quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Exodus

Tomo um remédio chamado Exodus. Um antidepressivo pra quem tem problema de pânico. Eu tenho problema de pânico. Por pânico entendo momentos em que tive a plena certeza de que iria desintegrar em praça pública, nua, e pessoas enviadas do inferno tirariam a minha pele com giletes podres para vender numa feira macabra. E eu estava apenas comprando pão na padaria ao lado de duas senhorinhas e uma criança.
Sim, eu tenho esse problema. Não tenho orgulho, mas também não tenho vergonha. Só acho, confesso, que susto pela vida não dá em gente besta. E eu sou bem esquisita mas definitivamente não sou besta. E apesar de viver dizendo que não, gosto pacas de mim quando consigo.
Não é sempre que a coisa dá, mas é como se fosse: o pânico é um eterno medo do primeiro pânico. Você passa inexplicavelmente mal (ou muito explicavelmente se quiser entender) uma vez e depois apenas convive com a certeza de que pode, uma vez que já pode, quase não morrer novamente. E de fato a coisa volta. E volta. E volta. E quando não volta, simplesmente está. Quem tem a coisa estranha, tem a coisa estranha sempre, a diferença é que quando estamos ou queremos estar bem, viver distrai. E pra mim, aprendi recentemente, viver é exatamente isso: se distrair do medo que dá pensar em viver.
Enfim, durante muito tempo não sai de casa sem minha cartelinha de Rivotril sublingual. Pra ir do quarto até a cozinha de casa eu levava uma no bolso. Mas as coisas melhoraram e eu simplesmente não tenho mais cartelinhas de Rivotril. Fiquei apenas com o Exodus, uma vez ao dia, 10 mg, depois do café da manhã. Há meses sem brigar com mamy, sem brigar no trabalho, sem brigar no trânsito, sem querer esfaquear mocinhos (a não ser quando eles realmente merecem), sem ter medo de velhinhas esquartejadoras na padoca da esquina. Não posso negar que o tal do Exodus me faz bem. Até a manhã de hoje, em que o danado do remédio simplesmente acabou sem o meu planejamento.
Tudo bem, algo aparentemente fácil de resolver. Era só ligar pra psiquiatra e pedir uma receita. Ligo, ela atende, celular falhando: “não estou no Brasil”. Tudo bem, fácil de resolver, era só ligar pra minha amiga pediatra. Ligo, ela atende “eu tenho uma receita médica com dois peixinhos dando um beijo, tudo bem?” Acho que não. Melhor não, né? Sei lá, tomar um remédio com nome de disco do Bob Marley já é humilhação suficiente, não preciso de uma receita com peixinhos apaixonados. Nem aceitariam, acho. Tudo bem, fácil de resolver, eu tinha que ter tomado o remédio às dez da manhã e já são duas da tarde, mas o que não me falta é amigo doido. Ligo pro V. Você vai ao psiquiatra hoje? Ele fica puto “por quê? Você acha que eu deveria?”. Não, esse tá pior que eu. Tento o K. Você tem algum amigo médico? Ele fica puto “pô, Tati, já te falei que se você quer um cara rico, mercado financeiro é muito melhor que hospital”. Não, eu quero uma receita, mas deixa pra lá. Tento meu ex namorado que trabalha num prédio com 45 psiquiatras, mas quando escuto a voz dele, começo logo a fazer piada nervosa e não me explico direito. Algo sobre uma receita, sobre um remédio, sobre o Bob Marley, sobre minha vagina. Perai, me perdi um pouco. Ele não entende, mas ri, e eu preciso mais do que nunca do Exodus acalmando meu sangue. E agora? E agora? Tento minha mãe, mas o que minha mãe tem a ver com isso? Nada. Mas por via das dúvidas eu sempre tento a minha mãe. Tento minha analista. Ela não atende. O mal de não ser louco de verdade é que meu tratamento nunca é VIP. Eu sou só uma esquisitinha mimada que esqueceu de pedir a receita do remédio do cagaço. Mas nada disso importa, eu preciso do remédio e pronto. Pra sentir a falta da química enjoando meu sangue e dando vazio no centro da minha cabeça ainda demoram três dias, mas psicologicamente falando, já estou tonta e com o coração disparado. Se eu pagar mil reais, será que o farmacêutico me vende?
Lembro de um leitor neurologista, que me escreve umas obscenidades de vez em quando. Me arruma uma receita, Fulano? Arrumo, mas você tem que vir pegar em casa, umas onze da noite. O Exodus tá valendo a prostituição? Não. Não tá. Então o quê? O quê?
Às sete da noite, depois de tentar todas as ideias possíveis (inclusive, comprar uma caixa deixando minha carteira de motorista na farmácia até conseguir a receita com a minha psiquiatra na próxima terça-feira) já estou engolindo cinco litros de água por minuto e tremendo mais que dependente de drogas (ops!). Ligo então para uma clínica ortopédica que fica em frente ao meu trabalho. Preciso ir aí agora, entende? Agora? Você fraturou alguma coisa? Sim, o cérebro. Preciso ir agora. O doutor Alê me recebe. Eu tenho vontade de abraçar o doutor Alê. Vou direto ao assunto: eu tenho lordose, escoliose, cifose e o dedão do meu pé pode ser seu mestrado em ossatura extraterrestre, mas eu vim mesmo porque preciso de uma receita de antidepressivo. É feio fazer isso, eu sei, mas muito mais feio é ter medo de gente na padaria, entende? Doutor Alê faz a receita pra mim, Exodus, 10 mg, duas caixas, me olha, sorri, amigo: “sabia que pra homem esse remédio funciona pra ejaculação precoce?” Pra mulher também, doutor Alê, ansiedade é um gozo tão prematuro de felicidade que parece tristeza. Mas eu chego lá.

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