quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Na fila do supermercado

Quando ele colou meus livros na boca eu entendi que era uma maneira de encostar em mim sem encostar em mim. Ele tava de ressaca de pinga e eu de tudo. Não era pra gente se beijar. Apesar de eu estar fazendo bico sem parar, uma mistura de vontade de chegar mais perto com vontade de me proteger.
Ele se desculpava pelo cheiro e pela cara feia. E eu não desculpava nada. Era tudo tão bom. O cheiro e a cara feia. Tudo tão bom e nada feio. Seu nariz ganhou o prêmio de melhor coisa do ano. Eu disse e ele riu. E já que ele não trouxe a gaita, que pelo menos fizesse a dancinha pra mim. E ele quase fez mas foi mexer nos meus livros e eu tive a idéia de emprestar meu amado Martin Page só pra depois ter desculpa de pegar de volta. E ele topou. É um livro sobre como tudo é insuportável e a gente quer morrer mas de repente tudo fica incrível e a gente quer viver. E ele entendeu. E melhor uma das primeiras visitas pra minha casa nova não podia ter. Mas já? Já? E então ele tomou minha água de coco e foi ficando melhor. E eu fui ficando melhor. Ressaca passa. É isso, simples. Você pensa que vai morrer, mas passa.
As mulheres não me aguentam porque sou muito desligado. Ele disse. Os homens não me aguentam porque sou ligada demais. Coisas soltas ditas enquanto ele me contava que tinha o pôster do “Homem que amava as mulheres” igual ao meu e gostava de House. Você vai na minha casa um dia? Claro. Você vem na minha de novo? Claro. A gente vai se ver o ano que vem? Claro. Adoro coisas claras. Mas já?
E então ele pediu dedicatória e eu comecei a chupar a caneta. E ele continuava encostando meu livro na boca. Até que a gente percebeu e deu risada. Essa coisa é mesmo absurda. Mas já? Tô achando minha dor duvidosa, porque agora, por exemplo, não tenho dor nenhuma. E ele riu e disse que também não tinha dor nenhuma naquele momento. E quando ele riu, eu percebi. Eu percebi que eu estava na merda. Porque adoro esses caras que dão risada com a cara inteira mas continuam com os olhos um pouco tristes e parados. E adoro que a ressaca dele não permitia muita emoção e por isso ele fechava um pouco os olhos e ficava quietinho. É impressionante como eu não gosto de ninguém mas, de vez em quando, escapa um momento, um gesto, uma pessoa perdida e linda e única. E eu fico nessa felicidade de ser uma pessoa boa e capaz dessas coisas boas.
E então eu contei pra ele que não fumava e ele que já tinha tomado drogas pesadas com aquele cantor fodão que faz as mulheres ajoelharem. E dos amigos que morreram e tudo muito rock and roll e achei divertido se é que se pode achar isso. Eu nunca namorei escritoras. E eu que nunca namorei. Acho. E então falamos do melhor japonês do bairro e do melhor livro do Philip Roth e ele confundiu Quarto do Filho com filho do quarto e quase falou mal do John Fante e de repente tudo ficou tão bem, tão bem. Mas já?
Todo mundo é um pouco triste e um pouco louco e já estava muito tarde. E na televisão tava passando um filme brasileiro idiota. E ele imitou viado pra mim, porque achei o fim do mundo ele ser um comunista rock and roll que fala francês e gosta de coelhinhos. E tudo era legal, tudo, qualquer coisa nele é tão legal. Vai da camisa até o nariz. E do jeito dele falar até o tempo todo que ele fica quieto. É tudo tão legal. E a força que saia de dentro dele aquele dia e agora ele sem forças. E tudo forte e ao mesmo tempo eu quase com sono e calma. E de como ele fala de coisas terríveis quase sorrindo. E de como ele diz que me liga em meses e liga no dia seguinte. E de como ele chegou até aqui completamente bêbado e completamente bom moço. E de como ele disse, da maneira mais sensual do mundo, que queria, um dia, fazer sacanagens meigas comigo. E eu perguntei se eram bregas, os textos. E ele disse que eram no limite, porque ninguém diz verdades sem ser. E nada disso me descontrolou porque a voz dele é quase uma meditação. E ele disse que precisava me contar uma coisa que ia me deixar triste. E eu disse vai com tudo. E ele disse que não tinha nenhuma música falando “na fila do supermercado”. Eu tinha imaginado tudo. Era outra frase, era outra coisa, eu tinha imaginado tudo. É isso que eu faço, baby. Eu imagino tudo. A sua profissão é escrever para os outros imaginarem, a minha é imaginar para eu escrever. E ele me achou inteligente e eu adoro isso porque é um tipo de sexo que se faz que não enlouquece e nunca sacia. E ele ficou melhor e foi embora. E eu fiquei melhor e voltei. Não quero mais morrer, eu só quero meu livro de volta. Viver é bom demais.

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