sábado, 2 de outubro de 2010

Jura que você sonha essas coisas? Juro

Vasculhando o porão da casa do meu pai que não ficava onde sempre foi a casa do meu pai, resgatei minha velha e amada bicicleta azul clara que nunca tive (eu podia sentir o amor melancólico, a saudade, por aquela bicicleta, mesmo sabendo que ela nunca existiu- minha bicicleta era na verdade vermelha). Agora estou guiando em ruas de trânsito intenso, calçadas esburacadas e cheias de desníveis. O trato era não pensar na bicicleta, pois quando eu pensava, caia. Mas se fizesse de conta que era algo natural, extensão de mim, podia até mesmo dar umas voadinhas (mas não podia, nem brincando, pensar nas voadinhas, seria fatal).
Era a rua do meu pai, era a rua do meu avô, era a rua da minha antiga escola, era a rua que morei no Rio de Janeiro. Eram várias ruas distantes que formavam um só trecho e eu podia sobrevoar tudo, ainda que não pensar no medo já era pensar no medo e por isso, eu achei melhor, a certa altura do campeonato, andar guiando a bicicleta pelas mãos, com meus pés bem fincados no chão. Enfim, não era mais a bicicleta que me levava mas eu que levava a bicicleta.
Preciso de dinheiro e então entro em um banco. Me esperando, deitada em cima do caixa do Itaú (meu banco é o Bradesco!!) está a Marina, minha amiga de infância. Ela está de biquíni e toma sol, apesar do teto cinza e do ar condicionado terrível que está lá dentro. Encosto minha bicicleta na parede (mas ela não para em pé de jeito nenhum) e preciso lembrar minha senha para tirar 150 reais. Meu pai aparece, quer levar nós duas pra almoçar, mas ele é meio criança também, como eu e a Marina somos agora. Eu consigo tirar o dinheiro e vem até um pouquinho a mais, não reclamo. Quando vou sair, estou de frente para o porto de Santos. Com barcos saindo a cada quinze minutos, como os aviões da ponte aérea que tanto me traumatizaram em tempos de pistas sem ranhuras e chuvas e tal. Mas agora era o porto de Santos e os guardas eram loiros e de olhares cruéis como num filme nazista.
Percebo que roubaram minha bicicleta e sinto um alívio. Nunca mais vou ver aquela bicicleta, que alívio! Mas me sinto roubada apesar de tudo e quero ao menos que o ladrão sofra as consequências. Marina e papai sumiram também. Só posso contar com o guarda de olhos azuis e bochechas gordas. Ele vai fazer uma ligação para o guarda que cuida dos barcos pois, segundo ele, os ladrões roubam mas como não têm para onde ir, embarcam. Acho bonito isso “quem não tem para onde ir, embarca”. Me perco alguns segundos nessa frase e quase quero acordar para escrevê-la na minha parede. Mas estou com raiva e quero que esse ladrão pague por ter roubado algo que eu queria tanto que roubassem mesmo.
De repente, vejo o ladrão passar guiando minha bicicleta. Ele a guia tão bem, cabelos ao vento, parece cena de filme do Nanni Moretti. Minha bicicleta vai tão melhor com ele. Mas também, eu penso: agora é fácil! Estamos no plano, temos um mar ao fundo, está sol. Para os outros, ladrões de mim, é sempre plano, bonito e tudo parece tão ridiculamente fácil. Daí que acho que os perigos e feiúras estão mesmo na minha cabeça. E corro, corro, corro, preciso socar esse ladrão até a morte. E resgatar minha velha e amada bicicleta azul clara que nunca tive e nem mesmo quero.
Ao correr, sinto uma dor, como um murro no útero. Vou morrer? Não, deve ser menstruação, alguém me fala, mas não vejo quem. Na vida de uma mulher, sempre que achamos que vamos morrer, alguma voz que nunca sabemos de onde vem, explica: não, é só porque você vai menstruar, querida.
