quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O ator

Estou dentro do carro há vinte minutos e ele não desce. Ligo e ele não atende. Ele sabe que estou aqui, eu disse que estava saindo. Ele então aparece, colocando o cinto na calça. Vejo um pedaço da barriga. Ele entra no carro e aperta meu braço. Eu vejo um pedaço do calcanhar. Eu vejo um pedaço da nuca e ela está vermelha, coisa de quem se enxugou rápido porque ficou enrolando pra tomar banho. Eu tenho um impulso de enfiar minha cara inteira dentro da camisa dele pra cheirar o centro do seu peito. Onde mistura o cheiro do amaciante, dos pelos e do desodorante que parece ter o cheiro das testosteronas dos deuses. Quando se está com um homem assim, eu lembro "meu deus, como eu gosto disso". Eu não gosto de trabalhar, eu não gosto de mais da metade de tudo que eu como, eu não gosto de falar ao telefone, eu não gosto de ser paquerada, eu não gosto de festa de família, eu não gosto de acordar, eu não gosto de pagar conta, eu não gosto das minhas roupas, eu não gosto de 80% dos papos que as pessoas querem começar comigo, eu não gosto de colocar o umbigo nas costas na aula de yoga, da minha vizinha que está sempre berrando com alguém ao telefone, eu não gosto da louça, do pessoal que me pergunta como faz pra trabalhar num sei onde, de listas de presentes. Mas eu gosto disso, eu vivo pra isso, eu acordo pra isso, eu trabalho pra isso, eu tomo banho pra isso. Isso é: esse momento em que eu coloco minha cabeça numa caixinha e sou inteira um animal predador que pode matar pra ter o que comer ao final. O cabelo dele é muito cabelo. Ele tem uma covinha na expressão da boca. Não é onde as pessoas graciosas tem. É na expressão do sorriso. Ele parece desenhado por alguém minuciosamente grosseiro. Ele então começa seu festival de me adores. Ele é ator. E começa então com seu festival de me adores. Ele quer ser adorado. Ele tem mulheres mais bonitas e o que tenho de melhor ele nem tem muita capacidade mental pra valorizar. Mas ele sabe que tenho algo diferente e que é legal ser adorado por uma garota que tem algo de diferente. E eu o adoro. Ele fala sobre o horário da madrugada que acordamos com um frio no estômago. É um texto que recebeu e tem que decorar para uma leitura. Ele não consegue explicar nada sobre o texto. Ele me pergunta porque almoçar é com ç e almocei não. E isso, dito por um deus grego, me parece um tratado profundo sobre a humanidade. Não importa, amor. Basta saber que seu gigantesco ombro ultrapassa os limites do banco do carona e vai o caminho inteiro roçando em mim. Ele se demora no cardápio. Ele adora as refeições semanais nas quais uma garota com olhos enormes pra cima dele, presta atenção quase que religiosa a tanta baboseira. Ele conta em detalhes sobre a peça e a outra peça e a novela e o filme e as famosas todas que ligam pra ele o tempo todo e os produtores e esse papo que nunca quer dizer nada a não ser sobre ele próprio enquanto ator. Eu escuto nononononononononono. Não, não é isso. Eu escuto música clássica. E torço para que o tormento acabe logo. Vamos logo pra casa. Me conte tudo isso pelado, que tal? Eu juro que escuto tudo, dou minha opinião e de repente até te escrevo uma peça inteira na qual você, nu…Eu só penso nele pelado. Ele é uma linda moça chata e eu um macho encantado pelo filme mais lindo do cinema mudo. Enquanto ele tenta concluir frases, eu me pego pensando "se ele não quiser ir pra minha casa, não vou pagar a droga da conta. Se ele não quiser ir pra minha casa, eu vou tentar no carro e eu…eu vou ficar louco se ele não quiser ir pra minha casa". A ereção da mulher é ainda mais forte porque não tem fim. É no buraco da existência. Ele pede o décimo café e quer falar mais e contar mais. E encosta em mim, gosta de sentar colado, e fala ao meu ouvido, e mexe no meu cabelo. Me adore, eu sou ator, me adore. Sim, querido, muito, muito. Em casa, ele deita no sofá, sou sempre eu que tenho que começar tudo. Eu que faço a massagem, o carinho, eu que mordo, assopro, lambo e mais esse monte de coisa. Quase tenho saudade da entrega perfeccionista que só os feios e os pobres têm como qualidade. Mas passa rápido. Ele pede, reclama, dorme, acorda, pede mais. Sim, querido. Deixa tudo comigo, apenas exista. Pessoas como você apenas precisam existir e nada mais, pessoas como você podem tudo, até escrever almocei com ç. Aliás, você tem razão, almoçei é a coisa mais linda que já vi na minha vida.

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