quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Os arrasadores de playground

A camisolinha azul clarinho que imita seda. Perfeito. Falso, ela nunca dormia assim. Dormia de camiseta qualquer que protege o peito sem enforcar e sem calcinha. Mas queria fazer bonito já sofrendo em saber que “fazer bonito” era fatal. Não deu outra. Deitou na cama, odiando a camisolinha azul e o pânico começou. Calma, é fácil. Basta ir ao banheiro e enfiar o dedo na garganta, basta abril todas as janelas, basta enfiar o dedo na terra de alguma planta lá fora e sentir que não se está tão fora do mundo assim, tem terra, calma, você está no chão, você é desse planeta, isso de ser você existe, calma, volta balão, volta, calma, existe isso que você sente, existe ser você, quantas pessoas no mundo simplesmente não aguentam? Muitas. Então, não aguentar ser humano, é humano também. Calma. Basta ligar o chuveiro pra ninguém ouvir os sons de quem é bicho e não retêm comidas em geral. A do restaurante e o resto todo que tava impregnado no seu corpo. O outro dentro de casa. O pinto do outro apontando direções, os pêlos perdidos pra sempre em meus cantos, suas mortes masculinas em meus espaços neuróticos. Os passos independentes em meu próprio chão. O outro que traz livro de inglês “você precisa melhorar”. Onde ela estava com a cabeça que deixou alguém entrar assim na sua casa, com regras para que ela se tornasse alguém para outro? Dentro de sua própria casa ser para outro? Ela fazia listas há 30 anos pra nunca esquecer de como queria ser pra si, nunca conseguindo exatamente, e agora, seria para outro? Mas ainda não deu tempo, entende? To quase ficando reta, mas ainda olho assustada meus pés. Ainda arqueada, ainda redonda. Não posso amar de pé mas não existe amor sem coragem, entende? Então não queira que eu te receba de cabeça erguida, pra te pensar sem deixar cair, sem essa dor enorme no pescoço. Meu peito ainda é semi círculo em busca de se fechar em si e em busca de não se fechar em si então, talvez, seu soco me coloque no lugar mas, mais provável, sua mão saia do outro lado e nunca mais eu possa. Há 30 anos o medo de se perder e doer e agora quase que uma obrigação de se perder para não doer? O que é que dói afinal? Novas listas ou apertar as linhas da própria lista pra caber? O que são duas pessoas? Ninguém me ensinou isso. Meu Deus! São quatro da manhã! Eu aprendi muitas coisas nesses anos. Eu provavelmente (não) amei mais do que você. Mas nunca o que são duas pessoas! O que são duas pessoas? Não, não, tanta coisa. Um milhão de pensamentos numa cabeça que já diminuía até virar um grão perfeito pra explodir e ninguém nem sentir falta. Que barulho minha insuficiência poderia fazer? Existe alguém socorrer o que não tenho? Existe pedir ajuda pra simplesmente fazer de conta que nada disso acontece? Existe implorar pra parecer que não tô nem aí? Existe emprestar pernas e peitos para correr com as minhas de forma a não dever nada? Existe ir embora da minha própria cama? Existe sair do meu próprio peito? Existe tirar você daqui de dentro, vomitar você, matar você? E tudo isso só porque, vai ver, esse medo todo é justamente que você saia? Que é isso? Como posso precisar tanto no mesmo instante em que não suporto não ser só minha? Um milhão de coisas que cabiam tanto que ela não suportava, mas a sensação de que não se podia nada.
Ela dá um pulo da cama. Chega. Quero que você vá embora agora. Mas são quatro da manhã e eu não tenho pra onde ir! Desculpa, mas eu preciso te contar uma coisa, não se assuste (ela diz isso torcendo muito para que ele se assuste muito e pra sempre): eu tenho uns lances de pânico. E prefiro ficar sozinha quando eles vêm. Então, por favor, me desculpe, mas você precisa ir.
Era super honesto, mesmo. Ela morreria se não agisse assim. Sabia que dar o troço era picuinha de quem experimenta estragar tudo pra chamar a mãe, mas depois do troço dado, virava a doença mais velha e adulta e forte e séria do mundo. Antes eu tava me sentindo tão viva que quis dar uma morridinha, mas agora, no nível mais alto de estrago mental, eu posso morrer de verdade se não voltar pro silêncio e pro mundo onde só eu vejo como é ser eu. Assim que ele saísse, o ar voltaria, a terra da planta, a vidinha de merda que espera por ele. E ao esperar por ele, era terra conhecida, era espaço, e ela poderia só dormir como mulheres normais passadas pra trás ou jamais retiradas. O sono lindo de quem não consegue e nunca foi tentada. Agora, isso, isso não. Ser uma mulher com a responsabilidade de dormir sem sonho? Como são duas pessoas? Como é dormir de alma cheia? Existe? Alma cheia não serve pra pular e gritar? Alma cheia sossega? Alma cheia não serve pra pular e gritar? Alma cheia sossega? Alma...o amor é uma dízima periódica até que não suportamos e nos tiramos da tomada de um mundo além da terra da plantinha lá fora. Aterrissar. Aterrissar. Vai embora, por favor. Tira seu avião da minha nuvem que eu preciso cair.
