Ela era a minha melhor e mais adorada amiga. Mas ela tinha ou não me tratado mal na festa? Ela nunca me mandava tomar no cu pelo microfone, por exemplo. Nunca virava uma bacia de bosta na minha cabeça. Eram micro coisinhas, eram nuances de desdém, olhares que nunca ninguém no mundo poderia ver, eu mesma duvidava se tinha visto. Aquilo foi ou não uma frase arrogante? Ela quis ou não me ofender? Não era óbvio. Ela vinha em fumaças. Eu não entendia as intenções, até porque tudo vinha meio fanho, meio dito, meio baixo, meio com a cabeça virada pro outro lado. Nada era claro. Dito de olhos para olhos. Quando eu percebia, estavam todos rindo de mim ou vendo minha dificuldade em sair de alguma situação que ela tinha causado. Dentro de mim crescia uma defesa, um ataque, uma raiva. Vou matar essa vaca, meter a mão na cara dela. Mas eu me sentia louca em sentir tudo isso. Por que eu bati a porta do carro com força? Por que eu não dei bom dia pra ela? Ela não me fez nada! Será que fantasio maldades? Gosto de ser maltratada? Eu tenho mania de perseguição? E passava noites em claro me odiando. Será que eu sou louca? Por que tenho raiva dessa pobre garota que tanto gosta de mim e me atura e me adora e me ajuda? Será que não sei ser amada? Ou amar? Será que tenho inveja dela? Será e será e será…? Ela nunca levantou a voz, nunca fez uma crítica mais cruel, nunca me disse o que realmente pensava, nunca brigou pra valer pra fazer as pazes pra valer. Sempre fina, educada e preservada. Sempre correta, fazendo pose. Sempre do alto de suas boas intenções e equilíbrios, com piedade da amiga que se perdia e se descabelava. Ela era um prato cheio pra minha cabeça. Não existe nada mais apetitoso para alguém que pensa muito como a boa e velha tortura mental. Dissimulação é a pós graduação da punhalada nas costas.
Fiquei nessa, sem saber e mesmo pedindo desculpas, por anos. A maldade ou sacanagem ou fraqueza escancarada é fácil de afastar. Mas o que fazer com as pessoas que te dão colo e carinho e poesia? Eu acho que a vi, no lançamento do meu primeiro livro, paquerando meu ex namorado. Mas disse pra mim mesma “ela está apenas olhando pra ver se ele está me olhando, como uma boa amiga que é”. Eu achei, numa festa estranha, que ela ia toda hora no banheiro chorar, porque é o que eu queria naquela festa estranha: chorar. E ela me olhou macabra e sorriu da maneira mais muda possível. Não como uma amiga que não pode contar uma coisa pra outra porque há limites tristes para tudo, mas como alguém mau, que carrega o submundo da alma como taça para você jamais ser convidado para o esgoto. Para você se sentir um rato renegado e só por isso ainda mais rato do que os soterrados na merda.
Ela seria só mais um amor que acabou não fosse o ódio especial e insuperável que carrego pelas pessoas traidoras de poesia de mundo. Pessoas que de alguma maneira e em algum momento, me mostraram que era possível apegar, aconchegar, relaxar num mundo eterno. Pessoas que pareciam entender e entendiam essa coisa toda que me lambuza e rebusca o peito. Não preciso do que é igual e nem parecido. Falo dessa coisa, essa necessidade de poesia de mundo, essa comemoração boba e quase impossível que duas pessoas pra valer sentem pra valer quando é pra valer.
Eu fico aqui na boa, na minha casa. Acho mesmo que a vida é isso, almoçar lá na minha mãe com a Lolita lambendo meu dedão. E meu pai chega todo cheiroso. E a tarde uma boa amiga me liga pra gente ir ao cinema e nada demais. A noite alguém carinhoso passa aqui só porque fico muito mal humorada e seca sem isso. E tudo bem. Nasci com um troço aqui que ninguém entenderia mesmo e que algumas músicas e filmes e livros e crianças e bichos e cores e madrugadas e bem cedinhos, às vezes, me trazem a tona pra mim e vivo num misto de egoísmo solitário pra caramba. Uma coisa que cabe o mundo todo mas que não preenche justamente por isso. E tudo bem. Estou sempre entre o conformismo em sentir tudo isso sozinha cada dia com menos impaciência e dor e a espera gigantesca cada dia maior. Mas aí algumas pessoas aparecem e me tiram daqui e me dizem e me provam que sentem tudo isso também e que é possível que eu saia da toca aceita e quentinha. E por alguns dias ou anos, eu vislumbro atravessar uma rua de braços abertos como a gente faz só quando está muito feliz porque não é só no mundo. E alguns amigos e amores, são como o mundo dizendo que tem eco pra existir. Ser você existe! Vai com tudo!
E essa minha amiga, a irmã que não tive, era a amiga de poesia de mundo. Era com ela que eu sonhava pegar trens em algum lugar mais longe que tudo e ir pra outro ainda mais longe. Era com ela que eu sonhava, no dia que minha mãe ou meu pai morresse, tomar um café em algum lugar legal e estar tão miserável a ponto de fazer uma piada que só ela entenderia como aquilo era humano demais. E no show do Radiohead, a gente ficaria num espaço que desse pra girar tanto que o mundo pararia. E quando um amor acabasse, ainda que cada uma tenha a sua vida, a gente iria, nem que por alguns minutos, fazer um chá pra outra e dizer que existe sim algo que dê certo. Burlamos o inferno, querida, nos escondemos aqui, como irmãs pequenas, atrás do caldeirão que fode tudo, tudo vira um caldo de merda que corrói, mas nós, nós burlamos o mundo e demos certo porque o amor de verdade nada mais é que brincar de esconde-esconde levando a pureza bem a sério.
Essas pessoas me fazem tanta falta, elas não existem, mas tenho saudade delas como se todas tivessem explodido em alguma guerra terrível que dizimou o meu tipo de gente.
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