Que tem por trás dessas merdas todas que você fala, sempre iguais, sempre mudando a voz porque você mesmo não suporta dizê-las e diz misturando espanhol, francês, americano e favelado. Sempre diz rápido demais, se atropelando, pra dizer como lembra, medo de perder as vírgulas. E não como traduzindo pro seu mundo, com seu oxigênio pra pontuar e tocar nas pessoas. Você sopra pum dos outros no meu ouvido. E me olha feio porque desdobro a boca num muxoxo de não quero.
Mas me conquista dizendo coisas tipo “não vou te deixar ir sozinha ao casamento”. Mexendo com minha velha dor de ser sempre menos um. Dor que nem sei explicar porque é só me imaginar chegando com alguém dos tipos que o mundo oferece, para eu lembrar que não me restou ser assim mas ser assim é o que me resta.
Eu não gosto de você. É muito importante que isso fique bem claro. Não porque sou boa e não quero te iludir, mas porque preciso sempre deixar claro quando não gosto de alguém. Me sinto muito grandiosa me separando de gente assim “olha, eu sou gente o suficiente pra saber que tipo de gente eu não sou e eu não sou você”.
Mas você é bonito e de repente é só uma terça sem nada. E deixo você aparecer pra me dizer essas coisas que eu não suporto. Você lê sem absorver e vomita em mim como papel amassado, sem nenhum pouco de gosma, você não digere essas coisas que me diz. Não passam por você além de anotações de bloquinhos que despencam de você sem nunca pegar seu cheiro. Não tem nem cheiro, você parece um banho de desinfetante sem cheiro. Nada seu vem com sangue, catarro ou porra. Vem tudo branquinho e digitado e novo. Talvez um pouco amassado, pra ver se alguém se engana que você vale a pena. Você decora ser um cara interessante, mas não é.
Não gosto de você, mas porque você tem mania de segurar minhas duas mãos juntas, num bolinho que você faz, quando me abraça por trás, antes de pegar no sono. Às vezes tenho saudade de você. Você é o que me resta de vontade de ter alguém. É como se por um segundo eu experimentasse. E se fosse sempre assim, sempre esse bolinho de mãos? E ele indo comigo a esses eventos que sempre me obrigo e que sempre me sinto pisando em cacos de vidros de presentes que eu mesma quebrei. Sempre sozinha. E sei lá, mesmo eu sabendo que está bom e é como posso, porque todo mundo me olha com curiosidade lanço ela pra mim também. Há algum problema comigo? E se fosse sempre assim? Até que ele lê umas coisas, escuta outras, assiste outras. Não é um completo imbecil. E esse montinho de mão, rezar de vez em quando, ser presa de vez em quando. Sair sem fazer barulho do banheiro. Enfim, ter a delicadeza do limite de outra pessoa na minha casa. Não ser mais o cavalo pelado que desbrava sua jaula como uma criança num dia sem escovar dentes ou um cego cagado ou um bicho estranho que se dá o direito de exagerar sem lâminas. E se fosse sempre assim? Poder levar alguém no almoço do domingo. Ter alguém pra ligar quando chove e a cidade para. Ter alguém pra fazer a droga de montinhos nas minhas mãos que doem tanto. Meu corpo dói demais. Minha cabeça não para. Sempre lista de tudo, para eu poder saber, nos mínimos detalhes, todas as coisas chatas que não vou fazer. Junto tudo, boto números, pra saber do que abro mão e chuto longe e deixo voar. As coisas mas eu fico. E daí já estou presa a outras coisas todas que preciso organizar pra não fazer. Eu organizo minha impossibilidade o tempo todo. Pra saber que deixei de e não fui deixada de. De de quê? Pra ter controle do que não consigo. Eu listo minha preguiça. Eu sei de cor a chatice de tudo que tô desdenhando. E sofro porque sou a certinha da anarquia. Sempre com o cansaço de defender o lugar do meio, com tanta porrada vindo dos dois lados. O morno de ser. O quase de tentar. A corda bamba de se manter. Nem lá nem lá. Cá mesmo. Meu dente aperta demais os de cima com os de baixo. E não é charminho de gente que escreve ou sei lá que coisa. O fato é que agora que perdeu a graça sofrer pra fazer graça, sobrou só essa verdade que nem merece destaque, que nem me assusta mais, de que eu sofro mesmo. Eu sofro muito mais do que consigo sofrer. Então, será, alguém pra valer a pena colocar flores em cima da mesa?
Se eu soubesse quem é você. Se eu visse mesmo. Se você me trouxesse o veneno do mundo. Se você me dissesse coisas malucas que estão antes de tudo isso que você diz, querendo tanto estar depois. Se você pudesse calar a boca. Se ao invés dessas besteiras decoradas que você fala sem parar, pra me mostrar que lê e vê e escuta, você ficasse quieto um pouco, me invadindo do mistério desgraçado de outra pessoa no mundo. Se você fosse só bonito sem comprar roupas e cabelos e notícias que ilustrem isso. O bonito estragado. Eu queria que você fosse o bonito estragado. Mas você se melhora o tempo todo e eu tenho nojo de você.
Se eu amasse você, não poderia estar agora, que nem uma panaca, te esperando chegar, calma e alisada, o interfone tocar, você feliz, você bonito, sua boca boa de beijar. Você sem cheiro de rua, de suor, de cigarro, de velhice, de dor. Você com seu cheiro insuportável de menino bom e desinfetado. Eu com fome, jantamos. Eu como. Conversamos. Eu posso. Tenho a voz doce, me mantenho ereta, sorrio como nessas mesas de mocinhas que não sentem o desespero apesar da situação de vitrine. Com você eu posso. Eu durmo. Não tenho olheiras. Com você eu posso amar, porque não penso “olha: eu amo”. Com você eu posso sentir porque não sinto tanto que preciso parar de sentir. E é isso que me entristece. Você é uma piscina de plástico pra criança. Pra eu retomar meu contato com a água depois do trauma com a cachoeira de milhões de metros e velocidades. E eu molho os pés e posso. Você é uma via acolchoada, para eu voltar a dar os passos, depois do acidente que me deixou sem músculo desejoso. E você segura bem forte na minha mão e diz “eu posso ir com você, eu posso dormir aqui, eu posso ficar”. E eu serei eternamente grata, mas não eternamente.
As pessoas rompidas pelos amores que não puderam suportar, se juntam e seguem. Anos. Casamentos. Mãos fechadas, quentinhas. Isso não é pra mim, ainda que o oposto também não seja. Daqui a pouco, eu sozinha, cacos de vidro. Nem cachoeira e nem piscina. Eu seca. Porque só sei viver esperando ser molhada e não molhada. Molhada me resfrio, gripo, tenho medo de acabar. Seca é a espera e é como posso.
Esse tempo com você, preciso que você saiba: uma saudade imensa de quando eu lambia o diabo. O que secou minhas plantas, minhas larguras, meus líquidos. O amor bom deixa sempre a melancolia de não estar mais morrendo. A saudade do abismo insuportável de se sentir viva. A certeza de que uma hora se volta pro amor ruim, sabendo, de algum lugar que não se pode jamais interferir, que ruim não é exatamente a palavra. A palavra que não se sabe e daí chamamos de ruim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário