sábado, 2 de outubro de 2010

A tosse

Impecável é palavra perigosíssima e em mim causa dessas coisas de mania e corretices. Por exemplo o cabelo que tive a paciência de ajeitar e que abre precedentes pra tudo que está embaixo. Daí vou ver já gastei fortunas pra ter a depilação da Risolina que não sossega até tirar o menor dos pelos que ainda nem era pra ser nascido.
Esse raciocínio é sem passar pela frente da testa, ocorre lá pelos limbos das costas de orelhas que nunca viram sol mas hastes de óculos. E por isso mesmo não é muito de se saber históricos, horários e tempos. Então nem sei porque chamo de raciocínio, mas como é quase prático e bastante bobo, também não acho justo chamar de inconsciente porque por esse tenho apreço intelectual temeroso. É só de ser mulher e isso não é instinto e nem neurônio, é só insuportável mesmo.
É simples porque já que tenho então a pele mais lisa e o cabelo mais ajeitado, não me custa dar um pinguinho de vermelho no único minúsculo borrão da única unha de todas as unhas que não está completa.
Assim, num desses dias de impecável, que é mais bolha que todas as bolhas do mundo, dia de tô de máscara e nave e peles e litros e camadas e tudo, foi que uma menina feia, com pigarro de cachorro velho e sapato imundo com beirinha de calça varrendo ruas pigarreadas, resolveu, porque tava distraída com um pacotinho de bolacha Bono, tossir sem colocar a mão na boca, bem na minha nuca. E eu senti respingar a violência do mundo que não controlamos em mim, um tiro covarde, sem defesa, sem aviso, enquanto eu estava de costas e realmente muito bonita e bem vestida e cheirando tão bem que disfarçava pra me lamber um pouquinho, fingindo coçar a boca com o braço.
Primeiro pensei mesmo em morrer. Não que eu fosse me matar ou desejar uma desgraça. Mas é desses milésimos de segundo que pensamos que era melhor mesmo estar tão longe que nem é mais desse mundo. Depois pensei em estratégias para não encostar em nada meu até que me fosse permitido o contato com a água maravilhosa e salvadora do meu chuveiro. Esfregaria bastante, passaria bons dias deprimida e me resguardando de melhorias. O mínimo de tentativa de ser bonita me fazia entrar no vício sem fim de tentar tudo pra ser perfeita que me fazia entrar na neurose do impecável e, então, era sofrido andar na rua, respirar, tocar. Viver sempre macula a moça de massinha irreal que esculpimos sabe-se lá pra alegria ou vislumbre de quem ou de quê.
Tosse maldita, broca, martelo, furadeira, relaxou meus pés, descascou minhas unhas, os pelos sem chances de nascer, alguns, colocaram seus comecinhos, cabecinhas, pra fora, eu suei um pouco na dobrinha do cotovelo, enrolou um pouco as pontas do cabelo, coçou no meio das minhas costas, ruas com barata, copos com marcas de batom, sola de lixos passando pelo meu tapetinho fofo que leva do banho quente pra caminha.
Eu não era mais impecável e foi nesse segundo que meu coração saiu desse romance frígido comigo, do alto de mim que nem é pele e nem é gente e nem se lembra mais, e voltou a pulsar no meio, bem lá onde tudo e todos se encontram porque também é preciso de errados, perigosos e sujos pra se manter boa, limpa e digna. O batimento no meio das pernas, essa coisa que quando pega ritmo me faz esquecer de arrumar tanto a mim e à casa, os intervalos de morte que nos impulsionam pra gastar o sangue arredondando nossos cantinhos.

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