quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A bobeira

Quando eu era criança, no meio da noite, às vezes eu escutava um sopro bem dentro da minha cabeça. Vai me dar a bobeira, eu pensava. E a bobeira dava. E eu ficava sem saber se a bobeira já tinha dado (e por isso eu pensava nela) ou se eu pensava na bobeira e ela dava. Eu mandava na bobeira ou ela mandava em mim? Se eu mandava nela, como obedecia?
Ter a bobeira era a pior coisa do mundo, mas era também uma honra. Eu lembro direitinho de olhar as outras crianças -e eu sempre lembro delas descalças e comendo cachorros quentes e dormindo suadas- e pensar: elas não têm medo da bobeira porque são bobas. Não entendem como é louco isso tudo aqui. Caramba, pense bem. É bem louco, não é? E pronto. Eu começava a tremer e queria vomitar e tinha certeza que não saberia viver. Eu nunca saberia viver. Nunca. Crianças só precisam pedir pros pais, não é? Como se vive, mãe? Tá, agora já posso ir brincar? Mas eu não, eu realmente pensava 24 horas por dia nisso. Em não saber viver. Se criança eu não conseguia, imagine adulta. Adulto ainda precisa cuidar dos outros. Mas como? Eu nunca vou conseguir. Mas passava, tinha prova, tinha menino bonito, tinha cansaço, tinha filme. E isso era viver e saber, mas eu não me dava conta. Nem hoje, se bobear. Dali a pouco, voltava. Eu passei mais de 60% dos segundos da minha vida assustada. Muito assustada. Mas rindo, mas fazendo todo mundo rir. E por dentro, um poodlezinho com medo da tosa. Fofo e fresco. E afiando dentes na madrugada caso me tirassem os pêlos bem no inverno. Você precisa ser menos agressiva, poodle. Ah é? E quem me garante então que não vão me arrancar os pêlos bem no inverno?
Eu posso explicar melhor agora que sou adulta. Apesar de continuar com o mesmo medo e com o mesmo respeito pela bobeira. Não, o mesmo medo não. Eu já sei que sei viver. Com ela. Não com medo dela chegar ou com medo dela ficar pra sempre. Mas com ela, sendo ela, sendo a bobeira, sendo o tremor, sendo o enjoo, sendo minha vontade de sempre ir embora. Mesmo ficando porque a gente ficou, pense bem. Não tamo aqui? Eu posso explicar melhor. Se depois do orgasmo você precisa de uns minutos abraçada, pro mundo não virar a coisa mais absurda do mundo e você ser engolido pelo buraco negro no asfalto de frente pro meu carro (eu sempre sonho isso). Depois da bobeira você precisa é de um útero. Porque ela é o orgasmo do mal. É o prazer que não se pode ter porque não te coloca no mundo, te tira. Não te aproxima de aconchego alheio, mas do inferno próprio. E o que é isso? Tentei algumas vezes. Para psiquiatras, analistas, neurologistas. É tipo assim ó: de repente, eu preciso ir embora, entende? Rápido, correndo. Por que o quê? Como assim? Porque eu morro, sei lá. O supermercado é terrível. Se você pensar bem, a obrigação das duas horas de um filme, pode ser terrível. E sentar retinha na cadeira do restaurante pra fazer alguém gostar de você? E o nariz, a gente tem nariz, entende? Cara, somos meio alaranjados e temos nariz. Nariz é estranho de doer, não é? E você beija uma pessoa, dai você lambe uma pessoa, dai essa pessoa dorme com você e, dali uns meses, o quê? Não sei, sumiu. Sumi. E segue-se.
Mas aí começou a piorar muito. Tipo todo mundo se divertindo na sala, e eu pensando: duas quadras, carro, três quadras, casa. Eu aguento. Eu posso aguentar. Duas quadras, carro, três quadras, casa. Tem mato, tem árvore, tem passarinho, tem filme 3D, tem passagem pro mundo inteiro, tem elevador com dezenas de pessoas que conseguiram tomar café da manhã, tem suco de laranja, tem nariz, somos alaranjados. Duas quadras, carro, duas quadras, casa. Eu aguento. Eu só preciso colocar isso aqui embaixo da língua. E mais um porque tá demorando. Talvez mais meio, porque tô cansando. E pronto. Só daqui 12 horas abrir os olhos e pensar como tudo fora do quadrado da minha cama me dá pavor.
