quanto aquilo fez bem pro seu caráter. E não sabe explicar exatamente o motivo. O Rio é como um namorado sarado que você nem amava mas que achou que precisava deixar de quatro só porque acha que cérebro tem que vencer a beleza. Só que até de quatro ele é lindo. Então quem vive de quatro é você. Mijando e cagando pros cariocas. Mas eles não se importam porque você é só um cachorro. Você é só uma cabeça rolando.
No Rio tudo é aberto, tudo é de todos, tudo é de graça, tudo é amplo. E então, você, paulistano inseguro, tem medo de não saber mais quem você é. De se perder. Das suas bolinhas de gude desagruparem e saírem correndo pelas valetas do mundo. Porque a bosta do seu grupinho fechado e das sua visões fechadas e das suas certezas em paredes caras acabaram. E não é todo mundo que fica bonito saindo do mar. Pelado. E enxergando tantas coisas. Sem seu território devidamente comprado, conquistado e fechado, que porra é você? De que serve seu mundinho tão específico num mundão misturado?
O Rio é como nascer de novo só que sem mãe pra te dar peito. É como estar super na moda só que sem roupa nenhuma. É como estar no lugar do momento sem ter ralado, pagado ou puxado o saco de alguém para merecer. É como ser contratado pro emprego da sua vida numa língua que você não entende e para tarefas que você nem sabia que existiam. É como ser convidado pra desfrutar de um paraíso cheio de demônios. Você não entende nada, não sabe nada, fica se perguntando se está mesmo vivo ou se sabe viver. E tudo isso, na imensa contradição de estar enxergando tudo como nunca antes.
Em muitos momentos fui obrigada a fechar os olhos, mas certamente voltei de lá com eles um pouco mais verdes.

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