Como sempre se chacoalhando além do normal no sofá de couro atrás de mim (e fazendo um barulho que sempre me soa como raiva, apesar de ser um dos poucos e raros momentos em que eu não mereço a raiva de ninguém- justamente porque não apenas causo distraída mas fico ali pra sentir junto), minha analista exclamou alto, abismada como senhoras rotineiras em frente a um novo preço da banana: crueldade?
É! Crueldade! A pessoa ficar sentada na sua frente, sorrindo, sem dizer nada, sorrindo, sentada, na sua frente, sorrindo, que mais poderia ser isso?
Então ela suspirou profundo, um misto de "cansaços" de mim e ao mesmo tempo um apreço pelos bichinhos mais difíceis e ignorantes do mundo, e disse: admiração? Não pode ser admiração?
Já fui em cardiologista pra saber se é do sopro. Em gastro pra saber se é do fígado (eu continuo insistindo que não é meu estômago que dói), em psiquiatra pra saber se é falta de alguma química, vitamina, deslocamento de massa. Já fui em benzedeira. Oftalmo pra acertar o mundo. Dentista pra encaixar meu desequilíbrio em devorar e relaxar e falar e deixar. Já fui em tantos médicos. Procurar engana o tempo e talvez seja só isso.
Mas naquele segundo, quando ela disse “admiração” não consegui enganar nada e senti, com talvez um peito mais velho e mais duro (porque a dor dessa hora permitiu que eu fosse emancipada e uma vez, pra sempre) que talvez tanta coisa ruim fosse só porque era boa. E eu, querendo tanto dar conta do mundo, fui incapaz de algumas horas fáceis e bonitas. Pior: talvez minhas por um merecimento que nem tinha mais pra onde ir.
Mas depois, porque sempre volto pra casa atrás de respostas pra tudo, pensei o seguinte. Que é crueldade sim, senhora. Você gostar de alguém e só. Você se sentar na frente, sorrindo, sem dizer nada, sorrindo, na frente, e gostar. Como se dissesse: eu, daqui de onde não preciso de nada além de ser alegrado e dar a mim mesmo esses momentos de ternura e arrepios e capacidades. Gosto de você. Vá, continue passando as mãos pelo cabelo, olhe pra baixo não dando conta dessas lantejoulas todas que tenho para abrilhantar seus estados. Vá, marionete do que planejei pra essa tarde. Eu gosto de você. Eu posso sentir isso. Então, por favor, não estrague e capriche e dê valor. Porque não é sempre e quase nunca. Então, por favor, olha só, eu g.o.s.t.o de você. Tem noção do tamanho dessa plateia para cada sua pequenice? Vamos. Seja.
Estava zapeando o mundo, preguiçoso, desistente e triste. Quando...você! Vá, me alegre, vá, passe as mãos pelo cabelo.
E agradecem, eles sempre agradecem, porque sabem a arrogância que é se servir de mundo sem ter nada pra dar a não ser suas falsas capacidades de gostar. E sabem que jajá partem e, então, não custa ter essa pena benevolente e esse sorriso já menos certeza mas ainda admirando ao longe.
Apesar de soar isso sim egoísmo, não deixo de me ouvir dizendo que quem gosta sente é o desespero pra agradar e ser gostado. A urgência de mostrar ao invés de assistir. A pressa em dar ao invés dessa receptividade toda tão corajosa em acomodar.
Ao invés de sorrir tanto, não são os que choram escondidos os que mais gostam? O resto não são experimentadores de mundo, enganando a gente com espaços que não se emprestam e nem se dão e nem se são desocupados?
Olhando como se fossemos aquelas crianças no farol tentando de tudo. Num dia de não mesmice apesar da obviedade.
Então, então, as bolinhas quase caem, os olhos dele que gosta tanto de mim, caem junto. E o farol abre e vai cada desgraçado prum canto.
Portanto, agora, quando eles sorriem pra mim, sentados de frente, quietos, eu apenas pergunto, já me tirando do lugar de ser gostada: e o que você tem pra mim, afinal? E eu sei futuramente que a resposta é avassaladora, passa por coisas alheias do tipo “nada” e por coisas lindas do tipo “e nada é a boa resposta, garota”. Mas por enquanto, ainda acho tudo assim mesmo. Uma grande e triste e quase intolerável maldade. Um dia, é só o que eu quero, eu vou ficar quieta e entender tudo. Quer dizer: eu vou é querer abrir mão de entender tudo.
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