Estou numa mesa de restaurante com meu chefe e meu dupla. Almoço importante pra decidir o lançamento de um novo celular. Quero um suco de abacaxi, mas lembro que a última vez que estive nesse restaurante, o suco veio aguado, amarelado e com gosto de abacaxi velho. Penso em voz alta, ao que parece, pois, ao fim de minha lembrança, todos estão sem graça na mesa e o garçom me olha feio “faço questão de te trazer um suco de abacaxi delicioso por conta da casa”. Certeza que vão sacanear meu suco. No cosmos das coisas que se encaixam perfeitamente e fazem a mente de um neurótico feliz, cara feia não combina com promessas positivas. E degustações incríveis não combinam com oferecimentos gratuitos. E coisas que não se encaixam com clareza e, pior, comprometem minha dignidade fisiológica, disparam em mim a sirene obsessiva pela verdade minuciosa. Minha vontade era gritar: não, amigo, não, traz uma água mesmo e, de preferência, fechada. E de preferência com gás, que é mais difícil de você me sacanear (água de torneira não vem gaseificada). E traz só a água fechada e um canudinho embalado. Só isso. Eu decidi não comer hoje. Mas era tarde demais. O garçom lançou a delicadeza com voz e olhar indelicados, causando um desequilíbrio energético que começou na unha mais rosada do meu dedão do pé esquerdo e subiu para o quase inexistente pelo loiro que tenho dentro da orelha direita, e sumiu do meu horizonte. O desgraçado foi para cozinha e, junto a outros nordestinos injustiçados pela desigualdade social e cansados das duras horas de trabalho pra atender peruas raivosas com seus sucos não satisfatórios, ia me sacanear. Eles, certamente, aprontariam comigo. Porque é o que eu, provavelmente, faria.
Enquanto meu chefe e dupla tentam escolher entre privilegiar na comunicação os features diferenciais da tecnologia ou o charme incomparável do design, minha mente também está entre dilemas, mas outros: catarro ou pelo do saco? Ranho ou gotícula de suor? Espirro ou esporro?
O suco chega finalmente, trazido em bandeja particular. Por que uma bandeja particular? Claro, tem sacanagem aí. Porque os outros que pediram calma e simpaticamente suas bebidas não podem ser confundidos com a vaca que vai tomar sêmen com muco nasal da mesa sete. O suco, em copo grande e reluzente, olha pra mim. Como um pedido de noivado feito por alguém que rouba rins na madrugada. Se tenho ojeriza a pega-lo com a mão, o que dirá mandá-lo para dentro do meu ser. Peço perdão se escrevo um pouco mais floreadamente que de costume, mas a neurose, meu amigo, a verdadeira neurose, não é brincadeira não. Ela merece o máximo de esforço intelectual possível, para que seu tamanho possa ser sentido até pelos mais exigentes neurônios. Não, não é isso, é apenas que a neurose se leva a sério demais, então, não consigo as palavras mais leves e diretas agora.
Pego o suco. Isso tudo é coisa da minha cabeça. Minha cabeça, sempre muito rápida e esperta, responde: mas existe alguma coisa do mundo que não seja coisa da sua cabeça? Chega. Dou bronca em silêncio para mim mesma. Chega. Sorrio para o garçom, na esperança infantil dele sorrir em retribuição e tudo ficar bem. Se ele sorrir, amigável, não tem nada no suco. Se ele sorrir, jocoso, tem. Ele não sorri, ele apenas me encara. Forte, sem desviar os olhos, profundamente. Eu sorrio mais, eu sorrio além da conta. Pelo amor de Deus, amigo. Sorria de volta. Vamos, sorria e me liberte. Sorria e todos os sucos vão sorrir. Sorria e não existem mais sujeiras e maldades no mundo. Ele não sorri. Mas antes de virar as costas, ele diz, novamente olhando firme dentro dos meus olhos: “mandei caprichar pra você”. Não, essa era a última coisa que ele deveria ter dito. “Mandei caprichar pra você” é o código universal do “mijei aí dentro, sua puta”.
A essa altura do campeonato, meu chefe e dupla já tinham se decidido pelo design em detrimento aos atributos mais tecnológicos. E você, Tati, o que acha? Eu, eu...Bom, eu acho que se não for urina é, no mínimo, cuspe. Aliás, os dois dariam esse efeito de espuma, dependendo da concentração de PH.
Almoço a metade dos pratos de tudo o que meu chefe e dupla pedem, não tenho coragem de pedir mais nada com exclusividade. Se o paraíba me sacaneou, sacaneou também outros dois bons seres, pais de família e trabalhadores. Acho que ele não faria isso. E, se fez, divido a desgraça com outras pessoas, o que sempre torna nossa vida menos terrível e injusta.
No suco, não toco. Até que uma sede infinita começa a me tomar. Claro, o paraíba precisava se cercar de todos os lados. “E se ela, depois de todo esse esforço cruel, não beber o suco? E se ela for esperta e não tomar o suco? Vamos salgar bastante a comida!” Dá certo, eu estou morrendo de sede. Última tentativa: se ele sorrir pra mim, eu bebo o suco. Olho pra ele, insistente, sorrindo muito. Ele sorri. Finalmente ele sorri. Mas não é pra mim. É para o garçom que está ao lado dele. Os dois me olham e sorriem entre si. Aparecem mais outros dois. Agora são quatro que me olham e riem desbragadamente. Um cutuca o outro, olha pra mim, e sorri. Sim, sim sim. Certeza que eles sacanearam meu suco! Os quatro! Toda sacanagem de moleque é feita em bando. Homem sozinho não sabe ser mau. Ou melhor: homem sozinho não acha divertido ser mau. Sim, sim, eles sacanearam meu suco! Mas, que saber, eu não bebi e nem vou beber. Eu não sou uma idiota não! Eu sou mesmo é muito da esperta.
Ao final do almoço, meu chefe vai buscar o carro e meu dupla vai até o banheiro. Estou sozinha. Morrendo de sede. O garçom me encara, ainda desafiador e com profundidade. Os outros continuam se cutucando e rindo muito. Que graça eu ainda posso ter se já não estou mais em posse do suco batizado? O garçom se aproxima. Meu coração gela. Ela vai confessar que meu suco tinha coliformes fecais? Não, ele me entrega um bilhete com seu número de telefone e fala, agora sim sorrindo muito: também gostei muito da senhora!
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