Daí comecei mesmo a piorar. Tipo: padaria você consegue, vai! A bobeira, que muitos chamam de síndrome do pânico, é como sofrer um acidente e perder os movimentos da perna. Seu cérebro está aleijado. Não adianta correr meia maratona. Não adianta pegar um avião pra Nova Iorque. É padaria mesmo. Aos poucos. Ir à padaria é como fazer fisioterapia pra perna acidentada. Um dia a padaria do bairro, outro a padaria do outro bairro. E pronto. Você consegue ficar na sala com as pessoas sem pensar: duas quadras, carro, três quadras, casa.
Agora tomo um remédio de manhã. Que engulo como se fosse uma vitamina meiga que a natureza fez brotar pra mim de uma frondosa árvore outonal. Nem sei o que tô escrevendo, mas sei que não me parece química, de verdade. As pessoas falam pra mim “larga essa merda”. Segurando seus copos de bebida, seus cigarrinhos de mato, seus vícios todos, suas manias, suas madrugadas fritas, seus dias fazendo de conta que não é assim, seus Ipods, phones, pads. Quem é que larga essa merda? Que merda? A vida. A bobeira? Não largamos, nunca. Vamos como der. Algumas vezes de muletas, algumas vezes mutilados, algumas vezes sem nem poder tocar direito o chão. Mas vamos. Mais perto. Primeiro até a padaria. Mas falta pouco, muito pouco, para padarias na China, pois estou melhor. Mesmo. Ainda procuro sentar perto das saídas. Ainda suo um pouco frio pra viajar sem meu carro. Ainda pergunto, sempre, aliás: e se eu precisar ir embora, onde é? Mas melhor, bem melhor. Já até como na padaria.
Eu senti meu cérebro romper. E toda vez que penso nisso, eu choro um pouco. Porque, cara, eu sempre achei que a bobeira mandasse em mim. Que minha mente, essa filha da puta, mandasse em mim. A soberana. Mas no dia que eu senti, de verdade, formigar pra todo lado. E algo que não era o poodle afiado disfarçado. Não era ninguém além disso. Eu fui lá e falei, olha, cara, eu quero um remédio aí pra ansiedade porque, na boa, eu preciso de ajuda. De verdade. Nesse dia eu vi que a mente é como a perna. O joelho estraga se você fizer os exercícios errados. E fritar é foder o joelho do cérebro. E se o cérebro é só um joelho, então o quê?
Nada. É isso. Um dia, você descobre e está salvo. Nada. Viver é só esse mistério mesmo. Não tente respirar mais rápido que o mistério pra tentar chegar antes dele. Respire passos pra trás da vida e isso é só o que dá pra fazer. Ela ganha e ponto final. Ela ganha, mas a gente se diverte pacas com isso. É tipo estar numa festa linda, você conhece alguém pra amar, você pula meio de pileque na piscina, você nunca se esquece. Mas a festa era de outra pessoa que, gentilmente, te convidou. Não tente roubar sua casa, sua comemoração grandiosa. Apenas bata palmas na hora do parabéns e aceite o convite da vida.
Não dá pra entender nada. Mas é isso. Temos um nariz, somos alaranjados. Com calma, que agora consigo ter (por causa do remédio, sim, mas também porque precisei ter medo de supermercado pra não ter medo de super qualquer coisa). Com calma, você repara. E não é ruim. Com calma, não se vê lá fora o assustador borrado da velocidade. Se vê como é. E não é tão feio. E até o feio, tem seu valor. É só isso. A vida. Com calma. Mil quadras do carro e três mil quadras de casa. Só a vida. Uma linda e magnífica bobeira.

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