quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A festa

Na sala a dupla mais improvável do mundo discutia Deus. Ele que não acreditava em quem não acreditava. Ela que a vida era um milagre divino, apesar de não existir divino. Na varanda alguém falava sobre mulheres que ejaculam. Menos de dois metros e o mundo vai de Deus a mulheres que ejaculam. E você quer o quê? Passar impune pela loucura? Quase que vai uma página do Grande Sertão pra enrolar fumo. Ce não vai ler isso tudo mesmo que eu te conheço. Depois da quinta mancha de vinho no tapete levei uma descarga tão forte na boca do estômago que foi como se tivesse me curado pra sempre de controlar tudo. Vai vinho, mancha tudo. Vai pedaço de pão esmigalhado por pisantes dançantes. Que as cinzas maltratem minha rinite nervosa até eu nunca mais ter rinite nervosa. Cansei da minha rinite nervosa. Sujeirinhas pra debaixo de tudo. Nunca mais minha casa seria limpa novamente. E eu nem quero. Eu não quero mais meu aparelho de dentes embaixo do travesseiro, pra evitar que eu me morda. Não quero mais tremer por causa do remédio pra evitar que eu trema. Não quero mais esse monte de caroço nervoso na nuca me avisando que não dou conta do que penso. Meu corpo é menor do que minha imaginação. Não quero mais ter um peso que não me serve pra nada. Só pra destruir ossos e histórias. Eu quero manchas de vinho e pedaços esmigalhados e, principalmente, usar o tempo pra celebrar tudo o que eu não entendo. Ao invés de fritar até ganhar alguma coisa. O que se ganha tentando competir com uma cara que não existe? Não quero mais tentar ser vomitada pelo monstro o tempo todo. Prefiro o quentinho de ser engolida. Sou minúscula. Prefiro ser filha do mistério do que uma mãe lutando pra controlar um filho gigante e livre e longe. Meu apartamento de 40 metros mal conforta meu ego e eram ao todo onze pessoas espalhadas pela casa. Tinha pipoca na pia e maço de cigarro dentro do microondas. Era uma sexta idiota e foi chegando um a um. Cada um querendo morrer ao seu modo. Todos cansados por pensar nisso só por um milésimo de segundo porque, afinal, é todo mundo muito normal aqui. E ser normal, pra quem luta diariamente pra isso, é algo a ser comemorado não pensando nisso. Uns fumam, outros enchem a cara, alguns vão de regulador de humor, outros comem beiradas de dedo. Eu tenho meu aparelho embaixo do travesseiro. Pro cachorro que mora no céu da minha boca não me devorar. Todos ao seu modo, juntos, pra modo nenhum. O coletivo do saco cheio tentando ter alguma vontade. O povo esfolado por brigar tanto com a vida, finalmente derrotado, dançando. Como um velório de certezas. Como uma entrega de corpos descontrolados. Uma dança da chuva pro seco do mundo. Não sabemos mesmo, então vamos dançar. Dai chegou a amiga japonesa da amiga loira da amiga antiga do amigo do meu melhor amigo. Muita gente nem tinha assunto. Eu nem gosto muito da pessoa que cedeu as batatas da perna para meus pés gelados. As pipocas não vão ficar muito tempo embaixo do sofá. É preciso não aumentar mais o som porque o interfone já avisou três vezes que vão chamar a polícia. Todo mundo vai embora. Talvez eu passe mal porque misturei vinho com ansiolítico e remédio pra dor de cabeça e magnésia bisurada e Listerine e uma saliva que não me conta nada. Talvez eu não consiga ter prazer hoje porque já acabou o efeito e já não tô mais aqui. Eu tô no amanhã cedo, limpando a casa, olhando a agenda de novo e, só pra tentar contar do meu jeito e me assustar menos, escrevendo um texto. Vai começar tudo de novo.

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