Agora estou na sala de espera da minha ginecologista, uma das melhores e mais caras do Brasil. Eu nunca vi essa mulher na vida (o meu ginecologista na vida real é homem), mas é como se ela tivesse me acompanhado por toda uma vida, tal qual a bicicleta. Ela precisa me examinar nos próximos cinco segundos porque sinto a enxurrada vir. Em cinco segundos terei, segundo me conta uma cólica insuportável, uma menstruação que poderia inundar uma cidade inteira. E ela perde esses segundos examinando meus dentes. Ela é agora minha dentista e a reconheço. A mulher que, quando eu tinha seis anos, tirou um molde dos meus dentes e me apelidou de monstro. Isso aconteceu de verdade e agora, mais de vinte anos depois, em sonho, posso furar o cérebro dessa imbecil com alguma broca. Mas ao invés disso, imploro, me examine, por favor, em alguns segundos ficarei menstruada por dois séculos e nunca mais poderei ser examinada. Me diga que está tudo bem, por favor. Sim, eu sei, faço 90 exames de sangue 90 vezes ao ano, mas, por favor, vamos lá, serão dois séculos sem nenhum exame, então, me diz, está tudo bem?
Ela me leva para uma sala apertada e com carpete onde três homens feios e machistas (isso é uma sensação, porque não os vejo e nem falo com eles) fazem aquele teste de curva glicêmica. Eles precisam de paz, precisam de silêncio, precisam ficar tranquilos. E eu quero gritar de dor e impaciência. A minha dentista finalmente me pede que eu tire a roupa. Mas eu teria de ser examinada com aqueles três seres que odeio, do fundo da minha alma, presentes. E então, é como se todo o meu ódio, que carrego 24 horas por dia no peito, se explicasse pra mim. Tati, isso que você quer tanto entender, de onde vem tanto ódio, está aqui, na sua frente: você tem ódio de tudo e de todos porque você só quer saber se está tudo bem, mas o mundo é formado por uma falsa médica psicopata e três moribundos machistas fazendo exames de curva glicêmica. Tudo isso numa salinha com carpete.
Começo a quebrar tudo, gritar, rosnar, babar. Seguranças entram e me amarram.
Estou agora num sítio, junto com os cachorros. Aqueles cachorros que não souberam se comportar e tem sempre um amigo do amigo que dá um jeito “manda lá pro sítio do fulano”. Estou nesse sítio. Sou tão bonita, meu Deus, se eu pudesse ser metade do que sou nesse segundo, nesse sonho. Estou no jardim do rei Henrique VIII e sou a Bolena preferida. Tenho seios enormes e cabelos enormes e sou realmente a pessoa mais bonita do mundo. Todos me conhecem como a mulher cachorro que entende como ninguém os cachorros. O rei é louco por mim. Eu sou louca por ele. Mas nosso amor é proibido porque um labrador cheio de remelas comeu minha mão, justo a da aliança, e nunca mais poderei casar. E uma mulher sem marido, lá pro século XXI, pode até ser legal, virar escritora, vai saber. Mas agora, no jardim do Henri, fã secreto de Lutero, eu posso ser queimada (penso que agora que faço USP meus sonhos vão ficar metidos que só). Em compensação, com a outra mão, domo um país inteiro. Seja com carinho ou violência. Com a mão que sobra, sou mulher em dobro, pra compensar a outra mão morta (isso faz tanto sentido pra mim que nem quero explicar). Acordo com a mão morta enfiada no meio das minhas pernas. Não no sentido sexual, não quero me dar prazer nenhum porque o que sinto é tão desolador que não tiraria de mim uma gota de alegria nesse momento. Só estou agarrada em mim, só isso. Sempre que tenho medo de cair, me agarro em mim porque círculos nunca caem, só vão e voltam. Pense bem.
Percebo que acordei porque o interfone berra na cozinha, é o porteiro querendo saber “dona Tatiana, a senhora não leu no elevador que ia ter curso da brigada de incêndio? Só ficou a senhora no prédio.”
Ah, essa vida! E não é que morri queimada mesmo!

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