domingo, 5 de junho de 2011

Mais um par de tênis velhos

Até que enfim, pensei, quando o sol entrou de leve pela janela e fez os cachos dele brilharem. Eu olhei tão apaixonada que ele sorriu, um sorriso do tipo "eu sei que eu sou foda".
Não, eu estava louca novamente, ele estava sorrindo para uma piada idiota qualquer que alguém havia mandado por e-mail. Ele nem me via daquele ângulo com seus olhos pequenos, profundos e da cor dos cabelos, mas eu via seus cachos nunca penteados brilhando o dia todo.
"Novo editor, muito prazer. Vou tentar empurrar aí umas colunas de cinema."
Aquela frase ficaria imortalizada na minha mente, não só porque ele era novo, editor, ia empurrar e entendia de cinema. Mas porque para cada terminação de palavra um resto de vogal rouca e sexy demorava a desaparecer no ar. Vou tentaaaaar, empurraaaar... aquilo entrava dentro de mim, goela abaixo, corria pelo sangue, saía na calcinha. A voz dele era rara, baixa, firme, rouca e madura. E pra piorar sua boca era um desenho perfeito perdido num emaranhado estranho de pelos que se interligavam em bigode e cavanhaque. Eu só conseguia olhar para a sua boca e pensar em tipos de arrepios e cócegas em partes de mim que eu nem lembrava que existiam.
Um dia ele demorou pra voltar do almoço e eu não resisti, quis saber um pouco mais daquele mundo. Em cinco minutos descobri um universo perfeito. Em cima da mesa ele tinha cinco CDs: Tim Maia em sua versão Racional (o que prova que ele deve ter amigos legais que já fumaram muita maconha mas agora trocam dicas de móveis e pôsteres bacanas para a casa em que moram sozinhos), Cartola (o que prova que ele já sofreu por amor, mas superou e está pronto novamente porque a vida sem amor é uma merda), Frank Sinatra (ele sabe ser um pouco mafioso e levar uma mulher elegante em um restaurante chiquérrimo, pedir um bom vinho, obviamente pagar tudo e depois mostrar a pistola), Strokes (ele é jovem e moderno, só romance a moda antiga enche o saco) e um CD rabiscado, de caneta própria para CDs, que trazia escrita a palavra "livro" (sem comentários, eu poderia bater uma punheta agora sentada sozinha naquela mesa). Sua proteção de tela era uma foto P&B de um nenê olhando para o pinto, mas eu sabia que ele não tinha filhos, logo, ele ainda era um tio bacana que gostava de crianças, o que torna um homem sempre ainda mais bacana.
O típico leonino volta com sua juba iluminada, reclama que depois de comer massa o sono impera no rei e vira um touro preguiçoso entregue à luxúria da contemplação mundana. Espreguiça de leve e eu consigo ver um pouco da sua cueca xadrez. Xeque-mate, esqueço que sou dama, não tem como ganhar de um encantamento porque já se ganha só por estar encantado.
Se ele quiser, sumo agora daqui e enfio minha mão com toda a força do planeta naqueles cachos, beijo todos os emaranhados com a pressa de quem tem medo do fim do mundo. Olhar pra ele é o fim do mundo, o fim da rotina, o fim da dor, o fim da espera. Ele é vida nova e tudo vai dar certo.
"Tô triste hoje", ele solta no meio da tarde. Sim, claro. Ele é profundo, ele é intenso, ele é sensível, um homem desses fica triste no meio da tarde, um horário entre o começo do nada e o fim do nada. O meio do nada é ainda mais nada do que tudo. Ele sofre por estar aqui sentado, mas ao mesmo tempo sofre porque estar agora sem ter onde sentar também é angustiante. Viver é angustiante. Senhor, sim, ele me entende.
"Por que você está triste?"
"Minha mulher jogou meu tênis velho fora."

Um comentário:

  1. Flor adorei teu blog.. seguindo já
    beijocas'
    http://belamodavip.blogspot.com/

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