sábado, 2 de outubro de 2010

I...

Do outro lado da rua, mais moreno do que eu lembrava, vinha ele, o garoto mais bonito de alguma festa de meses atrás. Eu estava feia de doer, com uma sapatilha da vovó e o cabelo parecendo um calzone de vento. Quis me enfiar dentro da bolsa mas depois achei que não era nada demais, era o de sempre.
Eu já tinha resolvido comigo, nos poucos e breves dias em que levemente me preocupei com isso, que ele não havia me ligado pelo mesmo motivo que levaram todos os homens que não me ligaram a não me ligar: com tanta mulher no mundo, pra que repetir a mesma? Melhor: com tanta mulher maravilhosa no mundo, pra que repetir a mesma bonitinha?
Ivan, Itan, Ilan, Ivo, Ismar, Igor? Eu não lembrava o nome do rapaz, mas lembrava que começava com “I” porque quando fui até o armário do meu banheiro e vi que não tinha mais camisinha, falei “iiiiiiiiii” e ele apareceu prontamente, achando que se tratava de um chamado íntimo.
“I” me viu e travou. Sua morenice além do que eu lembrava se fez mais branca do que eu jamais poderia imaginar. Nervoso. Começou a estraçalhar com as unhas o saquinho branco que levava na mão esquerda. Eu ia dar coisa de dois beijinhos e um tapinha no omoplata, despretensiosa e de saída, quando percebi que o rapaz, ainda que livre e lindo de doer, tinha acabado de se retesar e atrapalhar todo pelo encontro inesperado com a minha pessoinha mal vestida e pior penteada.
Porque era sábado final da tarde, ia chover, eu estava sozinha de dar medo mas não estava com nenhum, acabei falando. Saiu sem querer ou melhor: querendo mais e além de mim. Porque eu tinha almoçado gostoso com uma amiga engraçadíssima e tinha livros novos me esperando em casa. Porque eu ia dormir tarde, depois de esgotar minha nova luminária de tanto saber coisas boas. Porque, enfim, eu usava meias e grampos e estava completa demais e forte demais pra ter medo de coisa comum a todos, eu acabei perguntando.
Por que você não ligou ,“I”?
Me preparei pro velho e bom ando ocupado, ando estranho, ando esquisito, ando deprê, não ando porque me atropelaram. Mas “I” só olhou para um resto de chiclete estorricado na calçada e suspirou gorda e peludamente.
Porque você disse que eu andava como alguém que esconde que já foi gordo, ria como alguém que precisa ser aceito apesar de ter nascido muito pobre, dava linguadas no ar como um sapo querendo pescar pequenos insights para impressionar mocinhas, espremia os olhos como um míope que não aceita as próprias limitações, estalava os dedos como quem tinha perdido a hora do soco, pegava como um homem que perdia perdão por ser homem, dirigia como um ejaculador precoce, mudava as estações do rádio como um infeliz que tenta até o fim, penteava o cabelo para trás como um estilista histérico, falava devagar como um estudante fritado de tanta maconha, enfiava a mão em você como um inexperiente que odeia a ex namorada, beijava como alguém que queria dormir de tédio assim que conseguisse qualquer coisa, lambia como um peão mal educado e morrendo de calor, gemia como alguém que tenta expulsar algo dos pelos do nariz, dormia como um bebê com tromba de elefante e fazia xixi como um elefante com tromba de bebê.
“I” se foi e me deixou por alguns segundos encarando o mesmo estorricado chiclete velho da calçada. Naquele momento eu aprendi três coisas para o resto da minha vida: eu era bonita, eu era insuportável e eu era uma escritora.
O mais maluco é que fiquei feliz e vitoriosa como se tivesse acabado de ganhar uma aliança de amor eterno, seja lá o que isso quer dizer.

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