sábado, 2 de outubro de 2010

Berro em pé

Férias antes dos doze anos era coisa de criança, poderia ser incrível ou um fiasco, a depender da programação dos pais, do tempo, das brincadeiras propostas, dos velhos amigos do prédio ou dos novos da praia, fazenda ou o que fosse.
Férias aos doze não dependia mais de pai e mãe e muito menos do tempo lá fora. Eu já tinha um projeto de seio (dois, no caso) e minha saliva tinha engrossado justamente porque eu não comia mais só o que era molhado e mastigado pelos cuidados de quem cuida. O mundo seco me martelava e incendiava o tempo todo e haja liquido próprio pra continuar viva.
Foi assim que na última aula do último dia útil do mês de junho, minutos antes do sinal que separava uma classe de setenta e dois alunos das primeiras férias adultas de suas vidas, chegou pra mim um bilhetinho que dizia “quando tocar o sinal é pra berrar e ficar de pé”.
Eu olhei para trás e uma infinidade de garotos topetudos e garotas com brincos gigantes rasgando suas orelhas confirmaram o combinado com bochechas rosadas e olhos safados. Eu finalmente era um deles e combinei comigo que gritaria o mais alto que pudesse, pularia o mais alto que pudesse e ainda esmurraria o topo do céu o mais forte possível, como fazem os que vencem alguma coisa depois de muitos anos de sofrimento, semi desistências e vômitos de madrugada.
Faltavam quatro minutos e eu olhava pra trás, agradecida até não poder mais por ter sido chamada a pertencer. Eu, aos doze anos, prestes a devorar a vida como se doze anos fosse ser muito velha e muito terminal e muito tanto que não pudesse ser mais nada, não estava tão sozinha assim no mundo, eu tinha enfim amigos que berrariam comigo, de pé, a chegada de alguma coisa que eu não sabia bem o que era mas que tinha a ver com meus peitos pequenos e meu coração batendo com arritmia de valsa bem no meio das minhas pernas.
“Crescer não precisava doer tanto”, eu lembro que pensei ao sentir, pela primeira vez, que cada canto do mundo podia trazer o perfume da minha mãe. Ainda que o cheiro desse perfume de mãe não fosse o da minha. Crescer pode ser gritar quando não se aguenta e pode ser pular quando não se aguenta e pode ser com amigos já que, enfim, é de não se aguentar mesmo.
Eu só perderia a virgindade dez anos depois daquele dia, eu só beijaria na boca dois anos depois daquele dia, eu só me masturbaria pela primeira vez três anos depois daquele dia. Mas aquele dia, lembro bem, eu coloquei meu cabelo atrás da orelha e senti, com o tom da voz mental menos infantil, que a vida podia vir que eu tava pronta e a mataria no peito. Eu não teria dor de barriga. Que venham as férias.
E foi então que o sinal soou e eu berrei, de pé, com os braços muito esticados para o alto. Completamente sozinha. Seguida por caretas, dedos apontados e pelos sons de risos descontrolados, palmas e uivos de todo mundo.
Essa é minha última lembrança antes de me sentir envelhecendo. Como uma criança que comemora sozinha. Como uma louca que não aguenta isso tudo que é tão bom e terrível e não disfarça mandando bilhete anônimo e nem se escondendo em grupos de risos e chacotas.
E assim se seguiram todos os meus dias, até aqui. É sempre pra essa cena que volto, quando tenho a impressão muito convincente de que sinto os sinais que tocam com muito mais dor e grito e alegria que as pessoas que ficam na espreita dos que ansiosamente não suportam muito não ser puros.
Na hora eu quis morrer de vergonha, ódio e medo, mas hoje eu vejo que desde o começo eu sabia da maldade mas preferi, como troca justa com o que minha história ainda tinha pra me contar, dar uma chance, até o fim, para que o mundo pudesse me amar do tamanho que a gente ama o mundo aos doze anos.

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