sábado, 2 de outubro de 2010

Os bocó-visques

Na Vila Madalena existe um bar, o Mercearia São Pedro (Rodésia, 34), que está sempre muito lotado e é conhecido como o bar dos escritores. Tem também muita gente de cinema, teatro, jornais, revistas, psicanalistas, gerentes de almoxarifado, vagabundos … mas todo mundo chama de bar dos escritores.
Quando eu ainda trabalhava em agência de propaganda, tinha sempre uns estagiários duzentos e cinquenta reais por mês que queriam comer lá. Como eu era redatora júnior quatrocentos e cinquenta reais por mês, torcia um pouco o nariz (porque beber e petiscar tudo bem, mas odeio fazer uma refeição em lugar que tem pomba e mesa com rodelas de garrafa de cerveja) mas ia.
Nossa mesa, com muita menina bonita do atendimento e garotos fortes com camisa de bom gosto, era uma espécie de limbo renegado. Ao entrar no Mercearia esqueça tudo o que você aprendeu na escola sobre minorias.
Durante um tempo desejei fazer parte do lugar, afinal, eu me considerava um deles. Não sou nenhuma beldade, sou pobre, sofro igual a um cão por coisa nenhuma ou por todas as coisas, não tenho saco de me vestir muito bem e, ora bolas, escrevo. Só não deixo a barba crescer e não fedo por questões que fogem ao meu controle.
Somos as mesmas pessoas. Em mim, num grau mais extraterrestre, mas as mesmas pessoas. Se eles são viciados em entorpecentes, eu sou viciada em coisa MUITO pior, que é na minha mãe. Se eles gostam de trilhas em paraísos hippies, eu me exercito tendo pânico ou apneia duas vezes por semana, em casa mesmo. Se eles leem sobre todas as gerações de pobres brasileiros para serem inteligentes, eu venho de uma geração inteira de pobres e sou uma. Olha que maravilha!
E então me aproximei, conheci alguns deles. E fui vendo que eu não tinha lugar mesmo nesse mundo. Se eu jamais poderia ser uma daquelas garotas mega incríveis e cheias de pose e com cabelos gigantescos que cegam nossos olhos de tanto brilho do Mercearia São Roque (Amauri, 35), eu tampouco poderia ser uma daquelas pessoas do Mercearia São Pedro.
Primeiro conheci uma garota magrinha, muito tatuada, que escrevia poesias com palavrões e gemidos. Poesia e teatro pra mim funcionam assim: se não for incrível, é mesmo uma boa bosta. Bom, a baixinha não era incrível. O nome dela não importa até porque ela própria tinha a certeza absoluta de não ser ela mas o Arturo Bandini, o alterego do John Fante. Eu adoro o John Fante (apesar dele ter virado o ídolo máximo dos blogueiros meia-boca e apesar dos desaforos e risinhos escrotos que eu já recebi por gostar do cara) mas tenho bode de quem adora perambular pela Aspicuelta tendo a certeza que trata-se da decadente Los Angeles dos anos 30.
Toda vez que ela me encontrava ou telefonava, deixava claro que estava precisando de uma carona para algum lugar ou de uns trocados emprestados para comer. Oi? A garota vinha de família rica e vivia recebendo propostas de freelas gordos, mas alimentava sua miséria diariamente pra poder continuar com seus ares de artista da fome incompreendido e maldito. Comecei a sentir uma certa preguiça.
Depois conheci um grupo de rapazes de família quatrocentona, dessas com casa gigante no Jardim Europa e tias avós que quase nunca têm nada a dizer mas quase sempre dizem “nossa, belíssimo”. Quanto mais “ss” uma pessoa usa, mais rica “sessente”, repare. E com esses rapazes tive a mais séria e longa briga de minha existência pois, passando muitas vezes por capitalista escrota mimada, eu simplesmente nunca entendi o apreço deles pela pobreza. Com suas casas gigantescas, eles adoravam renegar suas origens em um boteco caindo aos pedaços na Mooca, com seus pés pouco esfolados descansando num chinelo vagabundo e o coração emanando ao cérebro o mantra “eu sou do povo”. Já eu, que nasci com vista pro tal do boneco na Mooca, só queria era sair correndo dali. Como não tenho nenhum parente com casa grande no Jardim Europa e nenhuma tia com “ss” e nem “$$” sobrando, prefiro trabalhar bastante ao invés de pagar de poeta em esquina com pagode. E gastar o que sobra no final do mês em um restaurante estrelado, afinal, não tenho nenhuma vergonha de gostar de dinheiro e coisa boa e gente bonita. Acho que só quem tem dinheiro pode se dar ao luxo de esnobá-lo, não é mesmo? Gostar de pobreza parte do pressuposto de que não se é, pois, se se fosse, se seria, e não se gostaria. Enfim, comecei a sentir certa preguiça.
Passado então o trauma com as poetisas suicidas, os alcoólatras “rock and roll minha cama é a sarjeta”, os intelectuais que renegam o dinheiro do papi (até precisarem comprar casa ou fazer pós na Europa ou pagar propina pra se livrar de algum flagrante), o pessoal do teatro que senta “indinho” e não depila a subaca e a galera “tô te sacando daqui do céu” do predinho de freudianos da esquina, resolvi tentar de novo, afinal, pô, me sinto maior sozinha no mundo e, como escrevo e tal, queria ter uns amigos que escrevem também. E, pra falar a verdade, não me dou com a galera do Mercearia mas também não me dou com nenhuma outra galera do universo, então, sei lá.
E foi quando conheci o Beto, pra quem eu daria minha última chance em ter um amigo do Mercearia.
Beto estava escrevendo seu primeiro romance e, como não suportava o calor do seu apartamento com ar condicionado em Higienópolis, ia escrever nas mesinhas do Mercearia, onde, segundo ele, batia uma boa brisa.
Beto, por causa do romance, começou a encher a cara. E, por causa do romance, começou a cheirar. E, por causa do romance, se tatuou inteiro. E, por causa do romance, tentou se matar quatro vezes. E, por causa do romance, ficou com a barba enorme e o cabelo enorme e o resto todo pequeno porque parou de funcionar com tanta droga e bebida e noites mal dormidas.
Beto, por causa do romance e dos amigos escritores, não quis mais falar comigo, afinal, eu era formada em publicidade e trabalhava pra Globo. E eu também sabia ficar feliz de vez em quando. Mais inimiga impossível.
Só que enquanto Beto se sentia muito escritor com essa vida muito de escritor e fazia um milhão de amigos escritores e recebia convites de vários editores bacanas que só são amigos e só gostam de quem frequenta o bar dos escritores e exibia, feliz, suas caixas de Rivotril com pequenas poesias anotadas, eu montei um site que tem 50 mil visitas por mês, lancei quatro livros, fui colunista de três revistas, escrevi três séries pra televisão, escrevi um roteiro de cinema, outro pra teatro e comprei um apartamento. (ficou parecendo texto de comercial da Nextel, sorry).
Beto não passou da segunda página do seu romance mas, nossa, como foi convidado para festas.

*só uma última observação: sou leitora e admiradora de alguns escritores talentosíssimos que frequentam o lugar, esse texto tira sarro dos wanna be, aquele povinho triste que, mesmo sem nenhum talento literário, desfila na FLIP de boina e olhar perdido de angústia existencial (vulgo gases).

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