Eu só queria te ajudar, ele disse. A coisa mais linda de se ouvir, mas ela sabia. Ninguém quer só ajudar. As pessoas querem provocar, foder, maltratar, ensinar, desistir, recuperar, judiar, apertar, trair, enjoar, odiar, rasgar, largar, trocar, mudar, se ajudar. As pessoas querem, sobretudo, alguém que seja forte o suficiente pra transformar o sadismo do amor em perdão. Mas ela não sabia perdoar isso, ainda. Ainda que perdoasse sempre que conseguisse mandar embora. Então, agora, podia. Mas queria, um dia, amansar o amor que só é com o ódio de mil anos, queria sentir o amor que pode se esquecer um pouco do que é. O amor menor. Sentir o amor que não te sacode de horizontes confortáveis e fazem vomitar cada órgão. A inundação interna aterrando tudo. Quem é que dorme? Os burros. Pois então eu queria o amor dos burros. Amar como um pastel e só por isso, poder dizer “ah, durou coisa aí de uns quatro, cinco anos”. Queria sentir o amor que dorme ao lado, come, faz piada de banheiro. O amor menor. Dos casaizinhos que viajam para quartos pequenos de pousadas vagabundas e dividem cheiros de bosta em meio a declarações de uma vida inteira. O amor sem a arrogância do amor. Sem retirar o diamante que forma no fígado e sair escoando-se para se gabar. Olha lá o que formei em mim. O amor dos que ficam quietinhos sabendo que podemos mesmo gerar coisas lindas, todos podem, que grande coisa se todos podem. Mas ela não. Arrogante demais para não alardear o diamante ao ponto de contar primeiro aos ralos porque ninguém bom suporta o peso da vaidade. Queria o amor dos que podem corar e flanar e tomar milkshakes. O amor dos espertos, afinal. Queria mesmo? Não, nem isso e nem a camisolinha azul. O que ela queria? Os amigos pra boa música, bons restaurantes, bons livros e bom sexo oral. Que nada significam na manhã seguinte a não ser quando deixam um prato sujo na pia e dá preguiça de ver os restos do que não era pra deixar nenhum. Era isso? Talvez. Saudade deles? Talvez. Até porque são apenas ela. Não são eles. Não se imprimem como seres, são apenas extensões tranquilas de coisas que ela pode. O carinho sem terremoto, os amigos ausência de terremoto, o vazio da emoção permitindo permanecer. Assim sabia ser duas pessoas: duas pessoas que queriam ser duas e matavam o tempo com outra que também queria ser duas. O um tão inteiro que ficou duro brincando de ser quatro fantasminhas. Cada um sozinho ao lado do outro. Assim era possível dois. Antes do Rivotril fazer efeito, ela enfia a mão embaixo do travesseiro ao lado, geladinho. O espaço vazio, no escuro, só dela. Era isso, mas isso, na vida mesmo, tem a simbologia do quê? Do fracasso? Do “não ainda”? E se for do nunca? Tem tanta resposta, tem tanta pergunta, mas agora elas cabem porque ele foi embora. Sente até amor antes de apagar por horas. Mas fica na dúvida se é por ele ou pelo remédio que a derrota. Ama quem a derrota e esse é o ultimo sopro que ainda dá tempo de ouvir antes de se entregar. Enquanto não ao amor, ao Rivrotril. Então era isso? Mas o remédio eu compro então sou eu quem... Quanta besteira. Enquanto ela dorme, se der, que venham anjos zombar de seu ego solitário, picotar suas listas. Que venham anjos brincar no seu playground arrasado pra tentar recuperar algo. Ainda dá tempo de tentar te amar sem saber e sem poder amanhã? Porque antes de apagar, na última caixinha do fundo da última cabeça que ainda faz a última força, fica a voz dele “eu só queria te ajudar”. Então, talvez, mas esse talvez cansa tanto porque sua covardia é um João bobo que sempre volta pra apanhar mais. Ahhhhhhh o sono. Quando ela acordar, um mundo de coisas que ela pode, mas sempre menos do que poderia.

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