Eu vivo no banheiro da estação molhando a nuca quando está calor. No meio de centenas de esperas que não são minhas mas me esquentam. A moça que vende bilhetes é minha mãe. O cara da catraca meu amor. Sempre muda o cara da catraca. Mas eles se parecem justamente porque sempre mudam e porque são apenas o cara da catraca. Meu pai vende coisas coloridas de brincar e de sujar a língua aqui em frente e as crianças se distraem e sobrevivem. Meus amigos são os do vagão de antes e de depois. Os mais amigos, agora, são sempre os que acabaram de chegar. Tem gente feia, gente bonita, gente assustada, gente com sono, gente no meio de gente. Eu só olho e tento tocar nessas sensações, mas nunca sou exatamente nenhuma delas porque há muitos anos eu não tinha tamanho para ser e assim acostumei.
Eu olho sempre pro relógio gigante que fica bem no centro do meu quarto. E sei que todo dia ele passa, sempre às cinco da tarde. O trem pra sempre. Eu corro junto, ao lado, por um tempo, mas canso já morrendo de rir. E fico feliz que não foi dessa vez. E fico feliz de ter chegado perto. Já senti como é o cheiro de dentro. Já experimentei sentar na janelinha com ele parado. Já me imaginei embaixo, esmagada. Em cima, surfando antes de pegar fogo. Sei todos os ângulos de ir, mas vivo no lugar de quem fica.
Estou na estação há tanto tempo. E sempre tem gente chegando e indo. E sempre tem amor e bala e dinheiro e cama e água e fins de tarde bonitos e brinquedos e catracas com a segurança de uma novidade de sempre. Em alguns momentos fica o equilíbrio terrível de nunca ir. Fica a dor terrível de todo mundo que foi. Fica a ansiedade terrível de todo mundo que tem pra chegar. Agora. Agora. A cada volta de uma piscada eu tenho minha esperança renovada. Mas nenhum desses silêncios chega perto do som que é viver ouvindo o mundo se locomovendo enquanto só tento enxergar de olhos bem abertos sem me mexer. Estar no centro do barulho nunca foi realmente uma solidão. A troca é tão bonita porque sorrio achando todos tão corajosos com seus ternos e pastas e pressas e chegadas e “que mais”. E eles sorriem de volta, me achando corajosa também em ficar. E só olhar. E poder amar esse trecho de vida deles ainda mais do que eles próprios que nem se percebem em trechos.
Eu vivo na estação porque peguei carinho pelas placas e sujeiras e as faxineiras cedinho tirando os estragos do mundo na minha casa de passagem. Acho tão bonita a sensação de estar no único lugar onde se pode estar com todos e esperar por mais um trecho de todos. Sei que não escolho nada, não sigo com ninguém, não conheço outras idades e lugares e gastrites e ventos.
Eu sou uma estação, é isso. Assim não dói além porque eu sei, desde o começo, que sou passagem. Então, vão, mas logo apita de novo. E é sempre movimentado, mesmo quando apagam as luzes e a vida dos outros descansa da minha parada. Existe o movimento que fica atrasado no ar e durmo embalada por tanta coisa que quase parece coragem.
Até que hoje, não sei se porque enjoei dessa casa da infância, não sei se porque às vezes o amor é mesmo mais forte que mil anos de segurança. Eu pisei tremendo na escada e o homem da catraca era tão diferente de todo mundo e, pela primeira vez, as placas e mulheres do caixa e bilhetes e pessoas e brinquedos coloridos e apitos e fins de tarde e moças da limpeza. Ninguém tentou me agarrar porque era como se o mundo dissesse “acho que são cinco da tarde e uma hora você precisa ser mulher”. E eu pedi socorro. Eu não sei sair daqui mas quero ir com você. Eu tenho cinco anos de idade mas quero ir com você. Tudo me dói tanto e eu tenho tanto medo mas tudo bem, vamos lá. Na próxima parada só me lembra que é bom eu fazer xixi e comer alguma coisa porque tô te achando tão bonito que talvez eu esqueça.
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